VIOLÊNCIA INSTITUCIONALIZADA E CLÍNICA



Allan de Aguiar Almeida

O termo violência institucionalizada diz respeito ao tipo de violência do Estado, violência esta advinda do aparato policial e dos diversos sistemas de encarceramento e de tutela a partir do qual se tornam alvos parcelas consideráveis da população, ou seja, a violência praticada diretamente sobre aos corpos.

Essa violência dentro de uma ampla gama de objetivos, mostra-se mais diretiva e atuante quanto a sua intenção de exterminar parcelas específicas da população – exemplos são os ‘judeus’, os ‘degenerados’ e ‘subversivos’ – que são erradicados em nome de uma dita segurança, ou então limpeza étnica, pelo combate ao trafico de drogas ou mesmo ao crime organizado.

Foucault enunciava que o capitalismo vem a se tornar hegemônico graças ao desenvolvimento de tecnologias para se regular massas humanas docilizando-as e as tornando úteis. Um modo direto e claro dessas práticas de violência se dá com o nazismo, naquilo que ele vem preconizar uma raça e um ideal de sociedade que justifica por si só o extermínio e a exclusão de tantos outros.

Assim descreve C. Rauter, “o controle social contemporâneo, de forma semelhante aquele posto em ação pelo nazismo, se associa a técnicas de promoção e preservação de um tipo de sociedade e de um modo de subjetivação. È a preservação desse tipo de sociedade e deste modo de subjetivação que autorizam a promoção de tecnologias de extermínio dirigidas aos outros”, e continua, “nunca se alardeou tanto a promoção de vida e ao mesmo tempo se matou tanto, é o paradoxo a que se refere Foucault ao tratar do que chamou de bio-poder”.

As sociedades são desse modo, tomadas como locais tecnologicamente planejados e uma de suas características mais fundamentais de promoção de vida é o de se implicar frente à erradicação justificada, sempre, de tudo aquilo que venha a comprometer com o ideal. Assim em defesa da vida é que a sociedade volta-se contra seus ‘detratores’.

A autora assinala que Z. Bauman em “Modernidade e Holocausto” aponta que não foi a civilização que se degenerou para dar lugar aos crimes nazistas, mas que, alguns procedimentos típicos dessa civilização contemporânea é que se tornaram fundamentais para a expansão e utilização de uma tecnologia de morte. Processos que se consolidaram como características de nosso mundo e da própria subjetividade contemporânea.

Quanto ao nazismo pode-se considerar uma continuidade e semelhanças com outros métodos de extermínio, e que há em seu fenômeno uma singularidade em relação aos demais que o elevam em seu caráter de laboratório de estratégias repressivas da modernidade. Singularidade que o confere como um fenômeno tecnológico que estabelece relações diretas com o que Foucault descreveu como poder disciplinar, mas que o confere um lugar diferenciado.

Num contexto mais direto e atual, para a população brasileira, urbana e pobre, percebe-se que o Estado através de sua polícia é também o exterminador, assim, sendo suas vítimas são culpabilizadas o que se explicaria pelo mecanismo das chacinas, dos tiroteios e as invasões policiais em favelas. Dessa forma, com a violência oficial exercida pela polícia, passando pelo crivo da mídia, o medo, a impotência e a vergonha são multiplicados.

Diferentemente do ocorrido com o nazismo, em sociedades como as do terceiro mundo os Estados vem a se apresentar com um ideal de promoção de vida, que é só ideal e que faz por ocultar, sem conseguir, sua máscara exterminadora. Em paises de primeiro mundo a face da crueldade se vira a paises alheios, onde frente a bloqueios comerciais e conflitos bélicos condena-se à fome e ao atraso populações inteiras.

Rauter enuncia que, na perspectiva de P. Levi, “a luta cotidiana pela vida é que se permite continuar a viver num lugar onde a morte é uma possibilidade palpavelmente presente”, onde a negação dessa morte é o que permite seguir vivendo.

Assim, frente ao tratamento dos atingidos por essa violência, a questão do recordar, de seus efeitos duradouros e intensos sobre a subjetividade é o central. O próprio tratamento de torturados demanda de uma redefinição clínica, no que concerne à clínica tradicional que se calca no familiar, no infantil e no introspeccionismo.

Considera-se então, a partir dessas novas concepções, que uma grande dose de esquecimento é o que possibilitaria a atenção à vida, onde tudo pode ser colocado em termos de possibilidades de se fazer um bom, ou mau uso dessas recordações.

Têm-se recordações que podem estar a serviço da vida, que se ligam a construções de novos modos de existir. Têm-se novas lutas em propensão com os fatos do passado que ganham uma nova conexão com o atual que fazem da memória o esclarecimento dos fatos ocorridos permitindo a construção de novos territórios existenciais.

Ideais que se referem à capacidade de se construir um mundo para se viver que pressupõe a dimensão do coletivo, que esteja diretamente ligada com a ação política. Nesse desafio clínico há que se inserir o acontecimento “inexplicável” no interior de um embate cujo sentido político se dá na maior parte das vezes por disfarçado.

Esse vazio de sentido que vem a se impregnar é a questão que afeta, de certo modo, a subjetividade contemporânea, onde pseudo-objetivos e ideais esvaziados do capitalismo de nossos dias se expandem em grande escala, produzindo um deserto subjetivo de dimensões inimagináveis.

Dessa forma, a proposta vem a fazer com que possamos falar de pequenos mundos, mundos mínimos, porém emergentes e de grande intensidade e que trazem linhas de fuga e de produção de novos modos de organização subjetiva.



BIBLIOGRAFIA

RAUTER, C. Notas sobre o tratamento de pessoas atingidas pela violência institucionalizada. Clínica e Política – subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro: IFB/Te Corá, 2002.