O CONTROLE DA VIDA E O BIO-PODER


Allan de Aguiar Almeida

Foucault vem a afirmar que um dos privilégios característicos de um poder soberano é o próprio “direito de vida e de morte”, este herdeiro direto do patria potestas, que considerava ao pai de família romano todo o direito de dispor da vida de seus filhos e de seus escravos, onde se podia retirar-lhes a vida já que a estes tinha dado.

Tal direito é assim formulado como o direito de “causar a morte” ou de “deixar viver” e o poder como aquele que dava direito de apreensão das coisas, dos corpos, do tempo, como o próprio apoderamento da vida, nem que seja para suprimi-la.

Foucault nos mostra que o direito de morte se deslocará e se apoderará de exigências de poder que ‘gerem a vida’ e que a ordenem em função de seus ditames; tal poder de morte se apresentará como um complemento de um poder que se exerce sobre a vida, empreendendo sua gestão, majoração, multiplicação e exercício através de controles muito bem precisos e regulados.

O princípio de poder matar para viver vem, dessa forma, ser a tática do Estado, não apenas girando em torno da questão jurídica, da soberania, mas em torno daquilo que diz do biológico de uma população, daquilo que se exerce no nível da vida, da espécie, da raça e dos fenômenos relativos à população: a pena de morte é um exemplo disso que junto com a guerra veio a se tornar o direito do soberano frente a contrariedade de suas vontades e leis.

Quando o poder vem assumir a função de “gerir a vida” é que se torna mais difícil a aplicação da pena de morte, e esta só é legitimada para aqueles que constituam uma espécie de perigo biológico para os outros, e é sobre a vida propriamente que se estabelecem os pontos de fixação.

Esse poder de vida se desenvolveu a partir do século XVII em duas formas principais: O primeiro centra-se no corpo como maquina, no seu adestramento, na ampliação de suas aptidões, na extorsão de forças, no crescimento de sua utilidade e docilidade, ainda imerso e integrado em sistemas de controles eficazes e econômicos assegurados por procedimentos de poder que caracterizam as disciplinas.

Uma segunda forma vem a se dar no próprio corpo atravessado pela mecânica do ser vivo, dos processos biológicos, como no nascimento, na mortalidade, na longevidade, processos estes que são assumidos mediante toda uma série de intervenções e controles reguladores, ou seja, uma “bio-política” da população.

Tais disciplinas do corpo e as regulações da população se constituem e se interligam por feixes de relações desenvolvendo e organizando o poder sobre a vida. Foucault afirma que a velha potência da morte é recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida, vindo assim a inaugurar a era de um “bio-poder”.

Tal bio-poder vem a ser o elemento indispensável ao desenvolvimento do sistema capitalista que só pode ser garantido frente ao controle dos corpos no aparelho de produção e pelo ajustamento de tais fenômenos frente aos processos econômicos. É dessa forma que o biológico reflete-se no político, controlando o saber e intervindo sobre o poder.

Frente ao desenvolvimento desse bio-poder tem-se a importância da atuação da norma, esta sustentada pelo ‘sistema jurídico da lei’, que não deixa de ser articulada, armada e que tem como munição própria a morte. Àqueles que transgridem tal norma, como último recurso, esta se vem como a ameaça absoluta. Porém quando o poder vem a se encarregar da vida esta terá necessidades de mecanismos incessantes ao mesmo que reguladores e corretivos: qualificando, medindo, qualificando, hierarquizando...

A lei assim funciona cada vez mais como ‘norma’ e a ‘instituição judiciaria’ vem assim a se integrar cada vez mais um conjunto de aparelhos cujas mesmas funções são acima de tudo reguladoras.

Insere-se assim vigilâncias constantes e sutis, controles ordenados, exames médicos e psicológicos de diversos modos, medidas constantes, dados científicos e estatísticos frente ao corpo social. Exemplos pontuais são o que ocorrem no âmbito do judiciário frente às demandas dos mais diversos setores e técnicos para com os profissionais psi através de decisões que se tornam resolutivas e acima de tudo justas e verdadeiras.

Foucault em “A Verdade e as Formas Jurídicas” vem a afirmar que a sociedade contemporânea não é apenas uma sociedade de controle, mas que é acima de tudo uma “sociedade disciplinar”. Enumera no início do século XIX como bateria de penalidades a deportação, o trabalho forçado, a vergonha o escândalo público e a pena de talião. Apresenta que esses projetos foram substituídos pelo encarceramento, pela prisão.

A noção de periculosidade de fins do século XIX vem a significar que um indivíduo deva ser considerado “perigoso” pelo nível das virtualidades e não ao nível de seus atos, não das efetividades de uma infração, mas das ameaças que elas poderiam vir a representar.

O controle dos indivíduos deixa de ser exclusivo do sistema judiciário e se abarca a toda uma série de outros poderes laterais, a margem da justiça, em toda uma rede de vigilância e correção: A policia para a vigilância; para a psicologia, a medicina, a pedagogia e a criminologia ficam para a correção. Toda uma rede composta por escolas, hospitais psiquiátricos, asilos e tantas outras “instituições de seqüestro” vem a desempenhar um papel que não judiciário, mas que tem como função majoritária corrigir as virtualidades.

Essa é a época da ortopedia social, que faz o uso de uma forma de poder que tem como meta o controle social; o Panopticon de Bentham é o esquema ilustrativo por excelência de tais formas de controle.

Foucault define por Panoptismo a forma com a qual se exerce sobre os indivíduos a vigilância de modo individual e continuo frente à formação e transformação do social em função de determinadas normas sustentadas na tríplice “vigilância-controle-correção”, não do que se faz, mas daquilo que se poderia vir a fazer.

Uma característica de nossa época atual vem fazer com que as diversas instituições e instancias de poder – sejam elas a escola, a prisão, a fábrica, os hospitais – tomem como finalidade a fixação, a inclusão, uma forma de garantir a produção e os produtores em função da norma.

Tomando-se dos indivíduos o tempo, seus corpos, criando-se um poder econômico-político que se desdobra num poder jurídico criam-se os artifícios necessários para se formar instituições de seqüestro que esquematicamente criam o jogo já definindo de antemão suas regras.

Especificamente naquilo que se refere ao judiciário, é nesse que se pode firmar as ordens assim como as decisões, e nesse ainda que se garantem s funções como também a produção e a aprendizagem. O judiciário vem com o direito de punir, e de recompensar, avaliar e classificar, determinando aquilo que é o melhor e o pior. A jurisdição como forma de acompanhamento e controle estabelece modos de controle de vida promovendo modos de ser e de estar bem específicos através de códigos, demandas, estatutos, discursos, conselhos éticas, políticas e práticas de atuação que englobam o indivíduo como um todo o absorvendo na máquina neoliberal.

Quanto à psicologia, enquanto uma ciência, enquanto um especialismo, caberia a predição e predefinição de comportamentos através de laudos, de avaliações, pareceres e relatórios que vem aprisionar os acontecimentos de uma vida e cercear os mais diversos contextos em um plano psíquico, individual e ahistórico submetendo-os a um controle social que serializa, ao mesmo que vem a servir aos interesses do Estado.

Frente a tal quadro, e ao confronto da psicologia com o judiciário faz-se necessário as interrogações das práticas pura e meramente assistencialistas e resolutivas superficialmente. Problematizando as diferentes instituições que compõem a malha social, isso nos incluindo, criando estratégias coletiva, intervenções políticas e públicas, práticas que possam romper de forma sutil com verdades sagradas e por muito tempo enrijecidas.



BIBLIOGRAFIA:

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: PUC, NAU, 1996.

_________ .História da Sexualidade – A Vontade de Saber, Vol. I, RJ: Graal, 1977.