Ronaldo Soares
“A psicanálise não terá jamais a pretensão de prometer a felicidade. Mas também não a proibirá a ninguém. Ela convidará cada um a buscar o que pode ser a felicidade para si.” - Charles Melman
O psicanalista francês Charles Melman foi um dos colaboradores mais próximos de Jacques Lacan (1901-1981), o principal herdeiro de Sigmund Freud na França. Melman chegou ao Rio de Janeiro nesta quinta-feira, dia 24, e participa na manhã de sexta do seminário "E o que é que ele quer, o psicanalista?", realizado no Hotel Glória. No final da tarde autografa seu novo livro, A Prática Psicanalítica Hoje. Antes de viajar, concedeu por telefone a seguinte entrevista ao repórter Ronaldo Soares, da sucursal carioca de VEJA.
Veja — Por que a psicanálise vem perdendo terreno para terapias que prometem resultados imediatos?
Melman — Porque ela não busca nenhum tipo de cura, não se propõe a isso. Está, portanto, na contramão da medicina, cuja história é rica em experiências baseadas na cura, com métodos variados. Alguns desses métodos, até pelos efeitos de sugestão, não são ineficazes. Mas é preciso saber se nós preferimos os métodos fundados sobre a sugestão ou se consideramos que é melhor privilegiar a livre atitude e o pensamento de cada pessoa, e assim estimular nela sua autonomia de julgamento. Nos períodos de crise moral, como o atual, proliferam os métodos que prometem a cura. Aos que escolhem esse caminho, só me resta desejar boa sorte.
Veja — Além de espaço, a psicanálise perdeu prestígio?
Melman — Ela perdeu prestígio junto aos intelectuais, porque os que se inspiram em Freud não conseguiram dar prosseguimento de forma válida e original ao trabalho dele. Desse vazio surge a impressão de que Freud está ultrapassado. A última contribuição realmente original ao pensamento de Freud foi dada por Lacan, que já morreu há quase 30 anos (em 1981). Ele deixou ainda muito por fazer para que possamos dar conta das mudanças que estamos presenciando.
Veja — O senhor concorda que há uma excessiva utilização de psicotrópicos atualmente?
Melman — A saúde hoje é algo que se calcula em bilhões de dólares. É compreensível e até inevitável que os laboratórios estimulem o alto consumo de medicamentos como os antidepressivos. A França, por exemplo, tornou-se um grande consumidor desses produtos justamente em virtude das ações que os representantes dos laboratórios desenvolvem junto aos consultórios médicos. A questão é que a hiper-medicalização contém muito mais riscos do que vantagens. No caso das crianças, por exemplo, isso fica evidente. Sobretudo no que diz respeito ao uso precoce, recomendado pelos laboratórios, de neurolépticos (inibidores das funções psicomotoras). Esses medicamentos vêm sendo usados nas crianças para tratar distúrbios de personalidade ou para combater problemas como insônia ou falta de apetite, entre outras coisas. Trata-se de algo absolutamente condenável, com implicações nefastas tanto sobre o desenvolvimento quanto sobre o estado físico da criança. Outra conseqüência grave da hiper-medicalização é a predisposição do indivíduo para desenvolver dependência química. Primeiro, de remédios. Mas em seguida, possivelmente, de produtos fora do mercado legal. Com isso, poderemos chegar ao ponto em que a dependência vai parecer uma situação absolutamente normal, porque em muitos casos terá começado na infância.
Veja — O Prozac e as idéias de Freud podem conviver harmoniosamente?
Melman — Eles vivem juntos. Às vezes de maneira harmoniosa e outras, não. No primeiro caso, devemos lembrar que Freud sempre pensou que o processo psíquico tinha um suporte neuro-hormonal. Ele esperava que a ciência descobrisse esse processo. Produtos como o Prozac agem sobre esses mecanismos neuro-hormonais e podem, então, levar a uma modificação do comportamento. Outra abordagem que mostra essa harmonia é lembrar que todos nós, assim como o próprio Freud na juventude, já sonhamos com a existência de uma panacéia de medicamento que dariam conta de todas as dores e todas as dificuldades. O Prozac se apresenta um pouco assim. Mas — e é aí que a harmonia desaparece — será que devemos apostar num procedimento que vai tratar o conjunto dos problemas psíquicos pelas drogas? Ou devemos continuar a levar em conta, primeiramente, a livre escolha do sujeito e, em segundo lugar, o próprio papel do corpo? Nesse sentido, um produto como o Prozac desencadeia um curto-circuito.
Veja — Como assim?
Melman — Dou um exemplo. Digamos que surja amanhã uma droga que, agindo sobre os centros cerebrais, produza um prazer sexual bem superior ao que se pode obter com o corpo. O que vamos preferir? Isso ou um acesso ao prazer sexual que continua a passar pelo corpo, mesmo não tendo a mesma qualidade do que pode ser proporcionado pela droga que atua diretamente sobre o cérebro? Eis o tipo de questão que se coloca com o uso do Prozac.
Veja — Para que serve a psicanálise nos dias de hoje, quando se pode contar com tantos recursos destinados a proporcionar bem-estar psíquico?
Melman — A psicanálise permite a você se debruçar sobre os problemas reais e incontornáveis da existência. Não sobre os problemas ligados a sua infância, ao seu meio social, às neuroses em geral que interromperam seu desenvolvimento psicológico. Ela não propõe uma cura de dificuldades que são próprias da vida social, como as ligadas à vida do casal, à relação entre pais e filhos, etc. Mas permite colocar essas dificuldades em seus devidos lugares e, ao mesmo tempo, tratá-las de outra forma. A psicanálise não terá jamais a pretensão de prometer a felicidade. Mas também não a proibirá a ninguém. Ela convidará cada um a buscar o que pode ser a felicidade para si.
Veja — Quem procura psicanálise atualmente?
Melman — Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos 18 aos 30 anos. Eles não procuram a psicanálise pelo fato de reprimirem seus desejos, mas principalmente porque não sabem o que desejam. É uma situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje, principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar.
Veja — A que o senhor atribui essa mudança?
Melman — Nossos jovens foram criados em condições que promovem a busca rápida do prazer máximo e sem obrigações. É o meio social que propõe a eles essa maneira de agir em sociedade. O problema é que o tratamento dispensado ao desejo produz situações de dificuldades para os jovens. E isso os leva ao divã.
Veja — Que situações são essas?
Melman — Muitos jovens encontram dificuldade para desenvolver plenamente uma vida sexual. Parece paradoxal, porque hoje em dia o sexo é muito acessível. Mas na verdade essa facilidade leva à busca de uma vida sexual sem compromisso, que proporcione um prazer ocasional, como o cinema, a bebida ou a dança. Há aí uma mudança interessante, talvez uma tentativa de se proteger em relação ao compromisso que uma vida sexual pode evocar. A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei de nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições. Esses momentos de prazer, que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos mas não organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos que podem desaparecer porque não terão continuidade. Isso é novo. E é o que está por trás do sucesso do mundo virtual proporcionado pela internet.
Veja — Por que o mundo virtual é tão atraente?
Melman — Porque é lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.
Veja — Por que atualmente os casamentos não duram? A vida a dois ficou inviável com o novo arranjo social que igualou os papéis do homem e da mulher?
Melman — Pelos padrões vigentes na sociedade atual, nos é recomendado ao longo da vida renovar os objetos dos quais nos servimos. Trocar de carro, de tapetes, de mobília, etc. As relações afetivas acabaram seguindo esse mesmo princípio, dos objetos descartáveis. Elas não resistem a esse apetite de rejuvenescimento e renovação da sociedade contemporânea.
Veja — Freud explica as famílias atuais?
Melman — Não acredito. Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não tenha precedente na história, que é a dissolução do grupo familiar. Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis. Fico surpreso que os sociólogos e antropólogos não se interessem muito por esse fenômeno. Nesse processo, podemos constatar que o papel de autoridade do pai foi definitivamente demolido. Antes, o menino tinha na figura do pai um rival e um modelo. Um rival que despertava nele o gosto pela competição, e um modelo na busca do prazer sexual. Já para a menina, tratava-se de um homem em quem ela procurava se completar. Hoje, com o declínio da figura paterna, nossos jovens podem estar menos propensos a batalhar pelo sucesso, a estabelecer um ideal de vida e até a descobrir o gosto pelo sexo. Nesse caso, a droga proporciona satisfações mais fáceis.
Veja — É por isso que o consumo de drogas não pára de crescer?
Melman — Eu diria que o apelo das drogas é tornar a existência cada vez mais virtual. Dito de outra forma, as drogas afastam as contingências da realidade. Trata-se de uma outra maneira de celebrar a virtualidade, diferente da proporcionada pela internet. As drogas permitem uma aventura psíquica, momentânea, uma trip, que supostamente não teria outras conseqüências.
Veja — Como a psicanálise vê as fobias na sociedade atual, que vive sob ameaças concretas, decorrentes de problemas ambientais e da escalada do terrorismo, por exemplo? É possível viver sem medo?
Melman — Pode parecer um paradoxo, mas isso acrescenta pimenta à existência, esse sentimento de que vivemos constantemente ameaçados. É um reencontro com os grandes medos antigos, os medos milenares, ligados a uma suposta proximidade do fim do mundo. O que é dramático é que hoje não se trata apenas de uma crença imaginária, mas sim de algo muito mais grave do que isso. Criamos armas de destruição em massa, por exemplo. Não sei se é possível nem se seria positivo acabar com o medo na sociedade. Ele, de certa forma, é um fator de proteção do sujeito, permite saber quem é o inimigo.
Veja — Como entra a religião nesse arsenal de enfrentamento das angústias humanas?
Melman — A religião sempre foi bem-sucedida em dar soluções às angústias do homem, porque consegue explicar o que é esperado de cada um. Explica o lugar da pessoa no mundo e o papel que ela tem a desempenhar. Freud dizia que a força da religião reside no fato de que ela responde às perguntas que ninguém mais pode responder. Em nome disso, muitos se sacrificam inclusive financeiramente, doando uma parte significativa de seu salário para garantir que um ser superior vai livrá-lo das ameaças trazidas por suas falhas. Isso é muito visível em um certo número de religiões novas, como as neopentecostais. Desse fenômeno, que vocês conhecem bem no Brasil, posso citar como exemplo a Igreja Universal do Reino de Deus. Fui assistir a um culto deles e fiquei muito impressionado. Estive numa catedral, acho que em Recife, produzida exatamente como a Disneylândia de Orlando, com jogos de luzes bem feitos e pastores que fazem o estilo rapazes bonitos e simpáticos. O prazer que o público tinha em cantar e dançar junto, em subir no altar para dar dinheiro, era incrível. E eram pessoas pobres, claro.
Veja — Freud marcou o pensamento no século 20. Ele sobrevive ao século 21?
Melman — Não tenho certeza. O mundo caminha na direção oposta à proposta pela psicanálise. Os remédios e, mais recentemente, os avanços da neurociência, permitem ações diretas sobre os processos cerebrais, deixando em segundo plano a subjetividade. Então a vida psíquica, e eu sou pessimista nesse aspecto, corre o risco de ser cada vez menos determinante sobre o destino de cada um. Freud chegou a escrever que um dia a ciência estaria em condições de quantificar, de isolar as substâncias responsáveis pelos eventos psíquicos. Mas os que estudam o cérebro não estão interessados em Freud.