Allan de Aguiar Almeida
A terminologia psicossomática surgiu a partir do século passado, quando Heinroth criou as expressões “psicossomática” (1918) e “somatopsíquica” (1928), porém, o movimento que defendia tais idéias só se consolidou em meados do século passado. Em geral, a “psicossomática é uma ideologia sobre a saúde, o adoecer e sobre as práticas de saúde, é um campo de pesquisas sobre estes fatos e, ao mesmo tempo, uma prática”, a prática de uma Medicina e uma Psicologia em seus aspectos mais integrais, onde a relativa complexidade destas definições e destes conceitos se torna mais acirrados frente à "Psicologia Médica". A designação de psicossomática foi proposta na França por Pierre Schneider, dando um sentido eminentemente prático e seguindo a vertente de Balint na Inglaterra ao propor que este seja o campo de estudo da relação “médico-paciente”.
Psicologia da Prática Médica foi uma outra designação ainda mais abrangente proposta por Alonso Fernandez, onde a gama de atividades do que se chama de Psicossomática ou de Psicologia Médica abrange o ensino ou a prática de todo tipo de fenômenos de saúde e de interações entre pessoas, como as relações profissionais-pacientes, as relações humanas dentro de uma família ou de uma instituição de saúde, a questão das doenças agudas e crônicas, o papel das reações adaptativas ao adoecer, à invalidez, à morte, e aos recursos terapêuticos extraordinários.
O presente texto vem abordar questões introdutórias, não com o objetivo de aprofundá-las, o tema “Psicossomática” é vastíssimo e não cabe esgotá-lo em um texto que se apresenta de mero caráter especulativo.
Pensamos ser conveniente iniciá-lo com algumas conceitualizações, em seguida trataremos do pioneirismo da área, da emersão e da consolidação do campo e de todo o trabalho envolvido. Em outro tópico abordamos a articulação entre a psicanálise, a medicina e o hospital em seus amplos e gerais aspectos, seguido das visões plurais de abordagem a que a saúde esta inserida na pratica clinica.
Conceitualizações
Dentro de uma perspectiva mais conceitual, a psicossomática que se apresenta hoje, é um tema de certa forma recente dentro da área médica e de suma importância, seus princípios remontam desde o surgimento da própria medicina com Hipócrates. Em sua concepção teórica a Psicossomática se funda em cima de uma etiopatologia que está relacionada diretamente com a função psicológica, com a vida afetiva e inconsciente e ainda com processos terapêutico-humanistas que visam não apenas o reconhecimento de uma patologia, mas em todo o campo que se estrutura e se organiza a pessoa do doente.
A concepção de medicina psicossomática integra uma perspectiva que põe a doença como uma dimensão psicológica, enfatizando a relação medico-paciente em seus amplos contextos junto a uma ação que se volta para o paciente como uma entidade biopsicossocial. Cabe assim a Psicologia Hospitalar o olhar sob a relação que se tem perante o comportamento clinico, seja naquilo que diz respeito à vida do paciente ou no relacionar desde para com o médico, o que também fica ao cargo da Psicologia Médica e da Medicina do Comportamento.
Coube assim a Psicossomática, através de uma nova visão da Patologia e da Terapêutica tratar os doentes e não as doenças no seu contesto mais amplo e significativo.
Operacionando a pratica médica e a Patogenia surge a Psicanálise dando o devido valor à palavra que tanto rendeu a terapêutica, seja através do conhecimento das tensões internas, pulsões, sonhos, fantasias, seja através de um redimensionamento e reestruturação da doença como “um acidente biográfico”, ou ainda na relação do medico-paciente como um recurso terapêutico da maior importância. A dimensão simbólica, deste modo, traduz a essência do existir e através da psicanálise é que se vinculam os recursos que se fazem por possível um tipo de Medicina Humanizante, uma medicina do sujeito.
A transformação do pensamento e do ato médico assim inclui de antemão a dimensão simbólica do homem na formação de sua doença, de seu sintoma e de seu estado de saúde, imprimindo conhecimento e técnica no tratamento e manutenção dessas. O que vem a revelar a necessidade de se fazer uma ponte entre o “somático” e o “psicológico”, desfeitos ao longo dos séculos passados pelo pensamento cartesiano separando res extensa e res cogitam.
Pioneirismo
Aqui no Brasil inspirada no movimento psicanalítico, característico dos anos 90, a Medicina Psicossomática toma caminhos bem característicos devido às modificações estruturais e assistências dos projetos públicos e privados com a formação de equipes multidisciplinares e mobilizações de atividades paramédicas nas intervenções, principalmente com o apoio e influência de nomes renomados como Danilo Perestrello, Julio de Mello Filho e tantos outros.
A abrangência e abertura da participação do psicólogo na área de saúde seja em hospitais, clínicas, centros ou núcleos de atenção psicossocial, ambulatórios, nas mais variadas especialidades de atendimento e intervenções levaram a uma maior preocupação com aquilo que diz respeito às “questões psicológicas”. Essas questões psicológicas e sociais só terão sua efetividade quando estiverem comprometidas com uma patologia que leva em conta a dimensão simbólica de que é constituída e no que se impõem os aspectos psicossociais do paciente somado ao êxito terapêutico que se dá de modo direto na relação médico-paciente.
Os diagnósticos fenomenológicos organizados pela psiquiatria voltados para as intercorrências psiquiátricas, identificadas nosologicamente e de modos definidos conduzem somente a uma assistência psiquiátrica e não a um desenvolvimento da psicossomática e da aplicação de seus conhecimentos, o mesmo que se faz na prática psicológica quando o profissional busca atender não aos interesses efetivos do paciente, mas aos interesses da instituição. A este ponto cabem algumas diferenciações mínimas no que diz respeito a dois conceitos, no qual temos uma Medicina Psicossomática que estuda as relações mente-corpo com seu foco na patogenia ressaltando a questão diagnóstica e a uma Psicologia Médica que se preocupa com as questões assistenciais tendo como eixo principal à terapêutica e a atuação clínica.
Partindo disso vemos que a Psicologia Médica é a mola propulsora da Psicossomática original que apoiada na psicanálise fez seus maiores progressos advindos de uma atuação clínica de fato, mas que não se fez tornar por completo dada a não integralidade daquilo que se faz como ideal e prático nas intervenções clinicas e nas dificuldades relacionais de encontro consigo próprio e com o outro.
Psicanálise, Medicina e Hospital
De um modo grosseiro e geral, a psicanálise é tida como uma psicologia que está em função do inconsciente, um método de investigação do “psiquismo”, uma atividade terapêutica médica, assim como a medicina psicossomática esta para o estudo das relações “mente-corpo” enfatizando as explicações psicológicas da patologia somática, uma transição para a linguagem psicológica dos sintomas corporais.
A psicanálise estabelece assim as relações interpessoais inconscientes, desvendando os atos de se revelar e se autoconhecer, descobrindo os significados do acontecer mental e da própria existência e de toda uma “resignificação” e recriação do existir, o próprio cerne que diz respeito tanto à psicanálise quanto a medicina psicossomática, transformar id em ego. Ponto tocado por Freud ao discutir a própria origem do “mental” ao estabelecer que a atividade corporal origina o id e este em contato com o mundo exterior se diferencia pelo ego, ou seja, a própria atividade biológica está representada na mente assim como se transforma nela mesma.
Quando o físico-corporal se transfigura no psicológico, quando o isso se faz em eu, temos o surgimento do humano, da própria humanidade, através de um sistema que se abre para o outro e que não o causa. As transformações dos processos primários em secundários são bons exemplos disso na teoria, com um corpo que representa e se cria na mente, esta que vai para além das concepções sensoriais.
Considerando-se a segmentação feita pelo dualismo cartesiano, as observações sobre as influências dos processos mentais sobre os processos somáticos deram origem às especulações quanto ao surgimento psicológico dos transtornos somáticos, que na teoria psicanalítica foram marcadas pelas concepções econômicas de mente, derivando conceitualizações de uma libido, catexias, sublimações e demais processos psicodinâmicos.
Influências essas que ficaram registradas ainda nos conceitos de representação, associação, em todo o campo simbólico, em tudo aquilo que diz respeito a um processo maturacional e adaptacional passando pela história do paciente e ainda de seus próprios atos de pensar, sejam eles conscientes ou inconscientes.
A Psicanálise acabou levando assim para a Patologia Geral uma concepção nova daquilo que se tem por adoecer, pela manutenção e por gerar saúde através de uma ótica psicossomática “holística”, o que acabou redimensionando a estrutura, por exemplo, do Hospital Geral, que se fez por incorporar a figura do Psicanalista, ficando a cargo desse apreender e trabalhar com os aspectos inconscientes na pratica assistencial, tomando como base os modelos transferênciais e contra-transferenciais influenciando, contudo a intervenção médico-somática a lidar não apenas com doenças, mas com doentes.
Através de experiências psicanalíticas no Hospital Geral vemos situações nas quais se fazem por fundamental na prática a importância de se saber a história do paciente e a estruturação desta para com sua doença, tudo aquilo que diz respeito à compreensão e o significado do sintoma além da relação médico-paciente pela ótica terapêutico-assistencial.
Dentro da área médica se faz de grande interesse para o psicanalista uma série de questões: dentre elas uma que se refere à patologia, uma que se refere à relação médico paciente, outra que diz respeito à formação profissional e ainda tudo aquilo que gira em torno da prevenção.
Os estudos iniciais da psicanálise que deram origem à psicossomática atual dizem respeito ao problema da psicogenia de alguns transtornos somáticos, que dentre eles estão como exemplos a asma brônquica, os eczemas, hipertensões, úlceras, hipertireoidismo, enxaquecas e tantos mais. Outro dos pontos chaves da prática clínica se dá na relação médico-paciente, na utilização da convivência como um recurso terapêutico, proposta vinda de Balint, derivada da noção de campo transferêncial que organiza o ambiente clinico e que dá apoio ao paciente regredido pela enfermidade, através do diálogo, cognição e o próprio ato terapêutico, para se superar o estresse múltiplo desencadeado pela doença, pela revivescência de conflitos históricos e toda a problemáticas de uma internação hospitalar.
Questão interessante ainda diz respeito à formação, não só do médico ou do psicólogo, mas do profissional de saúde que partindo de conhecimentos da Medicina Psicossomática acabou por se desenvolver a Psicologia Médica, que intervém na formação do profissional, articulando técnicas de aprendizagem ativas, com a familiarização do estudante com toda a dimensão mítica e inconsciente em suas amplas dimensões acrescido de um ideal preventivo de atuação.
Olhares Clínicos
A psicossomática atualmente propõe um tratamento duplo: medicamentoso e psicoterápico, sendo que o tipo de psicoterapia pode ser desde a psicoterapia de apoio, até uma psicoterapia, de insights, baseada na psicanálise na qual a pessoa vai descobrir porque tem esse tipo de conflito ou sintoma.
De acordo com algumas vertentes toda doença é psicossomática, pois quem adoece não é um órgão específico, mas sim o indivíduo como um todo em seu mundo particular. Porém, de forma genérica, entende-se doença psicossomática aquela que é agravada ou desencadeada por fatores emocionais e que apresenta alguma alteração orgânica constatada em exames. As manifestações fisiológicas e/ou somáticas resultantes do “estresse adaptativo”, chamadas de somatizações, podem ser entendidas como uma forma de falar, de se expressar, são formas simbólicas (e somáticas) de comunicabilidade que utilizam o corpo como meio de expressão, e quanto menos eficientes são os mecanismos mentais ou cognitivos de sentir, falar e agir, mais o sistema somático será utilizado para expressar emoções. Isso significa que quanto mais "legítimas" forem às emoções, menos somáticas se tornarão.
Partindo de uma visão médico-fenomenologica temos algumas classificações tradicionais dos transtornos psicofisiológicos (psicossomáticos) que descrevem as seguintes doenças relacionadas com variáveis psicológicas:
→ Transtornos cardiovasculares - enfermidade coronariana, hipertensão arterial, arritmias.
→ Transtornos respiratórios - asma brônquica, síndrome de hiperventilação, rinite alérgica.
→ Transtornos endócrinos - hiper ou hipotiroidismo, doença de Addison, Síndrome de Cushing, alterações das glândulas paratireóides, hipoglicemia, diabetes.
→ Transtornos gastrintestinais - transtornos esofágicos, dispepsia, úlcera péptica, síndrome do cólon irritável, colite ulcerosa, Doença de Crohn.
→ Transtornos dermatológicos - prurido, hiper-hidrose, urticária, dermatite atópica, alopecia areata, psoríase, herpes, vitiligo.
→ Dor crônica - lombalgias, cefaléias, dor pré-menstrual, fibromialgia.
→ Reumatologia - artrite reumatóide.
→ Transtornos imunológicos - lúpus, depressão imunológica inespecífica.
“Com o reconhecimento da implicação de fatores psicológicos ou emocionais no desencadeamento e/ou agravamento da maioria das enfermidades orgânicas, os transtornos e doenças assim apresentados acabam perdendo totalmente o valor. Quanto mais avançam os meios de investigação da patologia, mais se evidencia relevância dos fatores psicológicos na etiologia e desenvolvimento de um grande número de doenças até então não consideradas como psicofisiológicas. Esses transtornos englobam desde doenças neurológicas, como a esclerose múltipla, até enfermidades infecciosas, como a tuberculose, enfermidades imunológicas, como a leucemia” (Ballone, 2002).
Desta forma, em muito pouco tempo, ao se descreverem os transtornos psicofisiológicos, não mais se fará referência a um determinado grupo distinto de enfermidades, mas sim às alterações físicas que são precipitadas, agravadas o prolongadas por fatores psicológicos. A psicossomática assim preocupar-se-á com as diversas categorias de reações orgânicas, utilizando-as para compreender qualquer transtorno físico nos quais os fatores psicológicos sejam importantes.
Winnicott contribuiu principalmente para as teorias sobre a criatividade, a relação mãe–bebê, a técnica analítica, a compreensão da falsidade humana e do narcisismo, suas contribuições para a uma psicossomática dizem respeito à crítica de uma dissociação mente–corpo, na qual mostra que não somos apenas dissociados e essa separação é promovida tanto pelo paciente quanto pela cultura médica, o que se faz por mostrar frente a uma hipertrofia do mental diante do corpo.
Assim em todos os tipos de intervenção se faz por fundamental a interpretação do sintoma orgânico como um todo histórico circunstancial do paciente, entendendo que trabalhar com transferência não significa reduzir a pessoa do paciente a um “campo transferêncial”, a tratar não doenças e sim doentes. Assim vemos a importância do ambiente clínico como elemento crucial da terapêutica ao passo que facilita elementos de relação simbólica necessária à recuperação do ego desencadeado por lesões orgânicas, o que torna o sintoma um próprio falar, que quer e precisa ser ouvido.
Psicossomática e atuação
Algo de suma importância para o atendimento psicoterápico, a Psicossomática, como conceito polêmico e inovador, pode ser vista como um paradigma no campo da saúde que vem atrelada à própria medicina e a psicologia, das quais não se dissocia.
Remontando a Idade Média, na qual o mental e o corporal eram tratados por diferentes segmentos, ou seja, o “mental” ficava a cargo dos sacerdotes, da própria religião e o “corporal” da medicina emergente, seguindo o Renascimento na qual as ciências passam a tomar uma ótica materialista e causal diante do dualismo cartesiano que vem a reforçar tal dicotomia.
A Psicossomática surge como o “elo”, que vem a se aproximar dos males que o “especialismo” não conseguia resolver diante das séries de impasses, passando a tratar a doença como uma “disfunção no próprio no processo de viver”.
Inicialmente a psicossomática buscava conceituar o estudo das influências emocionais sobre as doenças orgânicas, não que isso não se tenha de fato, porém com o desenvolvimento de seus próprios estudos e investigações o conceito se amplia para o próprio estado de saúde do individuo, se relacionado com o conjunto de fenômenos relacionados com o adoecer.
BIBLIOGRAFIA
BALLONE, G.J. “Psicossomática” in. Psiqweb - Psiquiatria Geral, Internet, 2002. disponível em < http://www.psiqweb.med.br/psicossomática>
MELO FILHO, Julio. “Psicossomática Hoje”. Artes Médicas, 1992.