Allan de Aguiar Almeida
Podemos afirmar que tanto a reforma psiquiátrica como a psicanálise apostam em um sujeito na psicose, seja este sujeito o sujeito psicológico, o sujeito cidadão, o da ação social ou mesmo o sujeito do inconsciente.
A partir da década de 70 com as intervenções ocorridas na ordem político-social a questão da cidadania surge no âmbito das discussões frente aos movimentos de reformas e reivindicações sociais naquilo que diz respeito aos doentes mentais circundando-se assim a assistência psiquiátrica, política, jurídica, cultural e suas relações com a questão da loucura.
Hoje percebemos três referenciais principais no que toca a reforma brasileira: a desistitucionalização, a reabilitação psicossocial e a “clinica institucional”.
A desistitucionalização vem negar não a instituição hospital psiquiátrico mais a instituição “doença mental”, desconstruindo tais formas, rompendo-se com os paradigmas clínicos e trabalhando a existência do paciente, suas relações com o corpo social promovendo novas formas de viver e convívio através de artifícios terapêuticos como as oficinas, como por exemplo, onde surgem a pintura, a poesia, a escultura e outras tantas formas de arte que vem a promover a cultura e elos com o social.
A idéia de reabilitação vem com o ideal de que tratar é recuperar a competência social, mesmo que vindo com o discurso pedagógico para a vida social, ao passo que a clinica institucional visa fazer da instituição um lugar de laço social para aqueles que possuam tais laços desfeitos ou de certos modos rompidos.
Principalmente a partir desse último fato é que partem da idéia de que a psicose é uma condição de existência e que procuram assim tirar principalmente duas consequências como elementos norteadores: um naquilo que se refere à aplicação dos cuidados, e outro fazendo da instituição, instrumentos para se enfrentar clinicamente a difícil questão e articulação do sujeito na psicose.
Essas três vertentes conjugadas trabalham na transformação do campo psiquiátrico através daquilo que chamamos por “atenção psicossocial”, vindo contra a demissão subjetiva induzida até então pelos sistemas manicomiais, situando o tratamento na questão da existência e propondo de certa forma que a questão psiquiátrica dê lugar as concepções de sujeito.
Apostando-se assim que na psicose há sujeito, a orientação psicanalítica, vem defender a idéia de que o sujeito se produz como efeito do trabalho clinico, de um sujeito que se produz cada vez que toma a palavra e do momento em que esta pode ser acolhida enquanto tal, ou seja, partindo de que esta palavra corresponda a uma escuta e uma intervenção que vem a localizar o sujeito em seu sintoma, delírio ou invasão alucinatória.
A inserção da psicanálise na reforma psiquiátrica vem no embate inicial e direto com uma critica a clinica do medicamento que recua com o ideal terapêutico mera, única e puramente biologicista. A psicanálise vem dar lugar a uma inscrição no laço social oferecendo ao psicótico um espaço de trabalho subjetivo onde ele possa fazer dos fenômenos e das dificuldades que o acometem uma inscrição de sujeito.
Promovendo um trabalho que cria tais condições e possibilidades para tal inscrição, tomando-se o discurso e obra do sujeito, partindo de um olhar no qual o delírio é uma tentativa de cura que nos leva diretamente a buscar neste delírio o próprio sujeito.
A função do analista seria assim acompanhar o sujeito neste trabalho próprio, único e singular no qual se convoca a posição de sujeito, buscando modos de amenizar a invasão alucinatória e criando-se possibilidades de uma nova existência um tanto menos avassaladora pelo Outro.
Mais do que necessário frente à prática clinica, naquilo que se refere principalmente à psicose e fundamental nessas intervenções quando nos lançamos num prognóstico de trabalho é a não antecipação frente aos resultados ou efeitos impostos por nossa lógica ou ideais de saúde mental, ou seja, a neurotização da psicose, ou mesmo naquilo que diz respeito ao bem estar social nos levando a concepções enganosas e não nos deixando abertos a estrutura e a lógica bem própria em torno da qual giram a questão da psicose.
Nessas formas de trabalho vemos que o fundamental é que o sujeito trabalhe nisto que a psicose se mostra, na sua produção encontrando os elos de sua existência enquanto sujeitos e frente ao Outro.
Assim o “psico” e o “social” se referem à posição do sujeito diante do Outro, que nos leva a dizer que para a psicanálise o “sujeito é necessariamente o social, pois se constitui inscrevendo-se como sujeito no campo do Outro”.
Na reforma o social tomado como referencia à cidadania priva a recuperação da competência no socius e do outro lugar neste social, “reorganiza o campo das praticas e instituições de tratamento da loucura estabelecendo locus e molduras no tratamento clinico institucional”. A radicalidade da psicanálise não visa a cidadania ou mesmo o cidadão, muito pelo contrario, toma essa cidadania como universal a ser atingido por todos os sujeitos.
Para a psicanálise “o lugar social do sujeito é o próprio trabalho do sujeito e não um bem que ele reclama. O trabalho de sua constituição como sujeito, a cada dia, a cada vez em que a questão de sua relação com o Outro lhe é imposta. É essa posição do sujeito, sempre social, sempre singular, que concerne à clínica, à diferença de outros níveis de agenciamento da questão da loucura”.
Desse modo a psicanálise contribui para mostrar a radicalidade inscrita pela psicose, reconhecendo essa diferença no lugar de a abolir, dando lugares e sentidos de fato e admitindo o seu real enquanto enigma.
BIBLIOGRAFIA
TENÓRIO, F. Reforma Psiquiátrica e Psicanálise: um trabalho necessário. In: FIGUEIREDO, A. C.; CAVALCANTI, M. T. (Org.). A Reforma Psiquiátrica e os desafios da desinstitucionalização. Rio de Janeiro: IPUB/CUCA, 2001.
___________ .A Psicanálise e a Clínica da Reforma Psiquiátrica, Rio de Janeiro: Ed. Rios Ambiciosos, 2001.