O EXISTENCIALISMO NA TÉCNICA PSICOTERÁPICA



Allan de Aguiar Almeida

Kierkgaard é quem vai afirmar que ajudar ao outro é na verdade fazê-lo se desembaraçar dos laços da própria ilusão, a fim de que se possa chegar ao que realmente se é, ilusão essa que só se pode destruir de modo indireto.

Tudo aquilo que diz respeito ao conhecimento e a questão da técnica psicoterápica é posto em jogo com o pensamento do filósofo Martin Heidegger, ou seja, são vistos diferentemente da ótica tradicional e do pensamento moderno. O pensamento heideggeriano reestruturou radicalmente os postulados metafísicos tradicionais, a partir de uma conceituação do ser compreendido necessariamente em sua relação com o tempo e suas circunstâncias reais.

Ser homem é ser desde já uma abertura pré-compreensiva, na qual todo conhecimento é uma elaboração posterior do que já se abriu, de forma não temática à pré-compreensão, onde não se interpreta para compreender, dado que só é possível interpretar por que já se compreendeu. A técnica para Heidegger é um saber fazer no qual os campos teóricos e práticos não se diferenciam, é um horizonte histórico de desvelamento de sentidos dos entes ao qual o homem co-responde a sua maneira, a técnica é assim uma possibilidade de transformação histórica, na qual, o homem apreende a si mesmo e aos outros.

A técnica em Heidegger, para além das representações de causa e efeito é uma produção de verdade, de desvelamentos, de certas possibilidades de sentido dos entes, é a própria chance para se levar a uma meditação mais profunda acerca do ser. Deste modo a essência da técnica torna-se dual no sentido de que convoca o homem a requisitar e a ser requisitado por tudo, problematizando sua essência enquanto verdade, como equivalência ao ser, e ainda ao relembrar ao homem seu lugar. Segundo Heidegger, o homem é "existência lançada ao mundo, obrigada a construir sua própria essência”.

O sujeito moderno enquanto sujeito do conhecimento, do saber, se forma em bases sistemáticas de conhecimento e controle, seja da técnica, seja da teoria, partindo sempre de uma intervenção direcionada sobre seu objeto, a partir de um modelo representacional e racional, buscando assim intervenções eficazes.

A clínica psicoterapia enquanto técnica condiz com a visão moderna de homem e natureza específica na qual se estrutura e fundamenta todo um campo de saber teórico e pratico, da qual se ramificam as mais variadas vertentes, correntes e linhas.

A crítica Heideggeriana da hipótese freudiana de inconsciente tem a mesma relevância e embasamentos que a critica da ontologia cartesiana de res extensa dado que nelas falta o conceito ontológico existencial de mundo. O pensamento de Heidegger se fez exercer por campos importantes da psicoterapia, seja com suas marcas na clinica psicanalítica lacaniana, seja nas intervenções psiquiátricas de Medard Boss. Sua abordagem leva a visões da realidade que visam o exercício de uma abertura fenomenológica ao sentido dos entes, ou seja, enfatizando na clinica o próprio Dasein, este que existe no mundo com os outros, em experiências relacionais que estão numa correspondência direta às aberturas e possibilidades de ser, não supervalorizando ou excluindo elemento algum.

Quanto ao papel do psicoterapeuta, está em jogo o seu próprio modo de abertura que é o orientador de sua postura clínica implicando a totalidade de seu ser-no-mundo, ao passo que o sentido da clinica se dá pela desconstrução da idéia de uma técnica já estabelecida e pré-formada, não obtendo o status de uma neutralidade que visa ajudar indivíduos a alcançar seus objetivos.

Todo o objetivo da psicoterapia assim está na apropriação reflexiva do projeto do paciente através dele próprio, na qual o distúrbio, o sintoma, ocorre devido à restrição da abertura de sentidos, ao aprisionamento de possibilidades, restrições de ser. As intervenções visam questionar essas formas e possibilidades de vir a ser, ampliando-se os horizontes de compreensão, na dimensão do ser para com o outro, nas tematizações e elaborações, nas antecipações da possibilidade de ser, onde se interrogando e surpreendendo acerca da condição de existência se chega ao mais próximo do ser.

Heidegger e a Psicoterapia

Quando nos Seminários de Zoffikonner, Heidegger vê a patologia como um distúrbio da liberdade e da flexibilidade do homem singular, é que se pensa na possibilidade de fazer de sua filosofia uma psicoterapia que vai ajudar ao homem a buscar a liberdade e a flexibilidade na sua relação com o mundo.

Referindo-se ao homem como Dasein, é na sua singularidade como totalidade estrutural, na cotidianidade mediana imprópria e impessoal que se põem como possibilidades de abertura para outras formas de expressão, sejam elas autenticas próprias ou singulares.

O Dasein é o ente aberto às possibilidades ao modo de ser que se dá tanto na pessoalidade, quanto na impessoalidade, naquilo que se dá por mais autentico como naquilo que se dá de mais inautêntico, não se definindo como categórico, pois é abertura de presença, no sentido ontológico que está ás possibilidades. Estacionando-se no impessoal ou nesse inautêntico o Dasein tende assim ao fechamento, onde todos seus limites se restringem as suas possibilidades esquecendo-se de ser e perdendo-se enquanto ente.

A psicoterapia assim se faz como o veiculo que abre caminho à liberdade e aos movimentos de estar-no-mundo; ao psicoterapeuta cabe tomar o lugar do mensageiro do discurso do paciente num processo mútuo de corresponder (onde a fala se desprende enquanto se escuta) e depreender (no qual a escuta se dá simultaneamente com o responder) partindo de uma perspectiva ontológica. Ao psicoterapeuta cabe atuar como um facilitador, deixando com que se mostre aquilo que se oculta, tornando manifesto o que se faz por presente e atual.

A perspectiva fenomenológica existencial vai possibilitar todo um trabalho frente à possibilidade daquele que em angustia pede um lugar mais próprio de existir, reconhecendo-se aí como um ser-para-a-morte, dado que se encontra numa posição de impropriedade, assim o sujeito busca saber-se, a querer ter consciência de sua própria liberdade junto ao ser.

Embasado ainda pela filosofia de Kierkgaard, quem influenciou fortemente Heidegger, o psicoterapeuta existencial auxilia o homem a enfrentar o próprio paradoxo de sua condição existencial, onde o percurso se faz em arrancar o homem de um estágio estético para o religioso, tirá-lo do esteticismo e levá-lo para a fé, fazendo-se com que este se reconheça a si mesmo, assumindo a responsabilidade de todas suas escolhas passadas assim como daquelas que ainda estão por vir nas contingências do mundo.

Kierkgaard é quem vai afirmar que ajudar ao outro é na verdade fazê-lo se desembaraçar dos laços da própria ilusão, a fim de que se possa chegar ao que realmente se é, ilusão essa que só se pode destruir de modo indireto.

Assim é através dessa forma que se busca uma psicoterapia que reconstitui a relação dialética através dos paradoxos que mostre a existência de movimentos que resultará da perda constante daquilo que se “é” e que priorize aquilo que se está “sendo”. Se levará deste modo um confronto entre o necessário e o possível, aquilo do eterno e do temporal, do finito e do infinito, com a pretensão de que o paciente se perceba e se veja de onde está dando conta de que está lançado no mundo, de todas as questões dessa paradoxalidade que o remete aquilo que ele tem de mais singular.

A Analítica do Dasein de Martin Heidegger

Heidegger se dedicou à filosofia a partir de seus estudos com Husserl e àquilo que considerou fundamental no mostrar-se dos fenômenos, o desvelamento, a aletheia. Sua obra principal, Sein und Zeit, trata justamente do “sentido do ser”, a compreensão do sentido do “ser” mesmo.

Contrariando tudo o que diz respeito a uma universalidade, definições e evidências do conceito de ser, Heidegger mostra que a abrangência desse conceito se coloca muito além de uma explicitação e muito mais próximo de um “obscurantismo”, o que por si só, já justifica a relevância de sua explicitação. Abordando uma lógica diferente da questão do ser, Heidegger, critica a metafísica tradicional contrariando a concepção de algo previamente dado e definido, não questionando o que é o ser, mas sim buscando interrogar o seu sentido.

O Dasein, cuja tradução mais próxima se faz por “Ser-aí” é o primeiro interrogado, somos nós mesmos, que diferentemente dos outros entes temos um modo específico de ser, não possuindo uma existência determinada a priori, uma essência.

Heidegger faz uma ontologia geral da analítica do Dasein, ou seja, sua explicitação, seguindo uma linha fenomenológica, busca àquilo que se mostra a partir de si mesmo, de um sentido elaborado. Trata de um Dasein que é mundano, que se origina no mundo, este que é estrutura de sentidos, significações contextualizadas na linguagem e numa história em constante movimento relacional, num desvelamento que vem ao encontro com o outro, co-presença, num “ser-com”.

A facticidade de existir e a factualidade do caráter de “sendo” do Dasein, partindo de que existir é um fato, põem em jogo as “múltiplas possibilidades de ser” no mundo e as “múltiplas possibilidades de não ser” como um projeto, um espaço de poder ser que tem sua estrutura embasada no próprio Dasein. Projeto esse que é o próprio valor temporal do Dasein, na qual se projeta em algumas possibilidades e não em outras.

O existir em Heidegger se dá nessa “diferença mediana e impessoal”, na qual o Dasein foge de si, esquecendo de seu “ser próprio”, relaciona-se consigo próprio como se já estivesse uma forma pré-estabelecida, evitando o novo, as transformações, se mostrado de modo inaltêntico e decadente não se deixando levar à abertura dos fenômenos, não passando assim de comportar o outro enquanto possibilidade.

Ao tratar da linguagem, está é tida como aquilo que é co-originária ao homem, estrutura fundamental de abertura que constitui a essência e que vincula ao sentido do ser, que leva o Dasein ao sentido das coisas na apreensão e compreensão do mundo e no mundo.

Nessa apreensão, nessa abertura, pode-se romper com esse mundo estruturado de significância e aí surgir a angústia frente a uma falta de sentido, de nada, uma disposição que revela o “poder-ser” mais próprio, uma abertura de significações e porventura o estranhamento frente aquilo que se faz por familiar, denunciando a liberdade e as diferentes maneiras do “poder-vir-a-ser”. Essa angustia é o que leva a possibilidade de singularizarão e coloca o Dasein em contato com aquilo que se tem de mais próprio, a própria abertura de sentido.

Uma marca fundamental do pensamento heideggeriano está naquilo que diz respeito à “angústia” e ao “ser-para-a-morte”. Na segunda parte de “Sein und Zeit”, buscando desvelar as possibilidades mais autênticas e próprias desse ente, Heidegger mostra que o Dasein resiste a uma apreensão total, onde ao “ser algo”, também “não se é algo”, nunca chegando a uma totalidade, ficando em permanente inacabamento, em possibilidades e formas de ainda se desvelar que se encerram e possuem seu limite com a morte. Essa morte, tal como o nascimento, limite de possibilidades, faz do Dasein um ser-para-a-morte, pois ao morrer o Dasein torna-se não dependente mais no mundo, dado que assim se finda todas suas possibilidades. Esse ser-para-a-morte enquanto possibilidade revela enquanto projeto a própria angústia da morte.

Frente a essa angústia, a esse não-ser-mais-no-mundo o Dasein pode escolher a possibilidade de “ser si mesmo” naquilo que se tem por mais próprio e singular e ter consciência dessas escolhas é a própria recuperação de todo o projeto de existência que vem a escapar de determinismos e interpretações universais, dado que se está lançado no mundo frente à própria liberdade de se convocar, o poder-ser-si-próprio encarando a angústia como disposição para tal movimento.

A temporalidade se dá como horizonte último das interpretações do sentido do ser; são as ekstases da temporalidade, o porvir (futuro), vigor-de-ter-sido (passado), e atualidade (presente).

A atualidade é a fase privilegiada que dispõe o passado e antecede o futuro, o tempo é visto como uma seqüência dada de pontos que se embasa num “fazer-se presente“ e assim a existência “é” tempo, a história seqüências de vivências “no tempo” onde passado e futuro não são reais, havendo somente futuro e passado presentificados que priorizam o “real’, o “instante”, o “agora”, o próprio “sendo” do Dasein.

A psicoterapia da qual se faz com o pensamento e filosofia de Heidegger tem como objetivo geral tematizar e apropriar a reflexão do projeto do paciente por ele próprio, dado as restrições de aberturas de sentidos feitas, aprisionadas em identificações e possibilidade rígidas de se apresentar ao mundo, busca assim a ampliação do horizonte de significações e compreensões não se limitando a enfoques meramente teóricos e foca a transformação do Dasein que implica numa certa “transformação de mundo”.


 
BIBLIOGRAFIA

RODRIGUES, Joelson Tavares. O Desespero Kierkegaardiano – in IFEN, Internet, disponível em revisto em 2001

SÁ, Roberto Novaes . A analítica do Dasein de Martin Heidegger. Psibrasil, Juiz de Fora, MG, v. 1, n. 2, 2001.

________________. A noção heideggeriana de cuidado (Sorge) e a clínica psicoterápica. Veritas (Porto Alegre), Porto Alegre: PUC, v. 45, n. 2, p. 259-266, 2000.

________________. O Pensamento de Martin Heidegger e a Clínica Psicoterápica. Revista do Departamento de Psicologia (UFF), Niterói/RJ, v. 7, n. 1, p. 45-51, 1995.