SINTOMAS ALIMENTARES NA CLÍNICA PSICANALÍTICA


Allan de Aguiar Almeida

Escrever este texto vem de encontro com dificuldades inerentes à clínica onde trabalhar com sintomas alimentares e suas variantes na neurose e na psicose, ou na histeria e na melancolia, surgem como novas importantes questões. Freud ao tratar brevemente do tema em alguns de seus textos admite ter um material empírico escasso e insuficiente para fundamentar com propriedade suas necessidades. Aqui não pretendo concluir nada elaborado face os mesmos problemas.

Freud ao diferenciar inicialmente uma ‘neurose’ e uma ‘psicose’ afirma ser a neurose o resultado de um conflito entre o eu e o isso, e a psicose um resultado de um distúrbio semelhante nas relações entre o eu e o mundo externo. Formula tais hipóteses a partir de sua segunda tópica, contextualizadas em “O Ego e o Id”, e a descreve no artigo “Neurose e Psicose”.

Mostra que nas neuroses transferenciais, o eu recua-se das moções pulsionais do isso, ajudando-o a encontrar um escoadouro motor, ou o proibindo ao objeto a que visa. O eu se defenderia contra essa moção pulsional a partir do mecanismo do recalque, mas o material recalcado lutaria contra esse destino e passaria a criar para si uma representação substitutiva, um sintoma, um tipo de conciliação mediante o eu.

Nas psicoses, defende Freud que o mundo exterior não seria percebido, suas percepções não possuiriam efeito qualquer, ao passo que o mundo interno, como uma cópia do mundo externo, perderia toda sua significação, ficando a cargo do eu criar um novo mundo externo e interno, construídos de acordo com as moções desejosas do isso. O motivo dessa dissociação do mundo externo seria uma frustração muito forte, um desejo intolerável por parte da realidade, que faria com que o delírio funcionasse como “um remendo no lugar em que originalmente uma fenda apareceu na relação do ego com o mundo externo”.

Assim tece considerações no qual o delírio seria como um remendo no lugar de uma fenda aberta nas relações do eu com o mundo externo, onde as características do processo patogênico seriam recobertas por manifestações de uma tentativa de cura, de uma reconstrução da realidade.

Marcando o foco de nosso interesse aqui, Freud presume que tem de haver doenças que se baseiam em um conflito entre o eu e o supereu e supõe ser a melancolia o exemplo mais típico. Designa-se assim o nome de ‘psiconeurose narcísica’ para a categoria de distúrbios a esta similar e assim não vê razões para separar a melancolia dos outros estados de psicoses. As neuroses de transferência assim corresponderiam a um conflito entre o eu e o isso, ao passo que as neuroses narcísicas seriam um conflito entre o eu e o supereu e as psicoses um conflito entre o eu e o mundo externo.

Ao tratar do “luto”, Freud nos aponta que este é em linhas gerais uma reação a alguma perda que envolve um afastamento daquilo que constitui uma atitude normal para com a vida e que confia que este seja superado após um período de tempo, tempo este necessário no processo de elaboração. Descreve, porém que em algumas pessoas as mesmas influencias podem produzir uma “melancolia” e que esta seja originária de uma disposição patológica.

Estaria para a melancolia um estado de desanimo profundo, perde de interesses gerais, inibições de toda ordem atrelados a diminuição do sentimento de si, vindo de encontro com auto recriminações, culminando com uma sintomatologia delirante e ao afastamento de quaisquer atividades que não estejam ligadas a pensamentos sobre o próprio sujeito.

No luto, o trabalho estaria para desligar a libido investida naquele objeto específico, deixando o ego livre para outros novos investimentos libidinais. Na melancolia a reação da perda do objeto amado se mostra mais radical, pois reconhece ser uma perda de origem mais ideal, onde o sujeito não sabe o que perdeu. Seu eu tornou-se vazio, desinvestido e empobrecido.

Enquanto no luto, o mundo torna-se vazio, no melancólico o ego encontra-se desprovido de valor, incapaz de realizações e pronto para as mais diversas punições. Freud nos fala que nesse quadro da melancolia o delírio de inferioridade se mostra também na insônia e na recusa de se alimentar tudo por uma superação da pulsão inerente a vida.

Na melancolia e no luto vemos uma perda frente ao objeto, mas na melancolia esta perda aponta uma perda relativa ao próprio eu, onde parte desse eu se coloca contra a outra criticando e consequentemente tomando-o como objeto, sendo tal insatisfação a marca mais pregnante. O núcleo melancólico encontra-se em auto-recriminações feita a um objeto amado que fora deslocado diretamente do objeto para o eu do sujeito.

Nesse processo afirma Freud que a libido não deslocada para o objeto foi retirada para o eu não sendo empregada devidamente e estabelecendo uma identificação do eu com o objeto abandonado, onde nota-se aí que “a sombra do objeto caiu sobre o eu”, e este objeto se torna o próprio objeto abandonado. A perda objetal se transforma assim numa perda do ego e nesse processo de identificação, frente a esse investimento objetal há um retroceder ao narcisismo. Tal identificação narcisista com o objeto se torna assim um substituto de todo o investimento erótico.

Relacionando aos sintomas alimentares, Freud mostra que a identificação é uma etapa preliminar da escolha objetal que é a forma primária pela qual o eu elege um objeto. O eu em conformidade com a fase oral deseja incorporar a si esse objeto devorando-o, o que atribui na recusa de alimento nos casos graves de melancolia. Na tendência a melancolia, nos resultados de suas observações, Freud afirma que há o tipo narcisista de escolha objetal, assim como na regressão do investimento objetal para a fase oral ainda narcisista da libido.

Nesta identificação narcisista o investimento objetal é abandonado e na histeria o investimento persiste em certas ações e quadros isolados. Há digressões entre a melancolia e o luto: na melancolia a relação com o objeto origina um conflito a sustentar um tipo de ambivalência, onde o trabalho do luto leva o eu a desistir do objeto declarando-o morto, mas convida o eu a continuar na existência. Na melancolia a luta ambivalente das pulsões acaba por fixar a libido ao objeto, depreciando-o, denegrindo e matando-o.

Podemos pensar na constituição do sujeito a partir da constituição de sua imagem, onde o corpo fragmentado se reconstitui como unidade formal e imaginária graças à função da imagem especular do eu que apresenta ao real fragmentado do corpo uma solução ideal.

Na anorexia o fator constituinte da imagem especular parece retornar no real, numa espécie de independência da imagem em relação ao corpo do sujeito. Buscando apagar a dimensão pulsional do corpo, o sujeito acaba por retornar do exterior, na forma da imperfeição de sua imagem ficando marcada assim a dificuldade do sujeito, a partir de uma fraca identificação simbólica, de subjetivar o real de sua sexualidade em jogo, o que é claro nos casos de anorexia que irrompem principalmente na adolescência.

O retorno daquilo que não é simbolizado pelo sujeito, o corpo sexualizado e como esfera de gozo, pode se manifestar tanto em episódios alucinatórios oriundos de uma psicose até os mais variados episódios de alterações imaginários não estruturalmente definidos, daí por vezes a dificuldade de diagnostico estrutural.

Tratar da imagem, e da especularização é se remeter imediatamente ao texto lacaniano do “Estágio do espelho como formador da função do eu”, naquilo que este apresenta a possibilidade de repensar a especificidade do próprio estádio do espelho em relação à diferença sexual e à sexuação feminina. Questão central na anorexia e nos sintomas alimentares outros.

Se o espelho devolve uma imagem ideal e o oferece um corpo à mercê de uma insuficiência primordial, a partir de um gozo jubiloso, um revestimento narcisista se anuncia à própria constituição do sujeito como sua significação mortal.

Frente ao espelho, a angústia anoréxica reflete a ambivalência desse duplo na imagem do corpo magro que capta um gozo narcisista do sujeito na realização de uma imagem ideal que parece escapar da marca do tempo e da castração e de uma imagem que não se realiza completamente e que evoca a idéia de more, da contingência e da castração que corta o domínio narcisista. Esse limite da especularização narcisista pode vir a transformar o espelho, que se faz de suporte identificatório, em um objeto identificador de angústia.

Na neurose, e mais especificamente na histeria, pela organização do estádio do espelho há uma especularização incompleta da imagem que deixa em suspenso a questão sobre o ser homem e o ser mulher. A mulher vem assim narcisicamente procurar em outra mulher uma postura real que irá suplementá-la em sua própria imagem especular e idealizada.

A histeria se concebe como a dificuldade do feminino, de tomar corpo no momento da constituição de sua imagem narcisista trazendo como dificuldade a recusa do corpo. Contemplando sua imagem a mulher busca decifrar o enigma de sua feminilidade em seu aspecto simbólico, e encontrar a ausência de um significante que a lei leve a nomear o Outro sexo.

Quando a relação do sujeito com a imagem de seu corpo frente ao espelho sai do período de latência característico da puberdade é que se pode dar o desencadeamento da anorexia, não por um vazio narcísico, mas por uma distorção, uma invalidação radical de uma dimensão da imagem. O espelho da anoréxica observa com angústia e devolve em efeito uma imagem imperfeita, por vezes defasada, excessiva e sempre inadequada.

Dessa forma o sujeito neurótico toma para si a idéia de se tornar o objeto perdido para provocar uma resposta no Outro frente o perigo de seu desaparecimento. A imagem da mulher de corpo magro também se converteu em um ícone social, porém a paixão anoréxica pelo espelho não se limita a seguir tal curso até um ideal de assexuação. O corpo magro, esquálido esta para a anorexia como um empuxo ao significante de desejo do outro, pois a anorexia, diferentemente da histeria parece fazer um tipo de ruptura com o Outro.

Atualmente a psiquiatria toma a depressão a partir de um déficit no desejo, como um estado de aniquilação e enfraquecimento moral originário fundamentalmente por deficiências neuro-orgânicas. Para a psicanálise há prioritariamente a marca de um “afeto depressivo”, de algo a revelar a relação do sujeito com o Outro, uma resposta do sujeito a este Outro. Neste afeto depressivo há o índice da perda dos objetos de amor, da sustentação narcísica, onde o sujeito acaba por ignorar a castração do Outro, acreditando e buscando esse Outro ideal.

Massimo Recalcati nos diz que na estrutura neurótica a depressão diz da própria castração, naquilo que traz da relação do sujeito com o Outro, ou seja, o afeto depressivo atualiza algo da castração, onde a elaboração do luto ocorre devido à perda objetal e ao conseqüente esvaziamento de gozo. O afeto depressivo nos mostra o efeito letal da marca significante impressa originariamente na constituição desse sujeito, mostra a aderência do sujeito ao Outro e o seu modo de ocultar a castração para preservar esse Outro como ideal. No mundo vazio do sujeito deprimido cabe ao trabalho de luto reajustar o tecido significante que encobre a existência, desprendendo o sujeito da identificação a ser o ideal de seu próprio Outro ideal.

Tal afeto depressivo que aqui tratamos, atravessa as estruturas clínicas e se mostra na sua forma mais radical dentro do campo das psicoses na melancolia. Se na depressão neurótica é o mundo que falta, que se esvazia devido à perda do objeto, na melancolia é o “eu” que se esvazia, que se apaga, que se perde. O real da estrutura melancólica traz uma perda sem objeto, não simbolízável que vai marcar o esvaziamento do sujeito, como também referido anteriormente.

Na depressão neurótica o afeto permanece em conexão ao Outro e na posição melancólica há a ruptura radical de desconexão ao Outro mantendo uma identificação não dialetizável com a Coisa, ou seja, não ascendendo à dimensão do desejo e por sua vez identificando-se a um gozo primordial, com a própria pulsão de morte. O sujeito na melancolia coisifica-se ao objeto, e este se torna. Se na neurose há pelo luto um trabalho de simbolização de um furo real, na foraclusão o furo está diretamente instalado no real fazendo retornar aquilo não simbolizado.

Na anorexia-bulimia o sujeito não busca recuperar o objeto alimento levando-o a categoria de objeto perdido, mas a carga de insatisfação que vem a dominar o leva a um reencontro com a Coisa apontando aqui uma estrutura histérica, na qual nada se faz de suficiente para restituir ao sujeito o gozo subtraído pela lei da castração. Na anorexia-bulimia histérica o sujeito vai numa busca imaginária do falo, através do alimento.

A anoréxica identifica se fazendo como o objeto perdido para o Outro, a fim de encontrar no Outro uma falta. Para Recalcati a bulímica por sua vez, devorando o objeto para alcançar o falo busca acumular o objeto alimento por apropriação mesmo reconhecendo ser imaginária e nunca suficiente o ato de comer. Para ambas mostra-se a impossibilidade para o sujeito de reencontrar no objeto a Coisa. O afeto depressivo se mostra no ponto de não coincidência entre o objeto alimento e a Coisa, e ainda numa identificação masoquista do sujeito a um ideal mortífero de corpo magro.

O domínio que o ideal exerce sobre o real da pulsão exclui a contingência do desejo, onde o ideal encontra-se sobre a pulsão. Maneja-se o desejo como uma recusa para salvar o desejo do risco de sua aniquilação. Ao enunciar não ao Outro que confunde a demanda com o desejo, ao marcar a diferença estrutural entre satisfação, necessidade e do desejo do Outro a anoréxica defende sua própria peculiaridade subjetiva em relação a este Outro. Se a estratégia anoréxica se equipara a lógica histérica ao sustentar a instância de separação e da dialética do desejo frente ao outro, sua radicalidade se reduz à falta, no caso a falta do desejo de comer.

Na bulimia, o afeto depressivo, se manifesta no surgimento do real pulsional em contrapartida a identificação imaginariamente mantida pelo Ideal anoréxico, onde é o real da pulsão que submete o Ideal. Nos casos de evolução de uma anorexia pode-se, como afirma Recalcati, tomar a bulimia como um “dialeto da anorexia”. A estratégia do sintoma bulímico busca o consumo até ir de encontro ao objeto imaginário.

O registro fálico do afeto depressivo indica uma desvalorização do sujeito ao desejo do Outro, onde por não encontrar um lugar no Outro se experimenta intensas vivencias depressivas com consequentes desmoronamentos identificatórios, com perda de um objeto com funções de suporte narcísico e ao mesmo que de valor fálico.

A melancolia enquanto registro não fálico da depressão, se caracteriza pelo retorno a um campo real de um significante foracluído da ordem simbólica a partir de uma mortificação, onde há uma queda na dialética, o sujeito se encontra “cadaverizado” na posição de objeto de gozo do Outro. Na anorexia melancólica há um Outro que não carece de nada, impossível, inteiro, sem desejo. O melancólico aqui está condenado a um automatismo delirante de uma auto-acusação para conter a ameaça de gozo do Outro, onde a letalidade do significante é a marca própria dessa cadaverização do sujeito.

Na anorexia melancólica está a recusa, o efeito que a divisão do significante inscreve sobre o sujeito, onde o sujeito está “morto-vivo” por não estar inscrito no registro simbólico da metáfora paterna, mas identificado à Coisa, ao objeto. Nesta identificação melancólica à Coisa, a descrição freudiana da “sombra do objeto caindo sobre o eu” descreve bem essa identificação da anorexia-bulimia. Traçado ainda no desmembramento pulsional onde a pulsão de morte se impõe, levando o sujeito ao gozo negativizado próprio do significante não limitado.

Na anorexia-bulimia melancólica o sujeito coincidido ao objeto se apresenta nas formas clássicas de delírio de culpa e auto-acusação, de desvalorização, de isolamento narcísico, de identificação ao corpo magro, de não investimento na comida, de anulação discursiva e subjetiva, frente ao enfraquecimento da cadeia significante e á sua conservação objetal.




REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FREUD, SIGMUND. 1914. “Sobre o Narcisismo: uma introdução”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XIV, Ed. Imago, 1996.

_________.1917. “Luto e Melancolia”. Em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XIV, Ed. Imago, 1996.

_________1923. “Neurose e Psicose”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XIX, Ed. Imago, 1996.

LACAN, JACQUES. 1947. “O Estádio do Espelho como formador da função do eu”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

RECALCATI, MASSIMO. “Clínica del vacio – anorexias, dependencias, psicosis”. Madrid: Editorial Síntesis, 2003.