INSCRIÇÕES INCONCIENTES


Allan de Aguiar Almeida

Os sintomas histéricos foram a alavanca para as observações e pesquisas para se construir a psicanálise, onde desde seus estudos iniciais, numa fase que podemos chamar de pré-psicanalítica, Freud e Breuer já faziam suas investigações acerca dos mecanismos psíquicos dos fenômenos histéricos junto ao uso da hipnose e sugestão.

A psicanálise enquanto técnica se mostrou inicialmente com o uso da catarse, logo depois o uso da hipnose não foi mais tido como fundamental, ficando o sintoma como o foco principal de atenção do analista. Numa fase posterior temos a efetividade da associação livre e a valorização de todo o contexto do discurso do paciente. Somado a isso temos a construção daquilo que é tido como o elemento mais fundamental da psicanálise, o inconsciente.

Em seus textos principais para o manejo da técnica, Freud vai tratar dos mecanismos e elementos crucias para o trabalho de sua clínica, como a transferência, a rememoração, a repetição e a elaboração, todos obviamente correlacionados com aquilo que é da ordem do inconsciente.

Ao tratar “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos” (1985) Breuer e Freud começam a perceber que o elemento desencadeador dos fenômenos histéricos é com grande frequência algum fato da infância, fato este tido como mais ou menos grave e que de alguma forma persiste durante todos os anos seguintes. Essa conexão causal que pode se dar de maneira simples ou se complexificar, dado a relação “simbólica” entre a causa e o fenômeno patológico, semelhante à formação dos processos oníricos, é o que ele vai tratar de modo mais elucidativo em sua obra “A Interpretação dos Sonhos”.

O trauma psíquico, sua lembrança, é tido como um elemento estranho que depois de ocorrido não cessa de atuar, o que foi percebido na catarse em pacientes submetidos à hipnose: o sintoma histérico individual desaparecia quando vinha à tona a lembrança do fato que o havia provocado e despertado o afeto que o acompanhara. Assim o processo psíquico levado à sua origem e repetido, revivido pela verbalização, com afeto, “aniquilava” o sintoma apresentado. Assim o que ocorre nessa técnica que podemos chamar de “pré-psicanalítica” é que se trata de mera sugestão “inconsciente”, aqui no sentido “não-consciente”, no qual o paciente espera ser aliviado de seu sofrimento e usa a expectativa e não a representação verbal e suas nuances, que é de fato o operativo.

Quando uma reação é recalcada o afeto se vincula a uma lembrança, o mesmo que se dá com a linguagem quando ao silencio. Essa mesma linguagem é tida como substituta para a ação, na qual o afeto pode ser “ab-reagido” quase com a mesma eficácia; caso não ocorra essa ab-reação a lembrança do trauma se infiltra no complexo de associações e se confronta com outras experiências que possam contradizê-las ficando assim sujeita a retificações por outras representações. Aquelas experiências ausentes da lembrança em estado psíquico normal, só se fazem aparecer em estados ordinários de consciência e assim na hipnose é que elas emergem com a devida nitidez.

Assim a psicanálise dava seus passos iniciais e insurgia como um método psicoterápico de um efeito curativo que punha a termo a força atuante da representação não ab-reagiada, no primeiro momento, permitindo ao afeto estrangulado encontrar uma saída pela fala, o que submete essa representação à conexão associativa na consciência ou a eliminá-la por meio da sugestão. Nos textos em que Freud fala da técnica é importante ressaltar que a psicanálise não se pode exercer, já que não há um conjunto de regras e procedimentos técnicos que poderiam defini-la, dado que o próprio saber do qual se vale o analista na condução do tratamento não pode ser definido a prior, não pode ser dado de antemão, o que por si só já contrariaria toda a lógica daquilo que se tem por inconsciente. O próprio funcionamento desse inconsciente não produz falsas ligações, não está sujeito a erros, ao passo que transfere, desloca, substitui, resiste e associa.

Em “A dinâmica da transferência”, Freud cita um certo movimento da libido dentro do tratamento que se fundamenta no conceito de transferência e esse dinamismo se faz pela oscilação entre a abertura ao material inconsciente que se dá na forma de rememoração e a um fechamento, uma barreira de acesso ao mesmo material, que se produz pela resistência. Percebe que somente parte dos impulsos que determinam o curso da vida erótica passaram por todo o processo de desenvolvimento psíquico, onde a parte dirigida a realidade está a disposição do consciente e dele faz parte. A outra parte dos impulsos libidinais retirada do curso do desenvolvimento foi levada à fantasia ou permanece mesmo no inconsciente.

Quanto à transferência dois pontos merecem atenção: o primeiro é que a transferência é uma característica da própria estrutura neurótica e segundo que ela é a resistência mais poderosa ao tratamento. Com referência a este segundo ponto temos que a parte da libido que é capaz de se tornar consciente e é dirigida para a realidade é diminuída, e a parte que vai para longe da realidade e é inconsciente é aumentada. Desse modo a libido em curso regressivo revive as imagos da infância e é rastreada pelo tratamento analítico para se tornar acessível à consciência e consequentemente útil à realidade.

Essa libido à disposição do indivíduo, influenciada pela atração das partes dos complexos pertencentes ao inconsciente, entra em curso regressivo devido à atração de a realidade haver diminuído e para liberar tal atração do inconsciente deve ser superada, ou seja, as pulsões recalcadas inconscientes e todos os seus derivados devem ser removidos. Desse modo a transferência dentro do manejo da técnica analítica se mostra desde o inicio como o veiculo mais forte de resistência e que a intensidade e a persistência transferencial são os efeitos e expressões dessa resistência. Sendo a transferência a colocação em ato do inconsciente, de sua própria atuação, Freud menciona uma transferência que é positiva, que se dá a sentimentos amistosos e afetuosos, enquanto outra parte são prolongamentos de sentimentos inconscientes que remontam de fontes eróticas e da suavização de objetos sexuais por mais “não sensuais” que se pareçam ao consciente. A transferência para o analista é útil enquanto resistência ao tratamento somente enquanto se tratar de transferência negativa ou então de transferência positiva de impulsos eróticos reprimidos.

Nessas instancias psíquicas, transferência e resistência são elementos que se confundem e é interessante notar como essa última é paradoxal, pois ao mesmo tempo em que emperra a análise a faz avançar. Assim devido a essa série de fatores Freud abandonou o método catártico devido ao fato de a hipnose burlar a resistência, elemento fundamental dentro de todo o processo clínico.

Há algo que se dá a não saber, que se dá pela transferência, seja numa suposição de saber para com o analista, este que é investido de fantasias inconscientes. Há algo que resiste a ser dito e é possível pela transferência, a resistência vem desse algo que não se diz em palavras e se está intrincado no inconsciente.

Ao se procurar a libido que escoara do consciente vai-se ao inconsciente e essa mobilidade de investimentos, revelam características que surgiram nos estudos dos sonhos. Os impulsos inconscientes não desejam e nem tampouco se permitem recordar tal como se quer na análise e se reproduzem dentro de características próprias, ou melhor, impróprias: são atemporais, não seguem a uma realidade externa, mas psíquica, e não se move por um princípio de realidade, mas de prazer. O inconsciente se dá numa isenção de contradição mútua e nos seus processos primários, mais mediatos, através de deslocamentos e condensações, o que já se mostra como o suficiente para se perceber que os fenômenos que englobam a transferência são os que maiores dificuldades se dão numa análise.

Freud faz uma elucidativa comparação entre a “transferência” e o “sonho” na qual as moções inconscientes não desejam ser recordadas do mesmo modo que o tratamento quer que as sejam, mas de um lado que se esforçam por reproduzir-se de acordo com a atemporalidade inconsciente e sua capacidade de alucinação, o que faz por assegurar o lugar próprio da teoria psicanalítica que ultrapassa os limites de sua utilização clinica e instrumental no que diz respeito ao conceito de repetição, que trataremos posteriormente.

Assim as transferências são tidas como edições novas de moções e fantasias que são criadas e tomadas conscientes durante o processo analítico, uma substituição das imagos infantis, clichês, pela figura do analista, na qual este toma o lugar dos objetos sobre os quais incide o desejo. Não que seja uma nova inscrição, já que não é tomada como mera lembrança, mas como algo que se atualiza, que reedita, que se faz por repetir, o próprio retorno do recalcado, uma idéia que vem no lugar de outra.

Outro texto de Freud dedicado à técnica é “Recordar, repetir e elaborar”, no qual ele mostra que numa análise não se deve por em foco um momento ou um problema especifico, mas sim se deter àquilo que se acha no presente, no momento da análise, onde se lê as resistências e mecanismos para torná-las conscientes ao paciente - o que será revisto posteriormente. Deste modo o analista, nessa fase, revela as resistências desconhecidas ao paciente, e estas quando vencidas são relacionadas a situações e vinculações até então esquecidas, na verdade, preenchendo as lacunas da memória e superando as resistências devidas ao recalque. Os esquecimentos diante de impressões, cenas ou experiências tornam-se mais restritos em relação às lembranças encobridoras que se acham presentes; o mesmo que vale para a amnésia infantil que é contrabalançado por tais lembranças, onde o essencial da infância é encobrindo e na análise o fundamental é saber como extraí-lo, assim, como meio de comparação, as lembranças encobridoras representam os anos esquecidos da infância tão adequadamente quanto o conteúdo manifesto de um sonho representando os pensamentos oníricos.

Podemos perceber assim que há tipos específicos de esquecimentos: um que se refere ao recalcado e que se faz como um saber inconsciente, e outro que não se articula no processo analítico e que faz barreira ao saber e a rememoração, que não se pode evocar pela lembrança e que é atuado na transferência e está ligado ao próprio artifício analítico, de fazer falar o não-dito, o impossível de se dizer, o confronto contínuo.

Para salientar a diferença entre esquecimentos e recordações numa análise, pode-se afirmar que o paciente não recorda nada do que esqueceu e recalcou, mas se expressa em ato (acts it out), não reproduz como lembrança, mas no ato, repete-o sem saber que está repetindo. Quando se convida o paciente a fazer a associação livre, pedindo-lhe que diga tudo aquilo que lhe vier à mente, o que se percebe é que ele não se tem nada a dizer e sustenta um silêncio afirmando que nada lhe ocorre, o que se mostra como uma resistência da fala contra recordar alguma coisa; assim no tratamento não se pode fugir a compulsão à repetição, o que já é uma maneira de recordar.

A transferência em si é um fragmento da repetição, uma transferência do passado esquecido, onde a compulsão a repetir substitui o impulso de recordar, seja na análise ou nas diversas outras situações da vida, sendo que são as resistências que determinam a sequência do material que deve ser repetido. O paciente repete ao invés de recordar e repete assim sob as condições e forças da resistência, repete a partir das fontes daquilo que está recalcado, suas inibições, atitudes e traços psicológicos, inclusive todos os seus sintomas no decurso do tratamento. E é isso que nos leva a perceber que o analista deve tratar um caso não como algo do passado, mas que possui uma marca e uma força da atualidade.

Dentro da técnica psicanalítica é de suma importância que o sintoma para o paciente assuma o caráter de um fragmento de seu eu, que possua um certo motivo para se estabelecer e se inferir na busca de uma extinção, o que é fundamental para já se reconciliar com o material recalcado e para se ter certa tolerância quanto ao estado de enfermidade atual, já que não se pode vencer um inimigo ausente ou fora de alcance.

Percebemos ainda quanto à transferência que se cria entre a doença e a vida real uma área de transição de uma para a outra; essa condição assume as características da doença, com a representação de uma doença artificial, que sendo assim fica acessível a uma intervenção de fato. Com as reações repetitivas transferenciais se vai sem dificuldade ao despertar da lembrança após a resistência ter sido superada. Para se superar todas essas resistências há que se permitir que o paciente a perceba e a analise melhor e a elabore para superá-la, pela continuação e desafio a ela mesma dentro da regra fundamental da análise – a associação livre. Estando a resistência em sua maior atuação é que o analista junto com o paciente pode descobrir os impulsos pulsionais recalcados que a alimentam, assim, desta forma o paciente se convence do poder e do existir de tais impulsos. A atuação do analista fica em deixar que as coisas sigam seu próprio curso, não os evitando, nem os apresando.

Essa elaboração da resistência, fator crucial na técnica, é na verdade uma tarefa um tanto sutil por parte do analista, que deve ter paciência, quanto por parte do analisante. É justamente esse manejo que define a própria clinica analítica e é o fator diferencial em relação a tipos de tratamento por sugestão; assim se opera a mudança no paciente de fato, onde se pode correlacioná-la com a ab-reação de todas as cotas de afeto estranguladas pelos mecanismos do recalque, uma ab-reação sem a qual o trabalho de hipnose se fazia por ineficaz.

Assim quanto aos mecanismos de recordação vemos agora que não se pode voltar a um posicionamento anterior na análise, onde se sai do tempo dois, o presente, para dar sentido ao tempo um, passado, por uma retroação temporal que acaba por re-significar e re-historicizar os diversos elementos situacionais. Essa repetição dentro da técnica em relação à transferência e a elaboração é uma atualização do passado na fala, que visa na verdade desvendar a escolha objetal infantil e as fantasias e significações ao redor dela, em um endereçamento além do que diz, mas a quem é dito, onde se dá e se define um lugar a quem ouve e a quem fala e como conseqüência essa elaboração se faz porque há algo no somático que não se descarrega, onde o que resiste, resiste a um saber que não se coloca em palavras.

Ao introduzir a idéia de elaboração Freud afirma que ouvir e experimentar algo são duas coisas bem diferentes, mesmo que seus conteúdos sejam os mesmos, ou seja, não basta que o analista comunique ao paciente algo descoberto por ele, analista, para que a mudança no paciente seja feita. O necessário da técnica se faz pela elaboração a partir da própria experiência do analisante, pela própria experiência do inconsciente, na qual não se deve indicar a resistência ao paciente sem que este possa elaborá-la, não adianta em nada um saber oferecido, este que só se faz enquanto um saber impotente.

Nas “Observações sobre o amor transferencial” vemos que o amor se sustenta no campo narcísico e que a dimensão de sua identificação imaginária e a idealização do objeto amoroso já estão apontadas, assim como a função de recuperação narcísicas. Esse amor diz respeito à relação do Eu com suas fontes de prazer, na qual o objeto de amor é o resultado de escolhas. O analista na transferência se faz como uma dessas escolhas sendo um objeto idealizado e super valorizado. Deste modo a libido flui do Eu para o objeto, este eleito e comprometido com a satisfação pulsional, na forma de satisfação narcísica. Devido a isso o tratamento deve ocorrer na abstinência, mantendo como insatisfeita a exigência da insatisfação amorosa. Assim o amor de transferência é tido como uma produção inconsciente, uma forma de “sintoma” dirigida ao analista, uma manifestação da transferência pela sugestão, resistência e repetição pela vertente do amor.

O trabalho de elaboração psíquico se faz pelo enfrentamento do sujeito com seu próprio desejo, onde o trabalho analítico está em suspender o recalque, mesmo que ele se apresente sob a forma de transferências, o trabalho é fazer com que o sujeito deseje algo que ele não consegue confessar nem para si próprio, que não suporta saber e que não se esquece e que se apresenta denunciado no sintoma.

O inconsciente entrelaçado com a transferência, suas resistências, repetições, recordações e elaborações, somados a todos os outros mecanismos da teoria e do manejo clinico, mostram-se essenciais, complexos e paradoxais dentro da própria técnica, tal como ela se faz. Diante toda a conjuntura estrutural, Freud afirmou nunca sermos capazes de passar para uma psicanálise regular e forte, dado que não devemos nos amedrontar pelo manejo dos mais perigosos impulsos psíquicos e de não se ter total domínio sobre eles.

Não tivemos aqui a pretensão de explicar todos os processos que se dão no inconsciente, tarefa impossível, tampouco na técnica psicanalítica e em suas nuances, esse é apenas um simples texto introdutório que se baseou em textos iniciais de Freud de 1893 a 1915, não considerando todas suas contribuições, tampouco de grandes colaboradores como Lacan e tantos de outros de mesma relevância. O objetivo inicial é a introdução a estudos, conceitos e manejos essenciais ao tratamento clínico, uma porta de entrada para questões mais aprofundadas e especificas da prática. Isso porque o inconsciente e a técnica possuem seus próprios mecanismos e artifícios não definidos, que a nós escapa enquanto analistas, enquanto analisantes.


BIBLIOGRAFIA:

BERNARDES, ANGELA C. Elaboração de Saber na análise: um tratamento do impossível – Rememoração, repetição e perlaboração. Tese de Doutorado, UFRJ, 2000.

FREUD, SIGMUND. 1893. “Sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos: comunicação preliminar”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. III, Ed. Imago, 1996.

________. 1912. “A dinâmica da transferência”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XII, Ed. Imago, 1996.

________. 1914. “Recordar, repetir e elaborar”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XII, Ed. Imago, 1996.

________. 1914. “Observações sobre o amor transferencial”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XII, Ed. Imago, 1996.

________. 1915. “O Inconsciente”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XIV, Ed. Imago,

SANTOS, LÚCIA GROSSI. O conceito de repetição em Freud - Repetição e Transferência, SP, Escuta, 2002.