TRANFERÊNCIA E ACTING OUT

Allan de Aguiar Almeida

Freud faz referencia a um movimento específico da libido dentro do tratamento que se fundamenta no conceito de transferência [1] e tal dinamismo se faz pela oscilação entre a abertura ao material inconsciente, que se dá na forma de rememoração, ao mesmo que para seu fechamento, uma barreira de acesso ao material, que se produz pela resistência.

No jogo transferêncial abordado pelo texto freudiano dois pontos merecem atenção: o primeiro é que a transferência é uma característica da própria estrutura neurótica, não é um conceito apenas e nem se restringe ao campo psicanalítico, e segundo, que ela é a resistência mais poderosa no curso do tratamento. Com relação a este segundo ponto Freud nota que a parte da libido que é capaz de se tornar consciente e é dirigida para a realidade é diminuída, ao passo que a parte que vai para longe da realidade e que se faz por inconsciente é aumentada.

Sendo a transferência a colocação em ato do inconsciente, de sua própria atuação, Freud menciona uma transferência que é positiva, que se dá a sentimentos amistosos e afetuosos, enquanto outra parte são prolongamentos de sentimentos inconscientes que remontam de fontes eróticas e da suavização de objetos sexuais por mais “não sensuais” que se pareçam ao consciente. Importante ainda ressaltar que a transferência para o analista é útil enquanto resistência ao tratamento somente enquanto se tratar de transferência negativa ou então de transferência positiva de impulsos eróticos recalcados.

Transferência e resistência são elementos que se articulam e é interessante notar como essa última é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que emperra a análise a faz avançar. Dentro do manejo da técnica analítica, a transferência, se mostra desde o inicio como o veiculo mais forte de resistência, e foi frente a tal conjuntura de fatores que Freud abandonou o método catártico dado ao fato de a hipnose burlar essa resistência, elemento fundamental dentro de todo o processo analítico.

Na clínica notamos que há algo que se dá a não saber, que se dá pela transferência, na suposição de saber para com o analista, há algo que resiste a ser dito e é possível nessa transferência. Podemos ainda pensar na transferência como uma edição nova de moções e fantasias que são criadas e tomadas conscientes durante o processo analítico, uma substituição das imagos infantis, clichês, pela figura do analista, na qual este pode tomar o lugar dos objetos sobre os quais incide o desejo. Não que seja uma nova inscrição, já que não é tomada como mera lembrança, mas como algo que se atualiza, que reedita, que se faz por repetir, o próprio retorno do recalcado, uma idéia que vem no lugar de outra.

Fazendo um paralelo aos sonhos, ainda em “A Dinâmica da Transferência”, Freud afirma que o paciente toma os produtos do despertar de suas moções inconscientes como atuais e reais, colocando suas paixões em ação e não levando em conta a situação real. Isso frente ao fato dessas noções inconscientes não desejarem ser recordadas à maneira do tratamento, mas sim por reproduzir frente à atemporalidade do inconsciente e às suas produções. Segundo o artigo esse conflito entre o intelecto e a pulsão, entre a compreensão e a ação se daria quase que exclusivamente no fenômeno transferêncial.

Em “Recordar, Repetir e Elaborar”, Freud também nos diz que o paciente por não recordar de coisa alguma do que esqueceu e recalcou acaba por expressar nos “acts it out”, pela atuação, ou seja, não como rememoração, mas como ação onde repete sem saber o que esta repetindo. Marca ainda que o paciente começará seu tratamento devido a uma série de repetições, de uma compulsão a repetição, do qual não pode fugir, dado ser esta sua maneira de recordar, o que também aconteceria no laço transferêncial com o analista, o caso Dora é um bom exemplo oferecido a nós para ilustrar tal situação.

Quanto à transferência observa que esta se faria como um fragmento, uma parte da repetição e que esta seria uma transferência do passado esquecido que concerne a diversos aspectos da posição do sujeito. No que diz respeito às resistências, quanto maior esta se apresenta, mais intensamente o repetir, o “acting out” (atuação) substituirá o recordar, pois o recordar daquilo esquecido foi posto completamente de lado.

No progresso da análise a transferência pode se tornar hostil, ou se intensificar excessivamente o que devido ao recalque faz a recordação dar lugar à atuação, ao acting out.

Aprendemos que o paciente repete ao invés de recordar e repete sob as condições da resistência. Podemos agora perguntar o que é que ele de fato repete ou atua (acts out). A resposta é que repete tudo o que já avançou a partir das fontes do recalcado para sua personalidade manifesta — suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também todos os seus sintomas, no decurso do tratamento. [2]

Desse modo afirma que o instrumento principal para recalcar a compulsão do paciente à repetição é transformá-la num motivo para recordar esta propriamente no manejo da transferência, na condução do analista.

A transferência em si é um fragmento da repetição, uma transferência do passado esquecido, onde a compulsão a repetir substitui o impulso de recordar, seja na análise ou nas diversas outras situações da vida, sendo que são as resistências que determinam a seqüência do material que deve ser repetido. O paciente repete ao invés de recordar e repete assim sob as condições e forças da resistência, repete a partir das fontes daquilo que está recalcado, suas inibições, atitudes e traços psicológicos, inclusive todos os seus sintomas no decurso do tratamento. E é isso que nos leva a perceber que o analista deve tratar um caso não como algo do passado, mas algo que possui uma marca e uma força da atualidade.

Lacan, na aula de 23 de janeiro de 1963 de seu Seminário, “A Angústia”, fala que a passagem ao ato está do lado do sujeito no momento de seu embaraçamento maior, onde o sujeito no lugar da cena, historizado em seu status singular e estrutural, acaba por se precipitar, saindo da cena. Lembra dos casos clínicos da “Jovem Homossexual” e de “Dora”, tratados por Freud. Evadindo-se da cena, partindo de modo errante, o sujeito sai à procura de algo rejeitado, retomando àquilo que de ensejo de ser valorizado, passando da cena para o mundo. Dessa forma cita dois registros: o “do mundo” que é o lugar onde o real acaba por se comprimir e a “cena do Outro”, onde o sujeito há de se constituir tomando um lugar pela via da linguagem, ao mesmo que portando uma estrutura verídica e ficcional.

Tomando a angústia como aquilo que não engana, como um modo de comunicação absoluta, radical e comum entre o sujeito e o Outro, Lacan nota que o acting out se mostra como sendo da ordem de uma evitação de angústia. A mesma angústia notada por Freud enquanto um sinal que se produz no limite do eu quando ameaçado por algo que não deve aparecer.

A partir de Lacan podemos conceber que o acting out é o oposto da passagem ao ato, naquilo que se mostra da conduta do sujeito orientado para o Outro. Enquanto mostração o acting out se vela, mas não em si, dado que vem dizer e fazer referência a algo que diz da verdade do sujeito, de sua causa, onde o sujeito de algum modo sabe o que fazer.

O que quer dizer que podemos fazer todos os empréstimos que quisermos para tapar os furos do desejo, assim como os da melancolia, mas lá está o judeu que, por sua vez, entende um bocado do balanço das contas e que, no fim, pede a libra de carne – creio que vocês sabem o que estou citando. É essa a marca que vocês sempre encontrarão no que é acting out. [3]
Referente à transferência, podemos também com Lacan parear a relação entre sintoma e acting out em seu endereçamento ao Outro para se colher os resultados clínicos: o sintoma não pede interpretação dado que ele não é um apelo ao outro, mas sim um gozo que se basta, um bastar que não se faz no acting out e que abre as vias de um tipo de transferência tomada por Lacan como selvagem. O acting out assim pode ser tomado como o começo da transferência, mesmo sem análise dado que a transferência sem análise é o próprio acting out e este sem análise é a pura transferência.

Com essa transferência podemos afirmar que através do dispositivo analítico o julgamento para a ação do psicanalista não é colocado numa técnica, mas sim numa ética, através de um parâmetro clínico que se dá na relação entre a ação e o desejo de uma intervenção analítica. Por vezes presentifica-se uma dificuldade de fazer o gozo passar ao inconsciente, isto é, de transformar a compulsão a repetição propriamente num motivo para recordar.

Só há uma possibilidade de intervenção analítica, a partir do momento em que o analista é incluído na transferência, onde o Agieren transferêncial, referenciando-se em Freud, se faz onde algo resiste ao processo de rememoração, onde esse repetir, mesmo impedindo o trabalho de associação livre diz de elementos significantes de endereçamento ao outro.

Aquilo que Lacan marca do acting out é exatamente esse seu endereçamento, seu vínculo transferêncial, seu direcionamento ao outro. Aqui temos o lugar ocupado pelo analista, sua responsabilidade frente ao manejo transferêncial, um lugar que não deve ser qualquer, dado que o analista é parte da vida do analisante, imaginariamente e simbolicamente, e sendo assim os acting outs são levados para esse lugar.

Em algumas situações o acting out se dá no lugar do trabalho analítico, onde o paciente atua no lugar de se haver com suas questões não tomando um outro lugar em sua enunciação. A resposta do analista deve introduzir um corte, operando se possível uma virada discursiva que coloque o analisante ao trabalho clínico.


NOTAS
[1] FREUD, S. “A Dinâmica da Transferência” (1912).
[2] FREUD, S. “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914). Op. cit., p. 167.
[3] LACAN, J. “O Seminário, livro 10 - A Angústia”. Op. cit., p. 139.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERNARDES, Angela C. “Tratar o Impossível: a função da fala na Psicanálise”. Rio de Janeiro. Garamond. 2003.

______. “Resposta do analista: o caso Frida de M. Little”. In: Maria Silvia Hanna; Neuza Santos Sousa. (Org.). O objeto da angústia. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2005.

FREUD, Sigmund. 1912. “A dinâmica de transferência”. Em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XII, Ed. Imago, 1996.

______.1914. “Recordar, repetir e elaborar”. Em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XII, Ed. Imago, 1996.

LACAN, Jacques. “Seminário livro X - A Angústia”. Lição IX. 23 de janeiro de 1963.

SANTOS, Lúcia G. “O conceito de repetição em Freud.- Repetição e transferência”. São Paulo. Escuta, 2002.