Andreya Navarro
“O homem é uma máquina de desejar”. Esta afirmação, de Michel Foucault, resume o comportamento do homem moderno diante da motivação e dos ensinamentos que temos recebido na cultura ocidental.
Enquanto o poder dominante da igreja passou séculos empenhados em reprimir os desejos naturais dos seres humanos, e despertar desejos imaginários a serem concretizados em uma outra vida, os dirigentes da sociedade moderna dedicam-se a despertar nossos desejos, almejam transformar seus governados em uma sociedade de consumo e incentivam os agentes do desenvolvimento a idealizarem novos produtos e serviços que possam despertar desejos de consumo.
O irrepreensível desejo de sucesso, de ascensão, de acumular riqueza e ostentá-la, não seria tão comum hoje em dia, notadamente entre os mais jovens, sem o conteúdo consumista das mídias, cinema, televisão, literatura infantil, e a necessidade de pertencer a uma moda de comportamento pela sua suposta influência e poder de expressar de forma subjetiva, tudo aquilo que a sociedade valoriza.
A falta de limites simbólicos como a figura paterna, tão desvalorizada e ausente nos tempos atuais, associada à impunidade e à corrupção, desperta uma onda incestuosa de realização de desejos e estabelece um novo patamar de incertezas sobre o que é necessário e o que é desejável.
Embora possa obter-se prazer do fato de desejar sem alcançar o desejado, este prazer jamais será equiparado ao que é proporcionado pela realização do desejo; mas é um meio para aumentar as nossas possibilidades de gozo e para perder o medo de desejar, tão estimulado por aqueles que não querem que desejemos, senão o que lhes pode ajudar a transformar os seus desejos em realidade.
Na sociedade atual, o aluvião de notícias, a cultura imposta, o ensino fragmentado, as múltiplas opiniões difundidas por diversos meios de comunicação, ao mesmo tempo que fomentam os possíveis desejos, dificultam a tarefa de desejarmos por nós próprios. Não somos máquinas autônomas e independentes, estamos todos interligados e “programados” por desejos difusos e contraditórios. A grande filosofia moral da atualidade preconiza que cada ser humano deveria encontrar em seu meio, aquilo com o que se satisfazer plenamente. A impossibilidade desta satisfação acarreta um déficit, um dolo, um dano, qualquer reivindicação neste sentido se encontra legitimada pelo direito de ser satisfeita. Neste sentido Charles Melman (O Homem Sem Gravidade – 2003) identifica uma nova “economia psíquica”:
Essa nova economia psíquica nos revela uma mutação que nos fez passar de uma economia organizada pelo recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. A sociedade moderna tem na liberdade, na autonomia individual e na valorização narcísica do indivíduo seus grandes ideais, pilares de novas formas de alienação, direcionados para o gozo e para o consumo. A proposição lacaniana do inconsciente como “discurso do Outro”, só faz sentido nas sociedades modernas. Esse outro como sendo o campo simbólico estruturado pelas grandes formações discursivas. A crise que se refere ao reconhecimento da Lei, portanto, se deve à dificuldade de reconhecimento da dívida simbólica que temos com a coletividade a que pertencemos, seja ela representada por um país, uma religião, uma cultura ou uma classe social.
Essa crise agravou-se nas últimas décadas do século XX, com o declínio da era industrial e de uma ética do sacrifício e do adiamento do prazer que a amparava. A nova economia gera grande parte de seus lucros a partir da informática, da indústria virtual das comunicações e também do consumo desenfreado de bens supérfluos, serviços e lazer. Essa economia produz grandes e rápidas concentrações de riqueza e alimenta-se, acima de tudo, de um tipo de bem que excluí enormes fatias da população mundial. A globalização desenhou um novo mapa mundi, no qual empresas multinacionais representam interesses milionários e marginalizam mais da metade da humanidade.
Nesse quadro não se trata de afirmar que os indivíduos se tornaram indiferentes à Lei, mas sim que a Lei, tal como pensávamos: imperativo de renúncia ao gozo, vai perdendo sustentação na cultura. O pleno gozo é tão impossível de se realizar quanto a renúncia absoluta a qualquer forma de gozo. O fato de vivermos sob o imperativo do gozo não significa que estejamos libertos da lei que nos impõe uma certa renúncia. A perda do gozo, a impossibilidade da satisfação direta da pulsão se dá através da entrada do sujeito na linguagem.
Uma vez que a entrada na linguagem por efeito da lei é condição da participação do sujeito no laço social, o efeito imperativo do gozo não é de nos fazer gozar mais. O que a sociedade de consumo atual faz através do apelo ao gozo, é dificultar o reconhecimento da lei, por falta de uma base discursiva que confira apoio e significado à impossibilidade do gozo.
O apelo ao gozo produz mais angústia do que o gozo propriamente dito, mais violência (é com violência que reagimos aos imperativos) do que fruição. A violência contemporânea parece ser efeito dessa produção significante a respeito do gozo, que confere um lugar privilegiado aos atos destrutivos e demonstrações de onipotência.
O aumento efetivo da delinqüência não nos ameaça tanto quanto uma espécie de ambígua autorização da delinqüência implícita nos códigos morais contemporâneos, em que a castração se confunde com a privação. Não se trata de uma falta de gozo, pois esta é constitutiva da condição humana, mas da suposição de falta de um objeto imaginário do qual o sujeito se acredita privado (pelo Outro), e que cabe a ele recuperar a qualquer custo.
As formações imaginárias organizam-se em torno do Eu narcísico, das identificações e das demandas de amor e reconhecimento. Existir por intermédio da imagem torna insuportável qualquer forma de exclusão. Diante deste fato, qualquer forma de alteridade se torna ameaçadora. Há quem se autorize a tirar a vida alheia ou mesmo prefira pagar com a própria vida o preço de quinze minutos de fama, aos quais supostamente teríamos direito, já que a “fama” é o substituto da cidadania na cultura da imagem.
As formações imaginárias, e toda a indústria das comunicações que nelas se apóiam, ocupam uma grande área do “espaço público” no mundo atual. A interface entre a “realidade” e o imaginário social, as fantasias compartilhadas sobre o modo como achamos que o mundo deve ser e o funcionamento abrangente das telecomunicações não é suficiente para gerar uma nova ética para os tempos atuais. Segundo Maria Rita Kehl (Sobre Ética e Psicanálise -2002):
“...a linguagem televisiva predomina na organização das informações a que temos acesso. São colagens de elementos imaginários que remetem os telespectadores a um mundo de fantasia no qual ainda que sejam fantasias de horror,somos todos poupados da dúvida e da incerteza, dispensados da necessidade de pensar. A linguagem televisiva nos infantiliza a todos pois, o impacto das imagens produz a falsa certeza de que as coisas” são como são “. Com isso a opinião pública torna-se participante de uma cena totalitária em que todas as alternativas estão contidas nos termos que a imagem comporta, dispensando a capacidade humana de questionar as versões oficiais,criar fatos novos e inventar soluções para as grandes crises sociais.”
A nova economia psíquica remete ao “discurso do capitalismo” lacaniano, que Lacan desenvolve em seu seminário L’Envers de la psychanalyse ,(Le Séminaire, Livre XVII,1969-1970,Seuil,1991), sua teoria dos quatro discursos. Acontece-lhe evocar, quando de uma intervenção em Milão, em 1970, um quinto discurso, o discurso do capitalismo. A identidade outrora era organizada a partir de um reconhecimento de si pelo Outro, logo, por uma figura diferente do semelhante, uma figura que representa uma alteridade radical.
Os traços específicos que permitem a identificação fundamentavam-se em caracteres éticos marcados: a dignidade, a honra, a coragem, o sacrifício, o dom de si. Assim conhecemos o ideal do cavalheiro que a partir do século XIX, com o crescimento do capitalismo veio se chocar com o do financista. O único reconhecimento de si para o capitalista, e para todo sujeito inserido nesse “regime”, é a acumulação do capital.
O reconhecimento segundo o “modelo antigo” era adquirido quando o sujeito se fizesse reconhecer por um certo número de qualidades, quando sua “passagem” para um certo estatuto era admitida e definitiva. O sujeito capitalista contemporâneo busca ansiosamente esse reconhecimento, expondo-se a todos os acasos do futuro econômico, arriscando-se à ruína, à prisão e, em suma, a desaparecer.
Estamos em duas lógicas completamente diferentes: uma fundada na assunção do traço que assegura a identidade; a outra é organizada pela busca incessante das marcas de uma identidade que só é reconhecida pelo olhar do semelhante, que só pode ser validada por um efeito de massa; o reconhecimento público, midiático e que nunca é definitivamente adquirido.
Passamos de um regime organizado pelo recalque do desejo para outro em que o desejo não é mais recalcado e as manifestações do gozo dominam. A participação na vida da sociedade, o laço social, não passa mais pelo compartilhar um recalque coletivo que chamamos “usos e costumes”, mas, ao contrário, por uma reunião numa espécie de festa permanente, para a qual cada um é convidado. O atual encargo do sujeito é manter-se na corrida pelo gozo. Condenado à juventude eterna, não se sente bem, pois esse gozo se apresenta como uma imposição e não é mais regulado através de um lugar Outro. O sujeito se ressente de um certo desamparo e sofre de uma falta de referências. O que se traduz, entre outras coisas, pelo cansaço e pela ansiedade.
A nova economia psíquica traz consigo uma confusão entre desejo e gozo, o que na História sempre provocou um retorno do cajado, um apelo público ao “mestre”, para que ele venha assegurar uma regulação do gozo.Hoje o sujeito não está mais ávido de preservar sua singularidade, muito pelo contrário, o sujeito está em busca de todas as identificações coletivas em que poderá se dissolver. A preocupação em ser cuidado, de confiar em sistemas religiosos, culturais e políticos para dar uma direção a sua existência é mais evidente que nunca,
Esse é o dispositivo que subverte a mutação cultural introduzida pelo liberalismo econômico, ao encorajar um hedonismo sem rédeas. Não é mais uma economia psíquica centrada no objeto perdido e em seus representantes que é avalizada, ao contrário, é uma economia psíquica organizada pela apresentação de um objeto doravante acessível pelo cumprimento, até seu termo, do gozo.
O real tornou-se para cada um de nós uma dimensão tão improvável que não sabemos mais o que é realidade e o que é virtualidade. Como saberemos se estamos no verdadeiro ou se estamos na representação?
“É uma questão que não data de ontem, mas que tomou hoje em dia, uma feição totalmente diferente, pois não temos mais os meios de saber o que é real e o que é virtual, sendo dado que, eu diria, o que funda o campo da realidade é que este seja bordejado por um real, ora, se esse campo da realidade não é mais bordejado por um real, como o liberalismo nos propõe, ao mesmo tempo não podemos mais saber se estamos ali verdadeiramente, nem mesmo o que fazemos ali”.(Melman,op.cit.pg180).
O indivíduo assim solicitado pela economia de mercado não tem nada a ver com alguma exigência singular real do sujeito. Essa economia apenas interpela um consumidor abstrato que deve se adaptar às ofertas mirabolantes que lhes são feitas: são elas agora que o subjetivam. E por girarem em torno do objeto disponível, os próprios indivíduos se transformam em objetos, já que não é a identidade específica do desejo deles que impõe a escolha de objeto, mas, inversamente, é a promoção midiática que lhes impões um objeto, o qual induz um apetite identificável agora pela marca do produto.
Os primeiros a reconhecer o número crescente desses “novos homens” foram os publicitários. Uma exigência crescente de esteticismo veio infletir a eficácia de sua mensagem, quer trate-se de um carro, uma margarina ou de uma campanha de prevenção da AIDS, busca-se validar um único sentido: “é belo, então é bom”. Os jornalistas seguiram esta tendência de reconhecimento, as cifras das vendas confirmaram, e vimos crescer nos jornais as páginas de catálogos das grandes marcas, ao mesmo tempo que as dos lazeres, diversões, viagens, conselhos sexuais, etc.
A parte informativa desses jornais diminuiu consideravelmente em relação às notícias “da atualidade”. Só interessa ao leitor o que o toca diretamente ou por participação afetiva. Os políticos tiveram que aprender a reter a atenção do eleitor de outro modo, já que agora é a imagem que constitui a mensagem. Eles precisam estar atentos para que o conjunto de traços que constituem sua imagem seja coerente e sedutor.
Vivemos numa comunidade organizada pelo individualismo exacerbado e pela concorrência de um contra todos. Trata-se de uma nova economia psíquica de um homem novo, mas a questão é saber se esse novo homem trará consigo a perempção do modelo antigo. Se esse “homem liberal”, seguro da legitimidade de seu gozo, vai definitivamente dominar o sujeito “falante”, aquele que Lacan chamou de parlêtre, sempre obrigado a pagar o preço de seu desejo. Em outras palavras, o livre curso do gozo vai colocá-lo acima do irredutível tormento do desejo? Esse humano submetido às leis da linguagem vai definitivamente se deixar submergir na busca do gozo imediato? O homem novo, advindo da nova economia psíquica, encontrará com que se sustentar ou, ao contrário, só poderá se cumprir na autodestruição?
Nossa alegre perversidade polimorfa pode durar? Ou, vamos voltar à ordem moral e ao cajado?
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Regina, Personalidade e Cultura. Rio de Janeiro, Ed. Revan, 2003.
DEBOURD, Gilles, A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DELEUZE, Gilles, Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
LACAN, Jacques, L’Envers de La Psychanalyse, Lê Seminaire, Livre XVII, 1969 – 1970, Paris 1991.
KEHL, Maria Rita, Sobre Ética e Psicanálise. São Paulo; Editora Schwarcz, 2002.
MELMAM, Charles, O Homem Sem Gravidade. Rio de Janeiro: Companhia de Freud editora, 2003.
SODRÉ, Muniz, As Estratégias Sensíveis. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2006.