O GRUPO COMO DISPOSITIVO


Allan de Aguiar Almeida
Daniele Carli de Oliveira

Com as mudanças advindas da Reforma Psiquiátrica o campo da saúde mental se depara tanto com as lutas macropolíticas de alteração e organização dos serviços a oferecer assistência, quanto com a questão dos dispositivos de intervenção e eficácia clínica. Assim é que o questionamento do saber psiquiátrico e das práticas asilares, nos anos 70 vem a transformar a realidade da assistência psiquiátrica em nosso país.

A reforma vem assim como eixo de ruptura dos processos e discursos da serialização da loucura e de todos os métodos tomados até então pela psiquiatria organicista. O objetivo vem com os ideais de desinstitucionalização e desospitalização que vem a preconizar uma possível ressocialização e reabilitação, articulados com solidariedade, inclusão e cidadania.

Assim a cidadania historicamente negada é restituída, há a substituição e criação de serviços substitutivos de assistência ao usuário junto com uma intervenção à comunidade frente a se criar condições favoráveis de reintegração. Surgem os Centros de Atenção Psicossocial, os ambulatórios ampliados, os hospitais-dia, as oficinas terapêuticas e os serviços de saúde mental nos hospitais gerais, além de centros de convivência e lares abrigados.

Ocorre assim todo um processo de criação e de formação de estratégias à desinstitucionalização da “doença mental”, onde começam a ser observadas a utilização em larga escala das práticas grupais, sejam nas oficinas, nos grupos terapêuticos, grupos de família, de medicalização e tantos outros.

As práticas grupais têm sua crescente ascensão na década de 70 e apresentam um decréscimo na década de 80, um dos motivos pode ser devido a grande oferta de consultórios privados. Nos serviços públicos as práticas grupais continuaram a ser utilizadas, porém tidas como recursos desqualificados e de modos operativos no sentido de que são mais práticos ao se atender várias pessoas ao mesmo tempo não tendo assim que deixar com que as filas cresçam.

A partir dos anos 80 com o acolhimento do “louco” advindo da reforma e com os movimentos da luta anti-manicomial criam-se os CAPS. Os Centros de Atenção Psicossocial trazem de volta a prática grupal na sua operacionalidade vindo assim a privilegiar as trocas interpessoais e os elementos necessários à reintegração e reinserção. Enfatizando-se assim, uma política de grupalidade e de integração dos próprios profissionais deixando o isolamento privado/individual e apostando no investimento de políticas grupalistas e coletivas.

Assim destacam-se as oficinas e os grupos terapêuticos como estratégias de promoção de uma nova assistência da saúde mental que vem a possibilitar um vínculo, tanto para os quadros de psicose, quanto para os de neurose grave, evitando-se novas e constantes internações.

Faz-se assim a desconstrução e a desmontagem do ideário de “doença” na família e na sociedade frente ao “louco” possibilitando um outro modo de compartilhar o sofrimento, e consequentemente uma nova forma de se lidar com este.

Formam-se desse modo grupos a partir de discussões conjuntas, em função das necessidades apresentadas, tais grupos têm o caráter da heterogeneidade, são abertos, sem temática predeterminada, mas que se constrói e se configura no durante do processo.

Frente à naturalização do sofrimento psíquico acreditamos que:

“É um corpo individualizado, privatizado, intimizado, que sofre por não poder expressar em sua multiplicidade, em suas diferenças. É um corpo constrangido em sua experiencia pessoal que sofre psiquicamente” [1].
Quanto ao uso do grupo frente à quebra de processos homogeneizantes, identitários e individualizadores, percebemos que nas oficinas enfatizam-se a reinserção social, a cidadania, a partir daquilo a vir a ser produzido num espaço. Porém quando o grupo é tomado como um conjunto de indivíduos mantém-se as mesmas noções de sujeitos/indivíduos, estabelecidos a partir de uma tal escuta clínica dos aspectos “conflitivos”, “internos” e “intimistas”. Perdem-se assim a operatividade frente aos processos de subjetivação que escapam à dicotomia clínica e política.

A reforma psiquiátrica, valorizando as noções de cidadania, de reinserção no socius, indica o compromisso com o coletivo, e é aqui que o grupo aparece como um instrumento facilitador de tal objetivo. Encontramos assim a oposição que se faz entre “indivíduo” e “grupo”, e as concepções que vão de um máximo de individualidade ao mínimo de sujeição respectivamente. O duelo a este tipo de pensamento se introduz ao analisarmos os processos de naturalização a que somos tomados ao longo da história, e ficando atentos para seus múltiplos componentes de subjetivação.

“Ao invés de ‘indivíduos’ pensamos em formas de subjetivação temporárias e múltiplas. Ao invés de ‘grupos como novas identidades’, tranformamo-os em dispositivos analíticos, máquinas de decomposição de unidades” [2].
Assim acreditamos em praticas sociais que construam não somente novos domínios de saber, novos objetos, conceitos ou técnicas, mas naquilo que faz gerar “novas formas de sujeito” – o que vem a ser um desafio. Faz-se dessa forma, necessário ao campo da saúde mental, intervenções macropolíticas que configurem modos de se repensar a clínica enquanto processo de produção de subjetividade, de história e política.

O grupo destaca-se como a forma privilegiada por sua capacidade diferenciadora e múltipla dos processos contemporâneos de individualização, produzindo o desejo de explorar a invenção. Rupturas que gerem novos modos de subjetivação para se interferir na realidade, com uma rede de fluxos que se cruzam, criando diferenças, construindo outros modos de existências e devires.

De tal modo o grupo como dispositivo, é aquele que interfere nos modelos de subjetivação privatizantes e intimistas, e que agem como operadores de rupturas movimentos, e lutas, frente a formas de poder rígidas, individualizantes e totalizadoras.


BIBLIOGRAFIA

[1] BENEVIDES DE BARROS, R. “O dispositivo grupal no processo da reforma Psiquiátrica do Brasil” Em: A Loucura da História. Fundação Oswaldo Cruz. Rio de janeiro 1998. p.281.

[2] BENEVIDES DE BARROS, R. “Sobre a oposição indivíduo/grupo: Contribuições de Foucault”. PUC-SP. 1991. p.12.