ÉTICAS, DISCURSOS E A CLÍNICA DA SAÚDE MENTAL



Allan de Aguiar Almeida





RESUMO


Qual o objeto do seu trabalho da saúde mental, com o que você trabalha? Quais são suas ferramentas de manejo nesse trabalho? Qual a finalidade do seu trabalho, o que deseja alcançar? O trabalho a seguir busca investigar junto à equipe de um programa de saúde mental essas e outras questões concernentes às éticas, os discursos e as práticas que sustentam o atual campo da saúde mental. Nosso objetivo se pauta em questionar, num provocar e numa posterior reflexão de um dos principais recursos que dispomos – nós mesmos. Qual seu desejo? O que quer?



“(…) pois, se é preciso fazer as coisas pelo bem, na prática
 deve-se deveras sempre perguntar pelo bem de quem”.
Jacques Lacan, em ‘A ética da psicanálise’.




INTRODUÇÃO


O remodelamento da atenção em saúde mental no Brasil, oriundo com o Movimento da Reforma Psiquiátrica oferece continuamente novos modelos institucionais a partir de novos discursos e éticas quanto ao cuidado. A partir dessa ruptura com os modelos até então vigentes, uma profunda alteração da resposta social à loucura e aos sofrimentos psíquicos, provocam mudanças de ordem política, ideológica, ética e das concepções de clínica e reabilitação.

Pensar e prestar uma “Atenção Psicossocial” é sustentar uma proposta de se haver com uma rede de cuidados com orientações diversas que por vezes se conflitam – é se deparar com questões que se renovam e se apresentam em vários campos de saber. Como promover a cidadania de todos, ao mesmo que oferecer uma clínica de cuidados singularizada?

Ana Cristina Figueiredo ao tratar da “ética do cuidar” diz que uma ética enquanto princípio é prescritiva e indica o que deve ser feito, como deve ser feito, assim como aquilo que está para se fazer. Deste modo, a ética é o que conduz nossos atos, nossas ações frente ao trabalho, e esta ética pode estar referenciada a um plano teórico, uma posição, uma crença, ou seja, a um bem. Mas tal “bem” é relativo e correlaciona-se diretamente ao significado que se dá a este cuidar, que deriva na ação enquanto um fechamento num tipo de ideal. E assim pergunta: “O que de nós, sujeitos, está em jogo no exercício de nosso trabalho?”. Nossa ética põe em cheque nosso próprio desejo, e nos situa em relação ao desejo do outro. Sendo assim seria a ética a justa medida entre o desejo e a ação, como definiu Jacques Lacan?

Examina-se, diagnostica-se e medica-se. E ponto final. Extinguir o sintoma inicialmente para agir sobre a doença no a posteriori, eis a meta, e aqui estritamente pelo olhar da medicina cuidar parece ser diferente de tratar. Mas, cuidar, por vezes seria sinônimo de tratar frente uma escuta psicológica? Frente ao fazer trabalhar, ao produzir uma autonomia pela via da terapia ocupacional? Seria tratar, os cuidados específicos da enfermagem ou as contextualizações político-culturais de convívio, elencadas pelo serviço social? Ou cuidar estaria para a imbricação dessas práticas correlacionadas a diversas outras áreas?

Percebemos em nossa prática cotidiana que o campo da saúde mental, por vezes, ou na maior parte das vezes, se apresenta como uma nação de várias línguas onde os sujeitos se entendem, em outras, não se entendem, organizando os próprios discursos e práticas, compondo campos de conhecimentos que disputam espaços, ocasionando diferentes leituras e técnicas. Por vezes, alguns discursos imperam, negando tal pluralidade e afirmando seus estatutos de verdade.

Cria-se assim uma disputa pela via da produção, da reafirmação de saber e da aplicabilidade nas atividades práticas entre os representantes de cada grupo, cada qual reivindicando maior supremacia e feitos em seus trabalhos. Tais campos tratam das mesmas questões e problemas? Como discursos com construções diferenciadas apresentam mesma equivalência conceitual?

Seria possível construir um racionalismo universalizante fundamentado em técnicas válidas e aplicáveis em quaisquer que sejam os campos da experiência humana? Tal concepção idealista da busca da verdade remete-nos ao século XIX e nos é tida hoje como ingênua. Não há um saber isolado ou total que dê conta da diversidade de fenômenos concernentes à experiência humana. Cada discurso esgota-se em suas possibilidades e em seus elementos conceituais.

A loucura pode ser apreendida por diferentes olhares, tempos e espaços, e todos os modelos teóricos não conseguem bem representa-la, deixando sempre indicada uma fenda, um ponto obscuro, ininteligível, e que escapa a qualquer representação possível. A loucura é o paradoxo que faz frente a toda e qualquer ideia de sistematização que busque representar os fatos. Mas ainda parece que cada discurso acredita atingir tal saber através de novas descobertas e construções de novos sistemas e aplicabilidade.

Não possuímos uma fala linear em nenhum dos campos do saber, o que não seria diferente na saúde mental. Nosso saber não abarca toda a complexidade do nosso trabalho, principalmente quando não falamos a mesma língua, o que nos leva simplesmente a escolher a abordagem e os instrumentos que melhor julgamos, e com isso, de preferência, apoderamos de um justo compromisso ético.

Quanto a um trabalho que se proponha ético, um norte seria os efeitos de nossas ações e a não sustentação de ideais. Levando-se em consideração que há uma brecha entre o preceito e a ação, cuidar se mostra como uma ética das mais variáveis definições e significados inconstantes, que só podem ser medidos nos seus feitos e consequências cotidianas. E assim perguntamo-nos quais os princípios éticos que norteiam a assistência em saúde mental. Há propriamente uma circulação de saberes?

Com este trabalho nosso objetivo é investigar junto aos profissionais que compõem a equipe do Programa de Saúde Mental do Município de Santo Antônio de Pádua, que é composto por um Centro de Atenção Psicossocial, um Ambulatório de Saúde Mental e um Serviço Residencial Terapêutico, quais seriam os objetos, as ferramentas e os objetivos à visar uma saúde mental? Com o que trabalhariam, quais os instrumentos frente a este trabalho, e o que pretenderiam alcançar?

Faremos um estudo bibliográfico das éticas e dos discursos em saúde mental, e posteriormente uma análise das falas e técnicas que atravessam as unidades do referido Programa de Saúde Mental. Analisaremos tais discursos no âmbito da assistência em saúde mental, suas articulações, encontros e desencontros advindos de uma prática feita em equipe. Descreveremos brevemente algumas contextualizações históricas, os discursos e as práticas, e identificaremos alguns impasses que se apresentam como desafios à construção de uma ética do cuidado numa rede pública ampliada de atenção em saúde mental, assim como levantaremos algumas provocações que julgamos necessárias ao campo.



ASSISTÊNCIA E CUIDADO

As ideias reformistas do início da década de 80 que eram consideradas alternativas em saúde mental se tornaram o discurso oficial. Criou-se uma rede de ações descentralizadas do modelo hospitalocêntrico e organizada em torno de peculiaridades locais, pautada por uma oferta diversificada de recursos e serviços, com maiores chances de responder efetivamente as mais variadas demandas daqueles que possuem algum sofrimento mental. Criamos novas técnicas de atendimentos, recursos sociais, medicações, outros olhares e práticas. Porém, a tendência antimanicomial apresenta em si mesma, perspectivas, éticas e discursos diferenciados quanto ao fazer, que por vezes são discrepantes, em outros, opostos.

Podemos pensar que há uma necessidade constante de reformulação das práticas de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico, dado que discursos estigmatizantes e iatrogênicos num espaço instituído são renováveis e apresentam sempre novas roupagens. As práticas se burocratizam, as teorizações se tornam dogmas, sem a mínima possibilidade de reflexões críticas efetivas. Sendo assim, não seria necessário avaliar o que se faz, correndo os riscos de se tomar novas posições mais adequadas àquelas até então escolhidas?

A saúde mental se mostra como uma prática plural a se organizar a partir de demandas, também plurais, e de diferentes mandatos: por vezes pelo alivio de algum sofrimento psíquico individual ou sociocultural, moradia, defesa da cidadania, direito à saúde básica, alargamento dos laços sociais. Algumas proposições abarcam um discurso transdisciplinar e plural, outras um discurso de um determinismo reducionista biológico. Aqui o discurso da neuroquímica cerebral é similar ao asilo destituído das questões filosóficas, políticas e subjetivas existentes.


Pode ser a política da Secretaria de Saúde, as teses de movimentos de trabalhadores, a teoria de tal autor sobre as estruturas psíquicas, os resultados de tal pesquisa laboratorial, tanto faz. O que importa é que depositam numa autoridade supostamente indiscutível, as razões e as justificativas para o que fazem. A despeito de possuírem eventualmente um vocabulário progressista e reformador, apenas dão sobrevida ao asilo naquilo que este tem de pior: o veneno burocrático que transforma todo humano em instrumento, todo agente em máquina, todo sujeito em objeto nas mãos de um outro.[1]


Benilton Bezerra Júnior destaca aqui no Brasil três linhas importantes de pensamento no interior do chamado “campo psi”: a psiquiatria biológica, a psiquiatria guiada pela reforma italiana e a psiquiatria influenciada pela psicanálise. Ressalta que cada uma destas linhas não são unívocas, apresentando cada uma concepções e práticas rígidas e dogmáticas, por vezes abertas a cooperação com as demais. Porém, a dificuldade de um discurso possível entre si, estimula uma disputa pela legitimidade ética, onde cada perspectiva mostra uma concretude apenas no modo de se apresentar superior às outras. Frente a tais discursos, paralelos, que por vezes não se encontram, seria possível preservar a especificidade e a efetividade das varias abordagens de se acolher aqueles que sofrem subjetivamente?

Lidando com o pathos psíquico a saúde mental também trata da dor de existir que se articula a termos fisicalistas, psicanalíticos, políticos e sociais, todos estes vindo a oferecer algum tipo de intervenção a reduzir ou eliminar algum tipo de mal-estar. Eis o que tratamos na prática, dado que é na teoria que lidamos com “sinapses neuronais, mecanismos psíquicos inconscientes ou suportes individuais de relações sociais capitalistas”, como relata Benilton. Nossas éticas vão de encontro com um tipo de experiência de sofrimento, de mal-estar, por vezes insuportável, que não está contida em nenhum vocabulário que dê conta dessa complexidade, pois é do sofrimento que todos nós tratamos, para além de nossas filiações teóricas ou estratégias de ação.


A psiquiatria, ao lidar com o sofrimento mental ou psíquico, o que visa? A resposta não pode ser apenas a de um alivio da dor – não somos anestesistas da alma. Tampouco deve ser a restituição de algum padrão de funcionamento estabelecido como normal – não somos ortopedistas do espírito (...). Por mais ‘científica, objetiva’ que se pretenda uma intervenção, ela terá efeitos éticos e políticos pelo simples fato de que incidirá sobre alguém, sobre algum sujeito. Terá, portanto, sempre efeitos no plano da intersubjetividade, sobre os quais não se pode fingir distância.[2]


Frente as mais diversas implicações envolvidas neste extenso campo composto por variadas linhas teóricas, profissionais, conjunturas históricas, políticas, sociais e éticas, questionamos nossos próprios fazeres. Há alguma distância entre a demanda e a resposta? Há um ideário a enfatizar que o tratamento é aquele que deve necessariamente devolver o bem estar, um reabilitar o sujeito? Investigamos tais questões.

A psiquiatria nasce como necessidade de dar uma resposta social à loucura, não se embasando num mero enclausuramento de um grupo de indivíduos cujas falas e atos apresentam uma particularidade e uma ruptura com o discurso comum e diferente da “norma” social. Assim, a clínica da saúde mental enquanto um modo de resposta se apresenta multifacetada: pode ser pensada pelo viés patológico, pode ser vista pela sua dimensão existencial, ou de resposta enquanto sujeito. Tais abordagens, e seus meandros, de algum modo orientam o trabalho em saúde mental, inscrevendo o “louco”, a partir de todas as particularidades, em sua diferença no laço social. Preserva-se assim o direito à diferença de cada um.

No trabalho diário parece-nos que hoje a maioria dos profissionais está em regime de urgência, voltando-se para os casos mais visíveis, sem muita disponibilidade para planejar o cotidiano do serviço e a continuidade dos acompanhamentos. Perder-se em demandas urgentes e em pedidos que emergem no cotidiano parece ser tarefa possível frente à pluralidade das situações. Neste cenário torna-se pertinente perguntarmo-nos qual o estatuto de nossas intervenções ao auxiliar sujeitos a lidarem com experiências que lhe são insuportáveis? Será que todo sofrimento humano é passível de evitação e necessariamente deve ser tratado?

Há uma demanda social exigindo do campo da saúde mental uma série de abordagens a regular e suturar o mal-estar. Não é coincidência que a toxicomania seja o paradigma contemporâneo, onde ao procurar uma forma de suavizar as angústias cotidianas os sujeitos recorrem, por vezes, indiscriminadamente a drogas lícitas e ilícitas. A partir de sintomas difusos, queixas variadas e pedidos específicos de alívio há uma resposta que deve ser rápida e eficaz.

A filosofia pré-socrática destaca a reflexão moral das atitudes do indivíduo para com o mundo, tentando estabelecer regras e condutas a nortear nossas ações. Hoje essa reflexão se mostra fundamental frente ao saber científico e tecnológico, e pelas possibilidades e poderes advindos de nossa atuação. A ciência, deste modo, gera constantes questionamentos, e a formalização de conjuntos de regras dão origens aos códigos de éticas, os quais refletem a perfil de cada tempo, de cada época. Tal ética aliada a interesses específicos de algum modo controla a conduta da sociedade como um todo através da ciência. Com o avanço do saber científico, os valores torna-se mais delicados e complexos, o que dificulta a criação e o estabelecimento de regras morais duradouras e fixas. A ideia de “bem” e “mal” não serve efetivamente de parâmetro para nortear as ações isoladamente ou o conjunto delas.

Jean Oury, em Création et Schizophrénie, diz que a preocupação maior para todos aqueles que praticam a psiquiatria deve ser traçar a cada dia o seu campo de ação, redefinindo suas ferramentas, conceitos, lutando contra a própria nocividade, isso para que seja preservado o campo da ética, domínio este sempre ameaçado. A ética é aquilo que vem a ultrapassar o campo da atuação profissional, pois diz respeito a uma atitude diante da vida e do ser humano. Pensar a psicose é poder se deparar quanto ao ensinamento freudiano onde o “delírio é uma tentativa de cura, de reconstrução”, algo sistematizado para se sobreviver, ou então pensar, a partir de Tosquelles, que a “loucura é criação e não passividade”. Podemos pensar a psicose, e até mesmo aneurose, como algo positivado e não negativizado, não como algo pela via da insuficiência, do defeito, da doença. Essa pode ser uma das éticas a apostar na criação, na reconstrução, numa possibilidade de se haver com a própria existência, como destaca Cavalcante.


Nossa ética implica também em interrogarmo-nos a propósito do nosso desejo, pois se estamos ali, metidos naquela encrenca, é preciso interrogarmo-nos o por que disto e é apenas tendo alguma noção, mesmo que nunca completa e sempre a ser refeita, do nosso próprio desejo, que poderemos nos situar em relação ao desejo do outro. E isto é ética, pelo menos como a define Lacan, ‘a justa medida entre o desejo e a ação’. Levar em conta o outro exige, portanto, que saibamos que a relação com o outro depende do lugar de nosso próprio desejo.[3]


Poderíamos perguntar: o que é efetivamente adequado na saúde mental? O que seria bom ou ruim enquanto prática assistencial? Para responder a tais questões, pela filosofia nos dividiríamos em variadas correntes, que passam pelo “naturalismo ético”, que toma os fatos morais como fatos da natureza, até o “niilismo ético”, no qual a moralidade é uma ilusão, pois não há fatos, conhecimentos ou verdades morais, não há o certo ou errado, o bom ou o ruim. Entre ambas as correntes o “funcionalismo” apregoa que algo é bom ou ruim a partir da possibilidade efetiva de se cumprir ou não a função que lhe é destinada. Para refinarmos a pesquisa, um olhar possível se dá pelos aspectos históricos, e por aquilo que nos levou a construir nosso presente.

O historiador inglês, Peter Burke, ao falar de “Como Cresceu a ideia de Cuidado[4], revela que o termo cuidado é vago e impreciso por si só, e que sua conotação varia ao longo do tempo e da cultura. Relata que o ideal é que nos tornemos cientes das maneiras como fazemos nossas praticas do cuidar, como sustentamos nossos discursos no aqui e agora. Diz que se pensarmos nas formas alternativas de se sustentar uma prática, acabamos por nos tornar mais conscientes de nossos atos e assim nos tornamos propensos e mais críticos a novos olhares frente às mudanças e ajustes que se façam necessários.

Destaca três grupos de cuidados ao longo dos últimos 600 anos: o cuidado com as crianças, com os idosos, com os doentes e com os pobres. Conta-nos que em muitos lugares, os idosos, os pobres e os doentes são tratados como crianças. Essa é uma das vertentes do cuidar e de como nos posicionamos em relação a isso. Um exemplo mostra-se nesta fala:


 “A gente trabalha com o pessoal (...) que não tem uma noção das coisas, que não sabem as coisas que falam, não sabem o que fazem (...) não são coisas de pessoas normais, bem poucos daqui são normais, eu vejo assim. (...) Só vindo para cá que a gente vê, eles são tipo crianças e fazem as coisas quando estão bem, e quando não estão bem não fazem.” [5]


Burke relata que a história do cuidar é tida como uma “psico-história”, uma história das emoções, que diz do desejo de cuidar de outras pessoas, e pontua que essas práticas tem uma localização no tempo. O autor trata destas questões pela história social, a história da organização do cuidado e dos grupos sociais.

Historicamente lembra-nos que os cuidadores originais estavam na família, o que se estendia as mães, os pais, os tios, avós e outros. Há um cuidado familiar, que se passa através de um saber transmitido e recebido diretamente destes. Mas há ainda os cuidados de ‘estranhos’, aqueles que excedem da família, o que era relativo à igreja, e hoje é dado pelo Estado.

Na Idade Média, o cuidado estava restrito à família, ou então à comunidade do vilarejo que tomava conta, coletivamente, daqueles que precisavam de atenção, já nas cidades, as paróquias ficavam a cargo de tomar este cuidado para si. Havia naquele período o conceito da “caridade organizada”, onde a “piedade” aqui se destacava, e poderíamos incluir ainda a “generosidade” e a “pena”, como afetos a se priorizar. Burke nos lembra, por exemplo, que aqui no Brasil o primeiro Hospital se chamou: “Santa Casa de Misericórdia”.


“Trabalhamos em favor de pessoas que precisam da gente, de carinho, de atenção, que estão revoltadas, e que depois de um carinho elas melhoram. (...) Eu uso muita paciência e muito amor” (...) “Acho que a gente tem que ter paciência, muita calma, muito amor, porque sem amor a gente não vai a lugar nenhum, tem que lidar com prazer, gostando deles para lidar no dia a dia, porque sem amor não se faz nada, isso é o principal e o mais importante.” [6]


A igreja recomendava aos seus fiéis que fossem realizados os “Sete Trabalhos Corporais da Misericórdia”, que eram: alimentar os pobres, dar água a quem tinha sede, dar vestimentas àqueles que não tinham, visitar os prisioneiros, dar abrigo a quem não tinha lar, visitar os doentes e, enterrar os mortos. Práticas essas necessárias e fundamentais do cuidar.

Neste período, na Europa, as instituições do cuidado começaram a se multiplicar: havia as “Casas das Dádivas” onde as pessoas que não tinham onde morar podiam se instalar sem pagar aluguéis. Havia também as “Escolas Livres”, onde crianças podiam ser educadas sem que os pais pagassem mensalidades, assim como existiam as “Fraternidades” dentro das paróquias, onde grupos cuidavam especificamente de famílias inteiras ou então de partes destas.

Outras instituições eram os “Monastérios” que organizavam seu cuidar, oferecendo bebida e comida a um grupo de pessoas desfavorecidas economicamente, além dos crescentes “Hospitais”, que eram instituições gerais de atenção a quem precisavam de cuidados, não necessariamente de saúde, mas que abarcavam uma variada gama de pessoas, aos moldes de uma “hospedagem”. Naquela época não se diferenciavam quais eram os lugares para as pessoas pobres viverem, quais que distribuiriam os alimentos e quais espaços estavam reservados àqueles afetados por uma doença ou próximos a morte.

No final do período medieval é que de fato surgiram os hospitais a parir de uma configuração médica, seguindo o exemplo de instituições características do oriente médio. Burke destaca que desde aquela época há três modos de organização destas unidades: pela especialização, através da secularização e pela marketização.

Os hospitais, de generalistas, acabaram por se especializar e segmentar-se no cuidado dos doentes, e também na cura. Se tornaram lugares onde os pacientes podiam melhorar e voltar para suas casas, o que fez com que se instaura-se uma mudança social radical. Surgiram, por exemplo, unidades específicas para crianças, os ancestrais dos orfanatos, assim como surgiram também hospitais que se especializaram em doentes mentais, os asilos, ou manicômios. Importante destacar que o louco só começou a se tornar “paciente”, a se tornar “doente” a partir do século XVIII, e que só por volta do século XIX especializaram-se os profissionais e os cuidadores destes hospitais, além de médicos, enfermeiras e trabalhadores sociais de diversas áreas.

Vem do século XV um processo de secularização, onde o Estado e os governos mais centrais assumem um lugar mais importante na organização desse cuidado. Este período foi marcado pela crise da igreja, com a fragmentação da cristandade, com a abolição dos mosteiros nos países protestantes, isso somado a uma crise social, resultado de colheitas ruins devido ao clima europeu, e a uma explosão populacional que veio a aumentar o número de pedintes nas cidades.

Viveu-se assim aquilo que alguns sociólogos hoje chamam de “pânico moral”, onde a primeira reação dos governos foi mandar os mendigos de volta para as paróquias que eles nasceram, a partir de uma ideia de que o cuidado deve ser dado a nível local. Tal politica organizada em torno do século XVI não funcionou, e culminou com a criação em algumas cidades das “Casas de Trabalhos”, dispositivos criados para que os famintos e necessitados pudessem de alguma forma ser alimentados. Considerando as condições insuficientes de estrutura e a alta carga de trabalhos impostos houve um o elevado índice de evasão, o que fez com que essa estratégia também não funcionasse.

No final do século XIX houve uma mudança política, onde os governos centrais começaram a entender que as famílias estavam se rompendo devido à urbanização, resultado imediato da industrialização, o que foi ocasionado pelas mudanças econômicas em voga. Surgiu assim um alto número de desempregados que passaram a entrar para esse grupo que também necessitavam de cuidados do Estado.

O historiador nos lembra de que o cuidado social é sempre partilhado, diretamente ou indiretamente. Somos nós que o fazemos: seja pelo Estado, pelas entidades religiosas, por grupos específicos que construímos, e exemplifica a Cruz Vermelha, os Médicos Sem Fronteiras, e outros, onde passamos a doar dinheiro a estas organizações, ou passamos a pagar impostos direta ou indiretamente ao Estado, sem ter muita noção ou controle disso. Estes são mediadores, gestores, a organizar uma burocracia, a repassar a instituições próprias e específicas os processos de cuidar.

Burke nos fala também de uma mudança que vai para uma mercantilização do cuidado, um marketing, onde algumas pessoas têm melhores condições financeiras do que outros. Uma privatização do cuidado, que vai passar por hospitais, creches, casas de idosos e demais instituições que congregam cuidadores que não se dedicam a seus próprios familiares, num dado período, para cuidar de familiares de outros, que vão pagar por isso.

Hoje tal olhar é claro, os pontos aqui abordados são explícitos e fazem parte de nossas praticas diárias e ações, o que se articula com os especialismos, e com as políticas públicas de Estado, mas num dado momento, tais processos se mostraram em nossa história como algo inédito e inovador. A seguir algumas pontuações de nossa clínica pública articuladas a uma política do cuidar.






CLÍNICA PÚBLICA E POLÍTICA

No Brasil, os anos 70 se apresentaram como a origem de todo o movimento da reforma psiquiátrica, a partir de ideais e valores próprios frente uma política de Estado que se marcava por um autoritarismo aliado a uma ineficácia na assistência pública. A década de 80 foi marcada por uma ampliação, uma moralização e um aprimoramento técnico, com ressalvas para o asilo e o ambulatório, o que culminou para a criação de serviços baseados numa lógica territorial. Nos anos 90 estabeleceram e instituíram-se o modelo de assistência em saúde mental, com a expansão dos Centos de Atenção Psicossocial, como organizadores do modelo de atenção, além de uma diversificação de serviços e dispositivos para a criação de uma rede de instituições a acolher os portadores de algum sofrimento psíquico, seja ele em quais níveis fossem.

Os anos 2000 nos mostram uma mudança no nível das políticas públicas, onde a promulgação da Lei nº 10216 e da Portaria nº 336 nos trouxeram diretrizes legais e um aumento da rede pública de cuidados em saúde mental: serviços comunitários abertos e regionalizados fazendo parte da atual proposta dos dispositivos, que não mais enfatizam a lógica hospitalocêntrica para aqueles que necessitam de cuidados no campo psiquiátrico, mas uma clínica ampliada. Assim, a rede de Saúde Mental do Sistema Único de Saúde visa à garantia de acesso ao tratamento, um sistema universal e que responda as mais variadas necessidades, estas que não são necessariamente as mesmas, com exatas especificidades para os seus respectivos grupos.

O trabalho na rede de saúde mental é assim atravessado pelas diretrizes de uma política pública enquanto elemento orientador, e geral, assim como pelas particularidades e especificidades de cada clínica, de cada discurso, de cada caso. Transformou-se uma ação setorial em política de Estado, transformou-se um modelo hospitalar para um modelo comunitário, e assim, construímos uma política de bem estar, ou alimentamos um ingênuo assistencialismo?


“O fato da política pública propor diretrizes para orientar o trabalho na rede de saúde mental não quer dizer que na prática o funcionamento se faz por protocolos. É um equivoco pensar que a clínica da saúde mental se faz por protocolos. Essa visada empobrece o que há de mais particular na clínica defendida pela reforma psiquiátrica, que é uma clínica que propõe levar em conta cada sujeito a partir de seu quadro clínico, de sua fala, de seu contexto social, de seus laços familiares.”[7]



Uma assistência em saúde mental autoriza legalmente alguns a suprir incapacidades e deficiências de outros, estes tidos como merecedores de medidas e decisões que ampliem suas chances de uma “melhor” qualidade de vida. Há atos no manejo e a questão da internação psiquiátrica, enquanto exemplo de intervenção de cuidado mostra-se importante aqui. As internações involuntárias psiquiátricas legalmente devem se restringir aos mandatos judiciais, e as urgências quanto ao destino do outro, que num certo ponto desconsidera a revelação do desejo do “louco”. Uma internação, assim como qualquer outra medida assistencial visa o que? O sofrimento do doente? O ato responsável de um profissional? O controle e o saneamento social, índices de uma política higienista de Estado?


Cabe ainda evocar uma ética da responsabilidade, aquela que fala do ‘tomar a si a responsabilidade de tratar’, não do delegar a outrem o que por lei está dado aos profissionais’, e negociar a tutela quando a razão do louco se impuser aos desmandos dos agentes da sociedade. Discutir condutas humanas pertinentes numa sociedade de cidadãos implica num permanente exercício sobre a transitoriedade de situações e diagnósticos.[8]


Classicamente, essa assistência, está para assistir as necessidades daqueles que necessitam de cuidados de profissionais que são autorizados pelo mandato jurídico e social, para o fazer público. Mas de modo geral, não se escuta “o doente mental”, nem individual, nem coletivamente, como apregoa, Pitta. O desencontro é social, familiar, e de cada sujeito, dado que os próprios portadores de algum transtorno mental não formam efetivas corporações para defender seus interesses. Aqui a própria “doença”, aquilo que é mais próprio ao campo é um sinal que conspira contra si.

Deste modo, há uma resposta social onde alguém tem de fazer valer seus direitos, seja o direito ao tratamento, à internação, cuidados quanto ao próprio patrimônio e os arranjos cotidianos e necessários. Pitta defende que a saída dele para a comunidade em condições de sobrevida deve estar adequada as suas próprias limitações, onde cuidar é dever do Estado, através do poder judiciário e das autoridades sanitárias.


“Eu tento inclui-los, tento coloca-los de maneira que eles tenham autonomia e corram atrás daquilo que é direito deles, porque eles são cidadãos como todos os outros, (...) mostro a eles o que eles são, o potencial deles e o que eles devem buscar. (...) Quero trabalhar de maneira que os pacientes tenham autonomia e saibam buscar os próprios direitos. Quero que eles saiam daquele lugarzinho de coitadinhos. Faço com que eles se vejam cidadãos, com direitos e deveres, que são parte do contexto familiar e social (...) No tratamento tem que haver uma união da família, do paciente, do profissional e do serviço. Tem que haver um elo entre todos para que haja uma sintonia.”[9]


Assistência, deste modo, diz do uso de uma ética de responsabilidades que têm imbricações legais, técnicas e administrativas ao cuidar de fato de sujeitos detentores de desejos.  Há medidas protetivas da sociedade, do sujeito, e há justificativas, cabíveis e incabíveis, quanto à periculosidade a si e ao outro. O ideal de “normal” e “patológico” sempre ficam pendentes neste ponto.


“Buscamos alcançar a melhora dos pacientes, ver eles bem, não agressivos, ver que estão se dando bem com todo mundo, conversando bem, agindo direitinho, aí vejo que eles estão melhores, sem internação.” (...) O objetivo é curar, fazer com que eles fiquem bons, ficar como a gente, e cada dia menos atacado. Corrigindo quem está errado. (...) As coisas que eles fazem não são coisas de pessoas normais, bem poucos daqui são normais (...) Quero que eles melhorem, fiquem bons do problema mental, que se curem e sejam normais como nós somos e sempre vejo um esforço muito grande. Até a gente mesmo não é muito normal, temos um desequilibriozinho”. [10]


Silva relata-nos que a atenção psicossocial envolve diferentes procedimentos: seja a mediação das trocas sociais no sentido de aumentar a contratualidade do sujeito, seja propiciar um melhor gerenciamento de si, enfatizando uma melhor autonomia, ou então, poder tornar-se referência a fim de se garantir um vínculo de confiança e assim uma continuidade no tratamento. Todas essas práticas do cuidado em saúde mental marcam as limitações impostas ao social e aos conflitos com a ordem pública. Esse responsabilizar-se pelo território, pelo processo de trabalho e por fazer o sujeito advir como responsável por sua própria condição são discursos advindos da saúde pública, da análise institucional e da psicanálise respectivamente. Tais falas incidem tanto sobre as praticas clássicas de atendimento e manejo clínicos, quanto sobre a organização e gestão dos serviços.

Os serviços comunitários em saúde mental integram redes de apoio ao sujeito, trazendo uma noção de mobilidade no território. Não aguardam as demandas espontâneas do sujeito, por intervirem direta e politicamente no contexto simbólico da comunidade, construindo de algum modo uma relação contratual com o sujeito, e a partir desse, com todo o tecido social. A atenção psicossocial é um campo que se constrói a partir de uma pluralidade de saberes e profissionais, assim como com um saber leigo de familiares e da comunidade enquanto um todo. Uma das vias do trabalho se dá em aumentar as possibilidades de contratualidade no tecido social, ao mesmo que minimizando os excessos do sofrimento psíquico.

A ideia de autonomia, na modernidade, é uma representação imediata da liberdade humana, acaba por se tornar um valor a qualificar e caracterizar o humano como um princípio. Chega-se a pensar que uma “produção da autonomia” está necessariamente articulada a um ideal de “cura”, autonomia esta que um tratamento na atenção psicossocial deve necessariamente produzir.

Há vários modos de se pensar a ideia e o conceito de autonomia, mas um deles se destaca ao tomar que a autonomia é definida como uma capacidade do indivíduo de gerar normas para a vida a partir de suas possibilidades, de ampliar seus laços sociais.


Será considerado mais autônomo aquele que depender do maior número de relações com pessoas e coisas. É isso que lhe garantirá possibilidade de escolha e lhe dará capacidade de gerar novas normas, ampliando o seu repertório para lidar com o meio no qual está inserido. Neste caso o indivíduo é considerado autônomo quando não está refém de determinações únicas, absolutas e totalizantes. Em geral, sob esta perspectiva ele, é considerado livre quanto maiores e mais variadas forem as suas possibilidades de relações.[11]


Os cuidados oferecidos na saúde mental não tem a pureza descrita dos modelos estabelecidos ao longo deste texto, a clínica não é um corpo único multifacetado. Temos vários olhares, variadas clínicas, que por vezes se sobrepõem, que se compõem, estabelecendo parciais alianças, ou totais antagonismos. Nenhum campo de nossa cultura é total, completo e livre de encontros ou contradições.

Na França do século XVIII, a medicina incorpora a psiquiatria e o asilo, tomando para si o mandato do controle social da loucura e dos comportamentos que se faziam desviantes.


“Na sociedade liberal em constituição, o Estado, a justiça e a família dividiam as responsabilidades pelo controle do louco (...) até que a medicina entrou nessa partilha, tornando o louco um doente mental passível de tutela, tendo em vista sua desimplificação com a ordem republicana, de exercício de direito, mas sujeição a deveres cívicos. O louco se transforma em alguém que necessita de proteção / cuidados ao mesmo tempo que precisa ser administrado / controlado, ou seja, fato histórico que aponta para a articulação entre a terapêutica da doença mental e a gestão de comportamentos que desafiam a ordem pública”.[12]


O ideário da uma reforma psiquiátrica, diz respeito a uma profunda mudança nas políticas publicas em saúde mental ao se dar ênfase ao atendimento comunitário em detrimento à lógica hospitalocêntrica. Mas o redirecionamento assistencial do hospital para a comunidade não se dá apenas pela via de uma simples transposição, mas faz-se por toda uma desmontagem de saberes e práticas específicas, exigindo assim novos modos de sociabilidade, e de produção de valor social.


“Trabalho com o comportamento, as emoções, a queixa dos outros, relacionadas ao desequilíbrio emocional. (...) o pensamento que vai modificar o comportamento e a ação daquela pessoa. (...) No meu objetivo pretendo causar o alívio do sintoma, já que a cura é algo que não é alcançada, pretendo a mudança do comportamento, e o objetivo é o equilíbrio”.[13]


Em nosso país vemos ainda uma variação da importância do sofrimento a depender de onde e com quem aconteça, pois na assistência a população economicamente desfavorecida há uma banalização dos sofrimentos que põe em xeque os princípios básicos de cidadania. Em boa parte das vezes o reducionismo biologicista, com uma resposta imediata, e temporária, é a demanda principal, esta que sozinha só vem a desconsiderar a dimensão mais ampla do problema.  Ao abordar e buscar resolutividades para aquilo que concerne ao sofrimento humano deve-se necessariamente eleger os aspectos socioculturais em questão, assim como o lugar que a sociedade concede a este sujeito e a resposta deste. “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, são de fato, “ideais”, da Revolução.

Soares relata que a sociedade brasileira não oferece a grande parte de seus membros as condições mínimas de sobrevivência e os benefícios da cidadania, ao ponto de exigir obediência aos seus princípios reguladores, e destaca os exemplos da propriedade privada e do respeito interindividual.


“Se nós não dispuséssemos, na sociedade brasileira, de tradições religiosas fortes e de outras modalidades de construções superegóicas, que funcionam como balizamentos redutores do potencial explosivo do comportamento; se nós dispuséssemos apenas de éticas laicizadas e liberais, certamente estaríamos vivendo uma situação muito mais grave do que a que vivemos.” [14]


Há dentre as diretrizes do Sistema Único de Saúde, um ideário de saúde coletiva e uma importância dada à sociedade civil em decidir sobre a formulação e o planejamento das políticas públicas, tanto no controle da oferta quanto na distribuição dos serviços pelo território. Essa participação da comunidade e o controle social visam decentralizar a figura do Estado enquanto estratégia democrática, convidando cada um a também tomar para si os encargos pela gestão e assistência.

No campo da saúde mental tais parcerias e redes de suporte social são algumas dos modos de atenção diferentes da internação ou do silenciamento advindo do sofrimento psíquico. Agenciar, partilhar, negociar e delegar cuidados aos profissionais, a vizinhança, e aos usuários são práticas concernentes ao campo da saúde mental, ao mesmo tempo em que se criam a permanente construção de redes.

Há impasses da atenção psicossocial que mostram os desafios frente à produção de uma autonomia e de uma cidadania, por vezes possível, por vezes idealizada, mas que abre margens às possibilidades de atendimento àqueles que conhecem como via única de alívio do mal-estar, a internação e o fármaco.


“Minha ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão orgânica, psíquica e anímica do paciente olhando o ser humano como um todo (...) Como adepto profundo da reforma psiquiátrica temos que analisar o ideal e o real. Dentro do ideal alcançaríamos situações do contexto social, no plano real uma maior dignidade humana, um respeito e uma cumplicidade maior, respeitando dentro de uma ética da cidadania” [15]

Sabemos e vivemos com os limites e impasses das instituições públicas de saúde, que são ameaçadas pelo descaso das autoridades, dos profissionais e até da população que é usuária. Uma das maneiras de se construir e se exercer uma política de saúde que se proponha pública se da por meio de ações, resoluções, diretrizes, leis e portarias a organizar um conjunto comum de atos a integrar programas que vão do Ministério da Saúde, passando pelas secretarias Estaduais e Municipais até chegar aos profissionais e usuários dos serviços. O movimento é sempre de mão dupla.

A amplitude e a vastidão do campo da saúde mental, seja por suas referencias teóricas e praticas, seja pela variedade de instituições envolvidas, não permite aspirar a uma homogeneização frente pena de reduzir a um olhar simplista a complexidade na assistência a saúde pública. Ao incluir a psiquiatria nos dispositivos da saúde mental, recusamos uma oposição simplista e enfatizamos um trabalho multiprofissional e interdisciplinar pelo viés clínico, ou político institucional. A ação da clínica pode atuar de um modo generalista, frente às diretrizes próprias ao campo como a reabilitação, cidadania, autonomia, contratualidade, ou seja, laços nos quais se possam ampliar as relações sociais dos usuários, fazendo com que proliferem suas possibilidades e autonomia junto ao social.

O modo como o trabalho em equipe se estrutura é decisivo para o destino do cuidado e podemos pensar em duas lógicas ou dois modos de organização: um no qual se segue uma lógica hierárquica das funções e dos saberes, que tem como consequência uma burocratização da clínica, dado poder e saber verticais, que burocratizam as praticas. Assim como há um modo mais igualitário de organização, que vai horizontalizar as relações de poder, mesclando as funções e os especialismos, isso sem se perder as referências e as singularidades de cada prática. Veremos a seguir as variadas éticas, discursos e práticas possíveis.



ÉTICAS, DISCURSOS E PRÁTICAS


Jurandir Freire Costa, em “As Éticas da Psiquiatria”, dispensando discussões histórico-filosóficas postula que a ética “é tudo aquilo que diz respeito ao bem, ao justo, ao digno, àquilo que é moralmente adequado[16]. Afirma que os enunciados éticos traduzem, num primeiro momento, um estilo de fala, um discurso próprio daquilo que é “certo” ou “errado”, ou seja, toda ação, estado ou intenção, que podem ser interpelados no âmbito do “isto é certo ou errado”, ou que podem ser justificados a partir dessas ordenações específicas. Um enunciado ético é sempre posto a partir de uma forma absoluta, dado que a uma ética gira em torno de valores próprios.

Postula que são três os tipos de conceitos de ética, três modos problemáticos de exercício da ética na assistência em saúde mental, grupos estes que se caracterizam por analogias e diferenças, fronteiras e transições: a ética da tutela, a ética da interlocução e a ética da ação social.

Na ética da tutela a relação do agente de cuidados com aquele que recebe os cuidados há um lugar prévio de definição de um indivíduo privado de vontade ou razão. Especificamente aqui, a questão da loucura se destaca. O indivíduo, a partir de sua conduta, é despojado de sua razão e de suas vontades, de inicio pela descrição e determinação estritamente fisicalista, passando por privações jurídico-legais quanto seus atos, tido como “irresponsáveis”, “lesivos” e “incapazes”.

A ética da tutela parte de uma objetificação máxima do sujeito, a partir dos conceitos desviantes, do transtorno, da desordem mental. Objetiva o sujeito em sua realidade biológica e jurídica, onde o “normal” é a norma devidamente instituída.


Ela é tomada tal como é, de maneira que, quem fala em nome da biologia, das técnicas biológicas, da psicofarmacologia, ou quem fala em nome do direito, tende, a princípio, a justificar seus atos morais da assistência em nome da ciência.  E aqui que temos a máxima aproximação entre a moral “do que devia ser” e a moral “daquilo que é”. Aqui o instituído é pouco criticado.[17]


A partir destes pressupostos os agentes de cuidados se definem mais facilmente e são tomados como especialistas, ao passo que o sujeito é supostamente incapaz ou desprovido de conhecimentos técnicos, um saber que dê acesso às causas de seu sofrimento, de seu mal-estar. A ética da tutela tem como referência uma ética instrumental, que prevê, prediz e controla de modo experimental seu objeto, dentre seus dispositivos estão as técnicas farmacológicas, biológicas e as instituições custodiais.

A ética da tutela, não se adequa em ser boa ou má, como se poderia pensar inicialmente. É aquela que faz com que o cuidador chamado a atender, afirme que conhece algo do corpo, e que esse sujeito legitime uma autoridade na medida em que ela está de acordo com certos pressupostos a respeito da conduta humana. Do mesmo modo quanto àquilo instituído pelo jurídico-legal na demarcação de limites e regras, já que nem tudo pode.

O grande questionamento desta ética, e por vezes, a grande resistência quanto a este discurso, é que ela é facilmente resvalada e tendenciosa ao tratar o sujeito como mero objeto e produto de variadas intervenções. Tal ideia de definir sujeitos como objetos de circulação econômica, através de cadeias de lucro, de produção de desejo se faz presente no discurso contemporâneo de modo intenso. É grave a definição reducionista genética e neuroquímica de fatores da subjetividade e de nossa cultura como um todo.

A ética da interlocução destaca a natureza do sujeito relacionado com suas ações e condutas, não definindo este sujeito como privado de vontade ou razão, mas como portador de uma vontade e razão próprios, onde as referencias ao instituinte e ao instituído são mais facilmente criticados, assim como o poder do especialismo se autolimita. O sujeito do tratamento é um sujeito competente, com possibilidades dialógicas, de buscar aquilo que lhe é melhor. Jurandir relata que esse modelo da ética da interlocução baseia-se na ética da moral privada, onde aquilo que é instituído pode ser desfeito, refeito em nome de uma recriação permanente, não se fixando a tempos específicos, mas permitindo uma flexibilidade mais ampla que as recriações de crenças e normas sociais.


A flexibilidade do universo das técnicas psicanalíticas, psicoterápicas ou de autoajuda, a meu ver, vem um pouco deste a priori ético de valorização das crenças privadas, tendo interesse para o indivíduo e pouco interesse para a ordem social. Os dispositivos desta ética são constituídos por recursos consultorais ou ambulatoriais, que dizem respeito a estas relações onde se procura uma modificação dos afetos individuais. [18]


Um ponto importante desta ética da interlocução é a ênfase na individualidade que pode trazer a perda quanto ao olhar para o outro.

Outro tipo a se destacar é a ética da ação social. Nesta, sujeito e agente não disputam quem possui a razão ou vontade, ambos buscam refazer a ordem ou a vontade geral. Tanto o sujeito como o agente da assistência se definem como pares, cidadãos que buscam renovar o instituído abrindo espaço para a ação e integração que não foram previstas ou mesmo realizadas. Aqui eles são definidos como iguais, ao mesmo que as ênfases nos estatutos de cidadania são prioritárias, assim como há um destaque valorativo para o ideal da assistência, onde ideais políticos e terapêuticos se equivalem.


Quando a terapêutica não é claramente abolida do vocabulário, é fracamente assimilada ao que seria uma ação política real. O modelo desta ética, que tem normalmente como universo de amostra os casos graves, atingidos ou abandonados pela psiquiatria (...) tais como minorias, nestes casos, nós vemos o modelo da ação social pregnante. É tomar aquele sujeito suposto assistido, considera-lo como um par, um cidadão, um próximo, e procurar agir, construindo no mundo outros lugares de interação. [19]


Essa ética, visando o social, pode por vezes construir uma espécie de moral das minorias, tomando o instituído das divisões como algo a ser aprofundado a todo o custo, criando cada vez mais tipificações específicas. A ética da ação social se pauta no modelo da ética pública, que faz com que se possa agir dentro de um conjunto de práticas e dispositivos que nos dê um ponto em comum, de caráter moral escolhido como norma.


“Trabalho com pessoas e me volto para o social, para o objetivo da reforma psiquiátrica, de fazer com o doente mental, até onde isso é possível, o resgate da cidadania, fazê-lo cidadão com diretos e deveres, de inseri-lo na sociedade o mais que eu possa, mesmo com as barreiras, impedimentos e dificuldades sociais e profissionais. Procuro dar o maior espaço possível para estas pessoas viverem com dignidade (...) Minhas ferramentas de trabalho é a minha relação com as pessoas, a relação interpessoal com o paciente, mas também com as pessoas na comunidade e as outras instituições”. [20]


Quanto à relação da ética com o social, podemos tomá-la inicialmente a partir da tradição grega onde ética está associada à noção de morada, a casa, um tipo de segunda natureza onde a comunidade compartilhava os valores de modo unívoco, ou seja, uma lógica do comportamento, dos códigos estabelecidos para ação, um fazer consensual, mesmo que maleável, articulável e dinâmico, mas que não levantava dúvidas. Na modernidade as orientações sendo multifacetadas fazem aparecer diversos olhares e fazeres que criam variadas referencias, que por vezes se contradizem e se fragmentam.

Costa, nos fala ainda de uma ética dos cuidados, que é uma ética do sofrimento, que não formula preceitos, mas que é prescritiva quando diz que é a crueldade, aquilo que fazemos aos outros, onde nada do que se faz pode atentar contra a integridade do semelhante.

Uma postura ética possível pode ser evocada como um novo posicionamento, frente à apropriação, partilha e integração de saberes e conceitos variados. Aquele que adoece, aquele que sofre é um sujeito e não um corpo, daí o fundamental lugar da linguagem frente à investigação destes processos de tratamento, não enquanto uma manifestação patológica ou mero sinal de correção ou resposta rápida, mas como campo de possibilidades de se mostrar a dimensão de uma queixa que particularize o pedido de ajuda. A linguagem aqui deve ser ouvida por toda essa gama de profissionais a compor uma equipe na disponibilidade de se haver com situações não previstas e soluções a serem descobertas ou inventadas.


“Os instrumentos são conversa e remédio. Precisam muito de diálogo, muito carinho. Gosto de conversar com os pacientes, pois eu acho que estou ajudando. (...) Tenho essa ligação direta na conversa, em arrumar a medicação, dar o medicamento, muita das vezes orientando (...) muitas das vezes ouvindo”.[21]


Figueiredo[22] nota que há uma tendência da psiquiatria em privilegiar o tratamento medicamentoso frente sua rapidez e eficácia dos resultados. Um índice disso são os manuais diagnósticos e estatísticos que fragmentam categorias clínicas da psicopatologia clássica, como neurose e psicose, para criar um conjunto de síndromes variadas e transtornos de personalidades. Outro ponto curioso é a conjunção de sinais e sintomas a parir de substratos químicos e neuro-anatômicos rastreados por aparelhos que mostram alterações não perceptíveis inicialmente. Na fisiologia, ressalta sua importância, mas no campo da subjetividade e da saúde mental os resultados são imprecisos, vagos e ainda contestáveis.

          Ao tratar do trabalho em equipe, Figueiredo[23] vai afirmar que, estas podem ser mais ou menos coesas, assim como mais ou menos instituídas, isso frente às concepções de assistência existentes nos diferentes serviços de saúde. Para a execução de um trabalho consistente em saúde mental e que abarque a diversidade da demanda há a formação de uma equipe multiprofissional a se construir um trabalho interdisciplinar.


“Trabalhar em equipe em alguns momentos me desespera, em outros me encanta, e me dá vontade de continuar trabalhando, é o encanto das múltiplas diversidades, que me enriquecem, mas que, em alguns momentos me traz enormes dificuldades devido a olhares arraigados por conceitos antigos e preconceituosos, e que incorrem nos mesmos erros, e isso é desesperador.”[24]


Há uma mistura dos termos multiprofissional, multidisciplinar e interdisciplinar, que supõe um tipo de correspondência simétrica entre as diferentes categorias profissionais e entre as diversas disciplinas, fato este que pode descaracterizar as especificidades do trabalho clínico, fugindo de questões de ordem ética e política que vão além do funcionamento institucional.

Quanto à formação das equipes há a defesa das especialidades, onde cada qual tem seu campo de atuação, o que pode estabelecer fronteiras rígidas a isolar práticas de modo a não existir maior contato, ou então, encontros nos quais haja uma rica troca de experiências. Frente às práticas mais isoladas há uma burocratização, um esvaziamento da ideia de equipe, ao passo que num processo de interlocução disciplinar os diagnósticos, os encaminhamentos e os tratamentos vêm à tona produzindo resultados de uma prática clínica ricos.

Para promover a saúde mental, acontecem situações nas quais os profissionais são chamados a atuar em diferentes dispositivos e situações a partir de um referencial comum, na maior parte das vezes não muito bem definidos. Este é um dos questionamentos que este trabalho visa destacar. Nestas situações todos ficam habilitados para atender individualmente, em grupos ou em domicílio, receber emergências, acolher, fazer oficinas, acompanhar internações, agenciar cuidados básicos de saúde, além de participar do cotidiano institucional e administrativo, porém fica facultado aos médicos prescrever a medicação. E Figueiredo destaca:


Mas aposto para um possível paradoxo: que se esteja criando a necessidade de se formar superespecialistas preparados para lidar com um leque amplo e heterogêneo de instrumentos clínicos, o que demanda uma postura subjetiva e profissional muito rara. Por isso mesmo, corre-se o risco de tomar a exceção como regra, diluindo o alcance teórico e o potencial terapêutico de certos instrumentos clínicos. Ou ainda, de não tornar explícito e, portanto, transmissível o referencial teórico ou o modelo que norteia as diferentes ações terapêuticas.[25]


Relata que a partir dessas questões possam ocorrer, por vezes, variações e deslocamentos interessantes frente a tais desvios dos especialismos. Não raro ocorre ainda a produção de hierarquias de uma profissão sobre as outras, de modo mais explicito, ou disfarçado, ou de determinado modelo ou discurso que vai direcionar o funcionamento da equipe, ou parte dela, no encontro ou desencontro dos profissionais e no trabalho clínico.

Ana Cristina Figueiredo, também recorta três modelos de compromissos éticos, que podem formar outros modelos híbridos, ou então, se excluírem completamente: o modelo médico, o modelo psicológico e o modelo da atenção psicossocial.

O modelo médico seria aquele a não destacar o trabalho multiprofissional, dado o reducionismo de sua prática no encontro e conjunção de outras áreas. Funciona sob a ética da tutela, de modo instrumental, onde o sujeito é privado de razão e vontade frente uma descrição fisicalista. A grande marca desse discurso é a objetivação da doença, ou mesmo do sintoma como algo que o sujeito possui, que o acomete, e a partir do qual muito pouco ele pode fazer senão seguir as orientações dos especialistas e as prescrições, tanto as medicamentosas quanto as educativas. O ato de medicar é correlativo ao médico, e faz-se de suma importância no campo da saúde mental, pois remediar um dado sofrimento traduzido como um conjunto de sinais e sintomas específicos requer acuidade frente aos efeitos diretos e colaterais, além das implicações clínicas a longo prazo.



“Além da psicofarmacologia, da abordagem médico-científica vejo também outra ferramenta de trabalho que é a aplicabilidade do sentido humanista da pratica psiquiátrica. Minha ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão orgânica, psíquica e anímica do paciente olhando o ser humano como um todo”.[26]


Neste modelo, o alívio imediato de um sofrimento é sinônimo de um restabelecimento do sujeito, da sua doença, aqui o foco se dá pela via da observação, administração de fármacos, vigilância, acompanhamento da evolução ou remissão dos sintomas. Cumpre-se desta forma uma função social legítima onde os psicofármacos atendem uma demanda social de bem-estar. Através de um saber sobre o corpo, a medicina tem o poder de barrar, de silenciar temporalmente o mal estar, tornando-o mais suportável.


“Os instrumentos são a equipe de trabalho, as oficinas, o psiquiatra e o psicólogo, principalmente o psiquiatra, que todo mundo corre nele, devido à medicação.”[27]


O modelo psicológico embasa-se na ética da interlocução, pautado na ética da moral privada, onde o sujeito é reconhecido como competente para buscar soluções para seus conflitos junto ao profissional, para aquilo que escaca à vontade e de sua razão. Este modelo marca a especificidade quanto à definição de sujeito, aquele que responde, e que não se reduz ao indivíduo da vontade. Sujeito aqui é aquele dotado de um saber e poder de decisão, imanente e autônomo em relação ao social e à própria cultura que o abarca como sujeito de linguagem. Uma leitura mais ingênua pode enfatizar o individual como uma unidade em si mesma, o que pode levar a uma ideia errônea de que tudo depende, simplesmente, da força de vontade deste sujeito.


“Uso a reflexão, o paciente, sua história, o que ele traz, não dirigindo o comportamento, até porque cada um é cada um, e o que é melhor para um não é o melhor para o outro. (...) Meu objetivo é proporcionar ao indivíduo uma reflexão frente à problemática que ela está vivenciando, que ele possa se autodirigir, que ele possa ser capaz de encontrar aquilo que todos nós buscamos: uma plenitude. Uma felicidade que todos nos almejamos”[28]


O modelo psicossocial é aquele que se pauta na ética da ação social, que se referencia na ética pública a definir sujeito e agente terapêutico como cidadãos iguais. A terapêutica se equivale à política e vice-versa. Os cuidados são dedicados aos casos mais graves, de sujeitos cronificados pela estrutura psiquiátrica tradicional, que se mostra também na luta política ao asilo e ao ambulatório tradicional, a dupla medicamento e psicoterapia.


“Pretendo ajudar no processo de desinstitucionalização do paciente, o que está muito longe de acontecer. Conseguimos desospitalizar, mas desinstitucionalizar estamos muito longe de conseguir, precisamos de desinstitucionalizar até mesmo dentro dos CAPS e de outras instituições de saúde mental, fazer com que o paciente seja visto e aceito como uma pessoa capaz de contribuir para a sociedade”. [29]


O adoecer enquanto acometimento biológico, e o mal-estar advindo de um conflito subjetivo deve dar lugar a mudanças mais amplas nessa modalidade de se pensar o tratamento, que visa reconstrução das relações sociais, de trabalho e convivência. As praticas grupais e coletivas se destacam e são priorizadas frente à reconstrução de laços precários ou desfeitos. Algo delicado é quando há a suposição de que a clínica se reduz a uma política das igualdades, ao mesmo tempo em que a doença ou o conflito sejam meramente de ordem social ou ideológica.

Tais modelos não se mostram puros em si, na maior parte das vezes se mesclam compondo modelos híbridos, variando em situações específicas, entre profissionais e instituições. Num dado momento um pode prevalecer sobre o outro, fundamentando modalidades semelhantes de intervenção e tratamento, por vezes, modificando seus métodos e seus objetivos. Figueiredo destaca a prevalência de um modelo sobre o outro e analisa:

Quando a interlocução prevalece sobre a tutela, há a possibilidade de uma maior sociabilidade, de um convívio, algo que se aproxima em efeitos da proposta do modelo da atenção psicossocial, para além da questão diagnóstica e do uso da medicação, não os excluindo. Permite-se assim outra apropriação e uma consequente ressignificação dos próprios sujeitos, deixando em aberto a produção de efeitos inusitados e não esperados.

A tutela prevalecendo sobre a interlocução mostra-se, por exemplo, nas necessárias abordagens da atenção primária, ao informar e esclarecer sobre as doenças e suas consequências para melhor tratá-las. Um problema pode se dar na generalização exacerbada ao buscar suprir especificamente os objetivos da clínica médica. A interlocução sendo substituída ao todo pela educação, pela simples pedagogia dos atos pode resultar num fracasso clínico onde o sujeito não se sente implicado com sua própria patologia e seus sintomas.

Quando a interlocução prevalece sobre a ação social, o fazer falar acaba dando sentido ao mal-estar psíquico, e abre possibilidades de significação abertas a novas identificações. Aqui o risco de estigmatizar identidades rígidas e cristalizadas é minimizado, mas dar conta de diferenças subjetivas, englobadas num recorte homogeneizador é um campo limítrofe a reforçar uma dada condição social ao invés de diluí-la.

A ação social prevalecendo sobre a interlocução se mostra claramente nas atividades das oficinas terapêuticas, por exemplo, onde todo o trabalho e a produção, em seus aspectos criativos, podem minimizar os espaços dialógicos entre os sujeitos. Grosso modo destaca-se a tematização da produção comum ou mesmo coletiva como mote terapêutico prioritário, com consequente desvalorização dos efeitos singulares e subjetivos para cada sujeito. Os efeitos terapêuticos de pertinência a um grupo e de produção são inegáveis, mas não devem deixar de almejar um endereçamento específico para se haver com um trabalho que seja clínico.

A tutela prevalecendo sobre a ação social mostra-se, por exemplo, nas práticas das atividades ocupacionais dirigidas especificamente a uma dada clientela, a partir de discursos estigmatizantes, ao se tomar o “doente”, como “regredido”, “infantilizado” ou “incapaz”, onde o cuidador define todo o projeto terapêutico ou plano de trabalho, independente da escolha ou da vontade do sujeito.

Quando a ação social prevalece sobre a tutela, destacam-se a terapia ocupacional, ou praxiterapia, o lazer, a sociabilidade e a abertura para espaços de autogestão. A construção de autonomias pode ser a via de acesso. Um exemplo se dá nos pacientes psicóticos cronificados que a partir de um movimento específico se engajam na luta antimanicomial, encarando uma verdadeira militância oposta a condição anterior de tutelado. Este acesso a cidadania perdida é salutar na medida em que se limita a operar como função simbólica e não como um peso, um fardo que cai sobre o sujeito levando-o a responder para além de suas possibilidades de elaboração e suporte. Aqui o igualitarismo pode apresentar um risco enquanto elemento desestabilizador.

No trabalho em equipe há uma consequente parcialização dos olhares, onde o psiquiatra medica, o psicólogo a partir de sua escuta avalia a personalidade, assim como o assistente social se atem nas questões familiares e sociais, o enfermeiro na dedicação de cuidados específicos, o terapeuta ocupacional da relação do sujeito com seu corpo e por aí vai.

“Fazer um acompanhamento em cima do comportamento do paciente, um acompanhamento que na maior parte das vezes é variado (...) Acho que aqui está tudo certinho: o psicólogo faz o serviço e desenvolve, o assistente social acolhe, o enfermeiro faz o cuidado de enfermagem e por aí vai (...) focar a patologia do paciente no dia a dia, o quadro de saúde e os problemas que vem de casa.” [30]


Para além da construção de uma significação profissional de tratamento, o mais adequado a um verdadeiro trabalho que se proponha clínico é a circulação de saberes, que se constroem em relação a um desejo de saber sobre o que determina aquilo que é determinante na clínica de cada sujeito. Eis a particularização caso a caso.

Figueiredo defende que pela via da psicanálise a ética da tutela está fora de questão, assim como a ética da ação social, dado que não há como conciliá-las. O limite está na recuperação da cidadania perdida, o que pode ser incompatível com a especificidade de uma escuta da elocução da cada sujeito. “É uma escolha a ser feita”, destaca. Para fazer valer essa elocução, o psicanalista deve estar advertido para se atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem se perder na terapia ou mesmo na pedagogia, que por vezes é convocado a fazer, principalmente no serviço público onde curar e educar, rápido, são os principais mandatos.


“Exigem da gente dar conta de todos os portadores de sofrimento psíquico do território só que isso é praticamente impossível, impossível também é conciliar essa postura muita das vezes respeitosa do desejo do outro e aquela coisa mais autoritária que gera uma briga terrível. (...) acho muito difícil trabalhar com psicanálise no serviço público, até porque essa é uma questão que vai pela via institucional, seja pela transferência, por uma triangulação institucional, o que é difícil.”[31]


A tarefa inicial assim é poder tomar a interlocução de modo sutil para dela destacar a elocução, convertendo-a em fala associativa como um modo de fazer o sujeito se apresentar. A especificidade do trabalho analítico está em voltar-se radicalmente as produções da fala dos sujeitos, para daí extrair suas consequências.

Mesmo trabalhando a partir do modelo da interlocução, Figueiredo alerta que o risco de um sectarismo quanto a práticas e discursos da clínica está no movimento corporativista que dificultam as relações intra-institucionais e acabam contaminando o trabalho possível.


Os mais burocráticos medicam ou fazem uma psicoterapia anódina, e os mais corporativistas criam tensões que acirram as disputas de poder pelas pequenas causas imersos, mais do que nunca, no indesejável narcisismo das pequenas diferenças. [32]


Figueiredo nos convida a pensar os princípios éticos que orientam a assistência em saúde mental, nos propõe conhecer para compreender, antes de se elaborar planos, condutas, regras ou códigos para proibir ou prescrever, isso como um exercício de reconhecimento e respeito às diferenças, pois somente uma abordagem múltipla marcaria esse reconhecimento das diferenças.


Aos poucos, vivenciando a gente vai aprendendo, pois lidar com a questão da mente é difícil. Na verdade a gente pensa que sabe, mas não sabe, a gente está lidando com uma coisa que a gente desconhece.[33]


A seguir algumas considerações sobre a interlocução e sobre o campo da saúde mental.


INTERLOCUÇÕES E PROVOCAÇÕES


Se formos verificar no dicionário o termo “saúde mental”, iremos encontrar que esta é de algum modo um “estado caracterizado pelo desenvolvimento equilibrado da personalidade de um indivíduo”, com “boa adaptação ao meio social” e “com boa tolerância aos desafios da existência individual e social”, e esse é um dos grandes riscos da reforma psiquiátrica.

Não levar a sociedade a repensar a relação estabelecida com a doença mental, ao mesmo que privilegiar uma adaptação do doente mental ao seu meio é elaborar explicitamente o apagamento do sujeito, através de uma ortopedia pobre que mascara uma ética do cuidar. Somente na conjunção das diversas disciplinas e discursos é que podemos começar a pensar num justo campo de um saber que se proponha interdisciplinar:


A clínica, por um lado, diz respeito ao caso tomado em sua singularidade. A saúde mental, por outro, diz respeito às ações políticas e eticamente orientadas, só que referida a uma singularidade não individual, à singularidade de um certo grupo. Melhor dizendo, a saúde mental diz respeito às especificidades de um grupo social portador de um traço comum (no caso, a “loucura” e a exclusão social).[34]


A clínica nos diz que existe um sujeito no indivíduo, assim como a saúde mental nos lembra das variadas determinações sociais, políticas e ideológicas, do indivíduo para o sujeito. Os dois olhares só entram numa justa medida quando consideramos possíveis antagonismos ou sobreposições.

Há na contemporaneidade um discurso que se centra no “sujeito cerebral”, no qual o cérebro é tido como o lugar da subjetividade humana. O discurso neurocientífico atravessa o imaginário leigo ao tecer toda uma teorização que se intitula “científica” ao abordar a diferença sexual, as compulsões, os afetos e nossas diversas outras características humanas, seja no contexto do indivíduo seja no contexto da sociedade. As intervenções psicofarmacológicas somadas às técnicas de visualização da estrutura e funcionamento cerebral elaboram as certezas e verdades do discurso neurocientífico que elegem o cérebro como o centro de todas as ações e movimentos.

Nossa ética em saúde mental não deveria considerar a dimensão da subjetividade? Não haveria assim uma tensão conceitual entre o sujeito cidadão, um sujeito da singularidade e um sujeito biológico? A cebralização reduz a questão social e subjetiva, enfatizando as técnicas e teorias diagnósticas, sustentadas por um discurso tecnológico, a incidir diretamente no tecido neural. Assim não há espaço para a experiência vivida, apenas um comportamento objetivo, biológico, descartando toda a subjetividade e intersubjetividade.


Sabemos que a vida psíquica não cabe no cérebro, mas tampouco cabe em qualquer outro constructo, discurso ou matéria tomados isoladamente (...) nem todas as abordagens são compatíveis ou partilham da mesma ética, mas não estamos em condições de dispensar nenhuma das peças do tabuleiro. Resta saber se o campo da saúde mental suportará e sustentará a tensão instalada, em cada lance, pelo diálogo entre posições muitas vezes tão distintas.”[35]


Há a possibilidade de uma ética da demanda, que visa descontruir a demanda inicial, relativizando o pedido de medicação, oferecendo outras vias de tratamento não enfatizando o diagnóstico psicopatológico, mas trabalhando junto a um diagnostico situacional, os articulando. Nesse processo há de se convocar o sujeito a ser parceiro no processo do próprio tratamento, não sendo apenas depósito de sintomas e serem extirpados pelos profissionais e seus instrumentos. Aqui ser tratado é um lugar frente ao outro que atua a partir de um modo específico de acolher e proteger o sujeito de seus próprios excessos e atos.


“Há uma questão que as pessoas não entendem, pois as coisas são muito ligadas a supressão dos sintomas, e a gente não trabalha assim, essa é outra dificuldade, pois a maioria trabalha assim e por isso a gente se sente nadando contra a maré”. [36]


Para a psicanálise, a complexidade do dispositivo não deve ir de encontro com os ideais do terapeuta, pois se a ideia de cura é referenciada pelos seus próprios valores, sua função não é de ser um analista. O analista deve assim resistir com seu eu, seus sintoma, suas interpretações plenas de significado, mas com seu saber suposto que não deve ser tomado num eu ideal. Porém há variadas clínicas em atuação.

A palavra clínica, tão repetida nesse texto, vem do grego kline, e se refere a leito. Clínica é o ensinamento que se faz no leito, diante do corpo, na presença do sujeito. Tal ensino não é teórico, se dá a partir da experiência particular, nunca a partir de um saber universal, mas referenciado ao particular do sujeito.


Quanto à clínica, sabemos que vem do grego kline, leito; o sentido da clínica é o debruçar-se sobre o leito do doente e produzir um saber a partir dai. Em suma, a “construção do caso clínico” em psicanálise é o (re)arranjo dos elementos do discurso que “caem”, se depositam com base em nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra.[37]


Assim Figueiredo enfatiza que a psicanálise não é o efeito de um saber do outro sobre uma história, mas o encontro das ferramentas conceituais de um analista com as contingencias de uma história, produzindo um caso, e por vezes um novo sujeito, algo singular e inventado a cada nova situação. Ao tratar da construção do caso clínico na saúde mental, vai marcar que para se operar com o rigor e a radicalidade clínica há de se fugir de duas grandes armadilhas insidiosas: a pedagogia interpretativa, que visa a partir de psicologismos um saber, e a terapêutica da restauração, que vai ser enfática ao almejar um retorno ao estado anterior da doença.


“Vejo que nosso principal instrumento é a nossa qualidade mental de entender e de fazer esse processo de transformação, trabalhar com eles, de conversar, dos cuidados. (...) Dentre meus objetivos está o meu prazer de que eles estejam bem, amparados, com suporte, protegidos contra a sociedade, contra as doenças, acidentes, o dia a dia.”[38]



Ao pensarmos em uma reabilitação, esta só deve acontecer na medida de seguir o estilo de cada sujeito, se desfazendo do emaranhado de saberes ou funções a determinar o necessário, ou melhor:


Em vez de nos perguntarmos o que podemos fazer por ele, a pergunta deve ser feita de outro modo: o que ele pode fazer para sair de tal ou tal situação com nosso suporte. Isso significa de termos de suportar, no sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo a sua responsabilidade a cada vez, a cada ato. [39]


O melhor antídoto seria a responsabilidade? Figueiredo responde que sim, mas só ao fazer o sujeito se perguntar: “O que é que eu faço aqui? O que é que torna minha vida tão insuportável, o que posso fazer para encontrar uma solução?”. Pontos cruciais e fruto de um trabalho de equipe que não deve ser levado pela ideia de curar ou educar.


“Para você ser professor você também tem que ter um controle, você tem que prender, ensinar, isso para transmitir aquilo que você sabe, e na área de saúde mental a minha facilidade vem desse controle, pois quando coloco 25 pessoas no grupo, eu tenho esse controle sobre eles, com o grupo. Uso muito a questão didática, a postura de como conduzir” [40]



Reabilitação diz de reeducar, esse um dos matizes do processo civilizatório, da construção e formação de laços sociais. Mas as pulsões são ineducáveis e mostram-nos os paradoxos.

Quanto ao sujeito nota-se que a via é poder seguir seu próprio estilo, para lhe provocar naquilo que lhe é pertinente, fazendo-o tomar a responsabilidade de seus atos, nem que seja por uma via mínima, mesmo que não tenha responsabilidade jurídica de si. Separados desse campo de responsabilidades, esses sujeitos tutelados, desresponsabilizados de si, não se sentem menos culpados ou vitimados. Tal postura ética só enfatiza uma imobilidade, falta de soluções próprias e uma cronificação da “doença”.  Não somos contra a uma assistência ou uma reabilitação que se mostre como uma restituição, um reconstruir do direito à cidadania, mas sabemos que a tutela decreta o fracasso da clínica e o fim da transformação da psiquiatria. Pensamos numa reabilitação mais no sentido jurídico do que no sentido médico-ortopédico.

Acolher e oferecer certo alívio do sofrimento, apaziguando a angústia e os excessos do mal-estar é algo fundamental, um meio e não um fim, pois há um impossível, há um “incurável” da “doença mental”, algo que não se dá a reparar. Há de se colher as produções do sujeito como indicadores de seu tratamento, não impondo uma prática ou modelo de reabilitação pela via de uma moral ou de uma pedagogia das condutas.

Miller[41] nos fala que a saúde mental é definida segundo a ordem pública, ou seja, pontua que os pacientes da saúde mental são selecionados a partir de uma perturbação da ordem pública, ordem esta que também pode chegar até a ordem supostamente privada da família. Relata que os trabalhadores da saúde mental exercem um ofício próximo ao trabalho dos policiais e daqueles que trabalham no judiciário, a seu ver, a saúde mental está para reintegrar o indivíduo à comunidade.

Pontua que o critério operativo a situar o indivíduo do lado da saúde mental, e do lado da ordem pública é a responsabilidade, ponto também defendido por Lacan ao falar que a responsabilidade, como um castigo, seria um dos critérios essenciais à ideia do homem que prevalece em nossa sociedade. Deste modo, a noção em vigor para o conceito de saúde mental é sobre a responsabilidade de um indivíduo, ou seja, se o sujeito é responsável há a resposta social possível de castigá-lo, ou então, se é irresponsável pelos seus atos, há a submissão a algum tratamento determinado para uma cura. Por este viés o homem teria saúde mental sempre que fosse possível castigá-lo por seus atos.

Em seu texto Miller relata que o termo sujeito, tão usado no discurso psicanalítico, não se introduz a partir do mental, das teorizações do campo médico-psicológico, mas a partir do direito. O irresponsável seria aquele que não teria razão pelos seus atos, que não responderia por eles, e pontua que “responsabilidade” inclui uma resposta, na raiz do termo, onde esta responsabilidade é a possibilidade de responder por si mesmo. A partir de uma equivalência social e da cultura, a saúde mental seria parte do conjunto da ordem pública, um tipo de subcategoria.

Enuncia que o psicanalista não é um trabalhador de saúde mental, e que esse é o segredo da psicanálise, mesmo com aquilo que se possa dizer para justificar seu papel enquanto um elemento de utilidade social. Mas isso pode mostrar um paradoxo, pois a psicanálise é um tratamento que se dirige exatamente ao sujeito de direito, àquele pleno enquanto tal, um sujeito que responde pelo que faz e pelo que diz, e que está em constante e necessário encontro com o outro. O sujeito é aquele que responde, e em psicanálise podemos até pensar que o próprio sujeito já é uma resposta, aquele que tem a ver com aquilo do qual se queixa.

A saúde mental em seus cuidados trata das perturbações do físico, do mental e do social e esta é por sinal, a atual definição dada pela Organização Mundial de Saúde: Saúde é um completo bem-estar biopsicossocial. Miller levanta uma provocação e nos diz que esta definição é a voz doce do imperativo impossível, a fórmula do supereu moderno de modo totalitário, sob o véu de um ideal. Lembra-nos ainda que a definição clássica de saúde se da pelo silêncio dos órgãos, mas há o inconsciente que nunca se cala e assim não faz harmonia. Deste modo, em psicanálise, relata que a saúde mental não nos serve enquanto critério para uma prática analítica, mas sim de ordenação pública.

Laurent ao falar da saúde mental diz que ela existe, mas que tem pouco a ver com o mental e mais com a saúde, dado ela estar referenciada ao outro e ao silêncio, pois a saúde mental é o que garante o silêncio do outro, tal como a saúde pode ser pensada como o silêncio dos órgãos, como relatamos. Descreve que pela saúde mental a ordem pública é deslocada para o novo estatuto do mestre, embaraçado com as medidas, políticas, cifras, índices e sondagens.

Lembra-nos que foi com o Iluminismo e posteriormente com os Direitos do Homem que se iniciou a preocupação com a saúde e com o mental, englobando-se também os aspectos sociais. O estado contemporâneo apresenta novas definições de um horizonte democrático prometido aos cidadãos, não mais garantindo a felicidade, nem mesmo a seguridade do Estado de Bem Estar-social. Limita-se a demostrar pela via científica os efeitos de um bem estar, privatizado e individual, não situando o campo do necessário, tampouco o lugar do contingente. É a responsabilidade que determina ser alvo de tratamento ou punição.

Machado, ao tratar dos paradoxos em saúde mental, relata-nos que estes fazem parte de um exercício ético a nos ajudar a esclarecer o lugar de uma clínica singular, e nos alerta para que nossa prática não caia por si só num obscurantismo, ou então em consensos. Se saúde e doença já são critérios imprecisos no plano orgânico, naquilo que tange ao psiquismo o problema se torna ainda maior. Defende que a tese que mais lhe parece ousada é a de que nosso modelo de saúde mental está mais para o modelo máquina, do que para o mundo animal. Na relação do sujeito com o Outro, se não há um sujeito sem o outro, e se a saúde é o silencio do Outro, para a psicanálise a saúde mental é da ordem do impossível.


A psicanálise, a rigor, não trabalha com o mental já que este não se confunde com o inconsciente. Ao tomar como objeto o sujeito do inconsciente fica impraticável a ideia de saúde, pois do inconsciente somos todos doentes, padecemos dele.[42]


O objeto da saúde mental é aquele delineado pela clínica da atenção psicossocial, que a partir de um conjunto de medidas pautados em significantes universais, como inclusão e cidadania, o que pode vir a deixar o sujeito fora de suas particularidades. A ética da psicanálise busca vigorar para além dessas generalizações, não apostando num conjunto específico de regras, normas ou deveres. Essa ética a qual nos referimos não se guia por uma moral a promover um ideal de saúde, bem estar ou mesmo “felicidade”, não se vincula a ideais imperativos de nossa civilização.

Borsoi[43] nos fala que tudo vai depender das consequências e não das boas intensões, e lembra-nos que as instituições de saúde mental vêm se questionando frente aos aspectos da segregação e destes ideais universalizantes planejados em suas práticas, e assim marca que o discurso do mestre é o que vigora aquele que quer o bem do paciente, assim como sua inclusão social, ou melhor, biopsicossocial. Relata que aquilo que está em jogo na saúde mental em termos de objeto, é aquilo que deve ser deixado de lado frente a toda e qualquer forma de normatização e esquadrinhamento.

Quanto ao uso adequado do discurso analítico numa instituição, seja ela qual for, marca que tal discurso está para opor-se ao gozo da segregação que relega, separa, recusa e não ouve o sujeito. Uma das vias pode ser levar o sujeito a despertar para uma responsabilidade nova, algo pelo qual poderá de fato estar incluído.

“O que quer um analista?” Esta é a pergunta a que se depara um analista para suportar sua oferta. Também é a pergunta chave que direciona todo um tipo específico e singular de trabalho. Para Freud um analista não pode querer a normalidade, dado que não se chega a um padrão possível do “normal” para o qual se deseja “educar” os pacientes. Lacan, em seu Seminário 11, nos alerta que em psicanálise não há apenas o que o analista pretende fazer de seu paciente, mas, há também o que o analista pretende que o seu paciente faça dele. Um analista não é “uma mãe completa”, ou “uma mãe suficientemente boa”, tampouco, um “filho-pai”, nem um representante da realidade a qual o eu do paciente aspira e almeja.

Numa análise o único sujeito em questão é o analisando como sujeito do inconsciente, ou seja, o desejo do analista não é o desejo de um sujeito, não vai pela via de um saber, tampouco é uma forma de gozar enquanto objeto ou pela via de seu poder na transferência, não é uma modalidade pulsional.


O desejo do analista não é um desejo puro. É um desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado ao significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez em posição de se assujeitar a ele. Somente aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque está fora dos limites da lei, só onde ele pode viver. [44]


O significante primordial ao qual ele deve se assujeitar é aquilo que é próprio ao discurso psicanalítico, e sua função social está num desejo de “diferença absoluta” que não deve ser entendido como um tipo de narcisismo das pequenas diferenças, como relatamos há pouco. Essa diferença se remete a uma hiância, um vazio entre a positividade, onde não adianta ser diferente de algo, mas sim de produzir diferenças, não impondo, o próprio ideal, seu próprio eu, resistindo a toda e qualquer significação. O analista como significante irredutível se volta mais para uma abolição da significação do que para uma significação ou causa primeira.

O analista deve fazer a diferença, não deve se colar, se aderir, a qualquer uma das series psíquicas que foi remetido pela transferência, não deixando de fazer semblante, mas fazendo com que o trabalho aconteça. Semblante este do objeto que falta, causa de desejo, a deslocar-se do lugar que é chamado a ocupar pelo analisando. A via se dá a conduzir o sujeito numa direção nova, aberta a diferença. Importante notar aqui que tal desejo de diferença não é mera ausência de desejo, pois não comporta uma neutralidade, a via está em acolher sem ceder às demandas do sujeito.  


O desejo de diferença incide sobre a significação. E o que permite desfazer sua fixidez remetendo a novas significações que, por sua vez, se desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas e causando o desejo.[45]


Figueiredo descreve que o psicanalisa que convém é aquele que convive, é aquele que faz o jogo difícil da política institucional, é aquele que faz da sua diferença uma especificidade, e não uma especialidade. Nesta diferença, o analista pode se subtrair não se retirando do campo de ação no trabalho em equipe, e caso não haja uma equipe, trabalha-se na solidão, campo conhecido e por vezes muito comum pela via institucional, mas não desejável no serviço público. Mas pode ser que aconteça uma certa atopia, uma área de sombra, espaço esse adequado e possível para o psicanalista no trabalho institucional. Por vezes o trabalho se dá sobre aquilo que resta das demandas, das modalidades outras e já utilizadas de tratamento, daquilo que ainda está sem resposta, a levar o sujeito o mais perto possível daquilo que considera satisfatório a fim de ratificar sua posição. Este é o lugar.


Resumindo numa fórmula: consiste na elaboração como trabalho analítico, pela via da repetição, que se dá na transferência como instalação do ‘sujeito suposto saber’ por onde incide a ação do analista sustentada pelo desejo de diferença. [46]


O objetivo do trabalho, e destas provocações aqui expostas, não é pela via de formar novas corporações, discursos categóricos e detentores da verdade, mas sim, sustentar esse desejo de diferença.

Na psicanalise, postula que a técnica deve dar lugar a uma posição ética, nisso que conceituamos como desejo do analista, o saber fazer. Esse desejo é aquele que marca a pura diferença, que se sustenta na transferência a partir do lugar de objeto perdido como causa do desejo. Assim esse lugar do analista, como falamos, não deve e nem pode ser o de um outro sujeito, mas o do objeto que falta, e que por isso lança o sujeito ao desejo, ou seja, deve-se reduzir ao mínimo a pessoa do analista, seu eu, não perdendo as possibilidades de intervenção. O analista é aquele que deve fazer o papel de semblante do objeto que falta, a causa do desejo, num processo de travessia da fantasia, de desidentificações. Por não ser este o objetivo específico deste trabalho não nos estenderemos aqui, mais ainda, às especificidades da clínica psicanalítica.

Laurent nos diz que os analistas têm de passar da posição de analista como especialistas da desidentificação imaginária, para a posição de analista cidadão:


Um analista cidadão no sentido que tem esse termo na teoria moderna da democracia. Os analistas precisam entender que há uma comunidade de interesses entre o discurso analítico e a democracia, mas entende-lo de verdade! Há que se passar do analista fechado em sua reserva, crítico, a um analista que participa; um analista sensível as forças de segregação; um analista capaz de entender qual foi  sua função e qual lhe corresponde agora.[47]


Assim, a primeira parte do trabalho do analista é silenciar qualquer identificação que permita o desencadeamento de paixões narcísicas, e depois remeter o grupo social em questão às suas verdadeiras tarefas. O analista, mais que um vazio, é aquele está para ajudar a civilização a respeitar as articulações possíveis entre as normas e as particularidades. Com os demais, este analista deve impedir que em nome de um universal se esqueçam das singularidades. Laurent nos lembra de que estas particularidades são constantemente esquecidas no exército, no partido político, na igreja, na sociedade analítica, na saúde mental e em diversos outros espaços humanos, e defende que não é por um humanitarismo que se deve tirar alguém de sua particularidade para misturá-lo num universal.

O analisa útil, para Laurent, seria aquele compatível com as novas formas de assistência em saúde mental, democráticas, mas não normativas e irredutíveis a uma causalidade ideal. O ponto comum entre os psiquiatras, os trabalhadores de saúde mental e os analistas é saber que a democracia, e os laços sociais são frágeis e simplesmente baseados em um manejo delicado das crenças de um grupo – ficções que se deve tratar. Vale estar atento que o desejo de curar, seja ele de que ordem for, desejo próprio de quem está no campo da saúde mental, tem sombras.

Garcia, ao nos falar de psicanálise, saúde pública e saúde mental nos defronta que estabelecendo um conteúdo para o conceito de saúde mental, este ficaria diretamente relacionado com uma ideia normativa. Lembra-nos de uma série de autores que procuraram estabelecer o conceito de saúde mental aos parâmetros dos conceitos de saúde física, pois:


Se a definição do conceito de saúde psíquica pretende incluir referencia a necessidades tidas como verdadeiras, temos que afirmar que em algum momento há equívoco, pois estaria sendo sugerido que em algum lugar existem esses verdadeiros objetos do nosso querer; bastaria descobri-los para conseguir o objetivo. [48]


E relata que a pergunta que diz respeito à verdadeira felicidade como critério para a saúde psíquica não depende de seu conteúdo, ou seja, não podemos isolar uma concepção psíquica como correta ou natural. Freud já fazia referencias a um dia no qual a psicanálise poderia se expandir tendo efeitos junto a toda a comunidade, ao social. Nesse seu, digamos, “projeto de saúde mental”, não abandonou a ideia de um fim do “mal-estar” na civilização, e anunciou algo da ordem de uma pedagogia política.

Enquanto a saúde pública vai enfatizar a epidemiologia, organizando movimentos de tratamento em massa, convocando a uma coletivização forçada e se voltando para um atendimento mecanizado ao público, a saúde coletiva estaria para o convite a uma participação. Desse modo pensando a relação médico paciente em termos de uma simetria possível, e acreditando que um aprende com o outro, a saúde coletiva se baseia no social e no processo de articulação das massas.

Tanto a saúde pública quanto a coletiva articulam-se com um modelo de ciência segregativa. Tal segregação se da na imposição única das causalidades físicas ou sociais, como mecanismos suficientes, a desconsiderar e consequentemente eliminar a questão do sujeito. A ênfase nesse pensamento vai desconsiderar o “sujeito” em si e tenderá para o “público alvo”.

A clínica da toxicomania nos traz exigências cruciais frente a quaisquer tratamentos possíveis, seja pela via da constituição da demanda, seja pelo manejo da transferência, e isso com destaque quanto a possibilidade do sujeito se abrir para novas posições subjetivas. O paradoxal da toxicomania é que esta nos exige o mínimo, forçando-nos a diminuir qualquer expectativa, qualquer desejo de “querer curar”, pois nos exige a busca da construção de um saber a partir das descobertas diárias.

Garcia propõe deste modo, o conceito de “saúde a ser inventada”, na qual há um sujeito que comparece a partir de sua singularidade, e não de leis gerais ou universais. O sujeito em questão não vem assim se resumir ao estatuto de um animal vivo, mas a uma subjetividade singular. Pensa que a saúde mental aqui é traçada com relação a uma comunidade, a algo que se articula ao nível coletivo.

Ao se pensar a construção do caso clínico em saúde mental, Viganò nos alerta que tendo-se eliminado o significante doença mental, no tratamento do usuário criou-se em contrapartida, um regime que vai se pautar na assistência social. Frente a isso nos alerta que é necessário reencontrar a dimensão da clínica, isto é, a dimensão do homem.

Relata que abandonar o saber do mestre em saúde mental é estar aberto para o debate democrático, o caminho possível para a construção do caso a fim de se produzir uma nova autoridade, um novo mandato, que chama de autoridade clínica. A construção de um caso por um grupo de trabalho tende a trazer a relação do sujeito com o seu Outro, a fim de construir também o diagnóstico do discurso e não apenas do sujeito. Quem nos alerta também é Freud ao afirmar que:


Qualquer analista que, talvez pela grandeza do seu coração e por sua vontade de ajudar, estende ao paciente tudo o que um ser humano pode esperar receber de outro, comete o mesmo erro econômico de que são culpadas as nossas instituições não-analíticas para pacientes nervosos. O único propósito destas é tornar tudo tão agradável quanto possível para o paciente, de modo a este poder sentir-se bem ali e alegrar-se de novamente ali refugiar-se das provações da vida. (...) Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo à nossa própria imagem e verificar que isso é bom. [49]




CONSIDERAÇÕES FINAIS


Não almejamos com este trabalho tirar conclusões sobre as éticas e os discursos de nosso campo, mas apenas algumas considerações mínimas, afinal, se cuidar de si mesmo já não é algo muito obvio, o que diremos então de cuidar dos outros?

Algumas questões surgiram ao longo desta pesquisa, outras se mantiveram firmemente: “O que de nós, sujeitos, está em jogo no exercício de nosso trabalho?”. “O que de nossa ética está xeque quanto a nosso próprio desejo, e nos situaria em relação ao desejo do outro?”, e “O que queremos?”.

Deparamo-nos que os variados discursos não tratam das mesmas questões e problemas, assim como lidamos com construções diferenciadas que não apresentam a mesma equivalência conceitual. Não há, de fato, um saber isolado ou total que dê conta da diversidade de fenômenos concernentes à nossa experiência humana, seja ela de que ordem for. Cada discurso esgota-se em suas possibilidades e em seus elementos conceituais, e a loucura, uma imposição sempre limítrofe, já é o paradoxo que faz frente a toda e qualquer ideia de sistematização que busque representar os fatos.

Analisamos alguns discursos no âmbito da assistência em saúde mental, suas articulações, encontros e desencontros advindos de uma prática feita em equipe, ou ao menos almejada. Sabemos que nossas éticas vão de encontro com um tipo de experiência de sofrimento, de um mal-estar, por vezes insuportável, que não está contida em nenhum vocabulário que dê conta dessa complexidade, pois é do sofrimento que todos nós tratamos, para além de nossas preferências, filiações teóricas, partidárias, ou estratégias de ação.

Os cuidados e a atenção que oferecemos na saúde mental não tem a pureza descrita dos modelos estabelecidos ao longo deste trabalho, e constatamos que nossa clínica não é de fato um corpo único multifacetado. Temos vários olhares, diversos tempos, desejos particulares, variadas clínicas, que por vezes se sobrepõem, e que se compõem, estabelecendo algumas alianças, ou silenciosos antagonismos. Como dissemos, nenhum campo de nossa cultura é total, completo ou livre de encontros ou contradições.

Parecenos que a clínica é uma questão de posicionamento, de um flexível e necessário posicionamento. A ética da tutela toma o sujeito como objeto, é instrumental; a ética da interlocução é a do sujeito como ser privado, ao passo que a ética da ação social, em sua ênfase ao público, vai definir o sujeito como político. Destes três tipos disponíveis basta escolher, não uma posição e segui-la dogmaticamente, mas escolher qual a melhor opção conforme a situação cotidiana e específica que se apresenta: esse é o ponto chave. Também não podemos enfatizar uma felicidade física, determinações neuroquímicas, particularidades estruturais, egóicas ou de classes sem pensar no que queremos com essas teorias e suas determinações.

Mostra-se significativo o predomínio de um discurso biomédico, da ética da tutela, assim como uma verticalização da assistência no cotidiano dos serviços, enfatizando por vezes algumas técnicas em detrimento de outras. Aqui o campo “psiquiátrico” e “psicológico” parecem ficar mais delimitados e explícitos. Há também, e igualmente operativo um discurso “social”, mas que não se define muito bem, onde o social abarca uma série de posições, por vezes disformes, por vezes definidas.

Para apreensão e construção das informações fizemos um levantamento bibliográfico e realizamos entrevistas semidiretas, cujos conteúdos foram gravados e posteriormente transcritos, garantindo o sigilo dos entrevistados, assim como a não exposição direta de suas respectivas áreas de formação. As entrevistas aconteceram nos últimos momentos de elaboração deste texto. Com o que se trabalha, com quais instrumentos e quais os objetivos? Questões simples, e necessárias, que por vezes desencadeiam surpresas, incômodos e reflexões profundas.

Nas falas dos entrevistados, componentes do Centro de Atenção Psicossocial, do Ambulatório de Saúde Mental e do Serviço Residencial Terapêutico, se destacaram o “transtorno mental” enquanto “doença” às vezes passível de “cura”, em outra, passível de “tratamento” e sua necessária e normativa “melhora”. Tal melhoria por hora referia-se à “saúde”, à “existência”, ou mesmo a uma “qualidade de vida”, expressão usada repetidas vezes pelos entrevistados, ou então um “bem-estar”.

O parâmetro de “norma” revela-se, naquilo que é da ordem de um “controle”, da “orientação”, de uma “inclusão” a gerar certa passividade, frente a uma possível “agressividade”, falta de razão, da preocupação com uma possível e evitada “internação”. Nessas falas, poucos parecem questionar o próprio papel de agente de cuidados, os resultados das próprias ações, suas consequências a médio e longo prazo. Tomam o trabalho como um mandamento de inclusão social, uma ordem discursiva dada, por vezes sem uma crítica de fundo, por hora sem desnaturar o próprio olhar ou as questões concernentes ao normal e ao patológico.

Por raras vezes vieram a toma os limites do campo, as imbricações públicas e políticas que não são desvencilhadas de nossas práticas, assim como os problemas institucionais e de formação de equipe. Interessante notar que após se desligar o gravador, elemento constrangedor para alguns, específicas falas correram mais descompromissadas, mais livres, imediatas, e por isso mais verdadeiras.

A “fala” e a “escuta”, tal qual o “social”, se destacam, ao mesmo que não se sabe bem o que fazer com isso, clínica ou operacionalmente. Há a busca dos “direitos”, assim como dos “deveres”, de um “equilíbrio”, de uma “dignidade”, do elemento “humano”, do lugar da “pessoa”, em detrimento ao transtorno ou a doença em jogo nas relações, assim como se revela o fim do “preconceito” e dos estigmas. “Paciência”, “calma”, “carinho”, “felicidade”, e “muito amor” também estão na ordem do discurso.

Contrabalanceando as falas e os discursos surgidos na equipe, entrevistamos também os pacientes sobre o Programa de Saúde Mental, quanto a esta assistência e os cuidados que eles recebem. O conjunto das respostas são pontuais.

Quanto a um grupo diário de fala, o “Grupo de Bom Dia”, disseram que este serve para “ajudar”, para “avaliar”, “vigiar”, “fazer com que os pacientes tenham algum compromisso”, para “ver o comportamento e ajudar nos problemas mentais”, assim como funcionaria para “acabar com a preocupação dos pacientes”, para “saber se estão tomando os remédios”, para “saber como a família trata”, para “se fazer uma avaliação geral”, ou então “para mandar para o médico”, para “se apresentar”, ou mesmo “para falar para os outros”, para “escrever nos prontuários”, e curiosamente “para criar juízo”.

Nas Oficinas, entendem que estas servem “para desenvolver a mente”, “para distrair e não inventar moda”, “para aprender ou ajudar a ter uma profissão”, “para desenvolver e acionar a memória, e para não esquecer as coisas”. Numa das oficinas que tem como ênfase o trabalho de corpo destacam que esta serve “para emagrecer”, para “melhorar as juntas e espichar”, para “agitar o sangue, para a saúde e respiração”, “para agonizar”, assim como para a “dor na coluna e nos músculos”, “para melhorar a postura, tirando a dor dos nervos”. Numa oficina específica de expressão escrita marcam a importância de “saber das notícias”, assim como a possibilidade de “expor a opinião”, ou mesmo para “ganhar um dinheiro”, além de “mostrar que não somos tão doidos como eles pensam”, “para provar para a sociedade que somos capazes”.

Para além da psicose e de seus rearranjos institucionais, para além da querela psiquiátrica, e de sua hegemonia discursiva, temos desafios em voga, a saber: as questões referentes às toxicomanias, as estratégias de ação quanto ao uso abusivo de álcool e outras drogas, cuidados com a infância e adolescência, e as falhas na assistência aos idosos.  Fundamentais ainda são as articulações intersetoriais, necessárias, e precárias, na maior parte das vezes, ao campo da saúde mental. O laço social nos exige isso.

Deve-se estar atento para aquilo que está para além das falas, deve-se estar precavido para os pontos que não se deixam ver, àquilo que não se é dito no cotidiano, mas que tem consequências a partir dos silêncios. O ato de cuidar nos exige estar implicados não por um exercício de um saber-poder, mas de estar destituídos de qualquer ordem de uma identificação, mera domesticação, adaptação, ou mesmo preceitos e classificações institucionais.

O objetivo do presente trabalho não foi analisar, questionar, ou mesmo provocar os discursos, as práticas e as éticas em saúde mental. Este é um duro trabalho que não cabe num texto, mas que é fundamental que se imponha em nosso trabalho cotidiano, desde nossas imediatas decisões até nossos pequenos gestos, até nossos simples atos.

O que você tem a ver com isso? O que você quer?


Entrevista nº 01


“Trabalho com pessoas e me volto para o social, para o objetivo da reforma psiquiátrica, de fazer com o doente mental, até onde isso é possível, o resgate da cidadania, fazê-lo cidadão com diretos e deveres, de inseri-lo na sociedade o mais que eu possa, mesmo com as barreiras, impedimentos e dificuldades sociais e profissionais. Procuro dar o maior espaço possível para estas pessoas viverem com dignidade. Combato o assistencialismo que vê o indivíduo como um pobre coitado, que se coloca sempre numa posição superior e que julga que é capaz de oferecer o melhor, de ditar os caminhos que são melhores para ele e de definir as opções. (...) Minha ferramenta de trabalho é a minha relação com as pessoas, a relação interpessoal com o paciente, mas também com as pessoas na comunidade e as outras instituições. (...) Pretendo ajudar no processo de desinstitucionalização do paciente, o que está muito longe de acontecer. Conseguimos desospitalizar, mas desinstitucionalizar estamos muito longe de conseguir, precisamos de desinstitucionalizar até mesmo dentro dos CAPS e de outras instituições de saúde mental, fazer com que o paciente seja visto e aceito como uma pessoa capaz de contribuir para a sociedade. (...) Trabalhar em equipe em alguns momentos me desespera, em outros me encanta, e me dá vontade de continuar trabalhando, é o encanto das múltiplas diversidades, que me enriquecem, mas que, em alguns momentos me trazem enormes dificuldades devido a olhares arraigados por conceitos antigos e preconceituosos, e que incorrem nos mesmos erros, e isso é desesperador. (...) Os maiores desafios se dão na luta dos hospitais psiquiátricos, no desafio de se criar leitos nos hospitais gerais e a questão de álcool e drogas e nesta grande a divisão de opiniões.”



Entrevista nº 02



“Trabalho lidando com os pensamentos, com os comportamentos e sentimentos, visando à qualidade de vida deles (...) Testes nós não usamos aqui, e seria às vezes importante até para mediar aquilo que não temos acesso. O discurso e as técnicas terapêuticas da cognitivo comportamental são as minhas ferramentas. (...) Sabendo que as pessoas sofrem, o objetivo é fazer algo por elas, proporcionando uma melhor qualidade de vida, melhorando cada um, mas não um ideal para todos, e sim intervindo naquele caso para que a pessoa viva e se sinta melhor. (...) Sinto-me às vezes de mãos atadas, por não poder fazer um pouco a mais, isso até pelas pessoas se colocaram numa posição de não quererem mais ajuda. (...) Acho que seria melhor que os profissionais pudessem falar mais, todos os olhares e vejo que há um poder restrito pelo medicamento e pela coisa psicológica. Seria importante haver um debate a altura de todos os saberes e olhares, o que não acontece.”


Entrevista nº 03



“Acho importante que eles tenham um contato e um saber do corpo, e que sejam incluídos num trabalho, já que lá fora eles não teriam essa inclusão. (...) Fico a disposição da minha coordenada também, o que ela pede para fazer, se estiver ao meu alcance eu faço para ajudar a eles também. (...) Tudo mundo pretende a inclusão deles na sociedade, para mim, explicar para eles a importância da minha área, em si, é muito bom e satisfatório. Quando eles vêm para mim e recebo uma resposta deles e dizem ‘estou melhor, estou melhorando’ isso já é uma resposta boa para mim. Quero o melhor para eles como todo mundo quer, pensando o bem estar, eles bem com eles mesmos.”



Entrevista nº 04



“Exigem da gente dar conta de todos os portadores de sofrimento psíquico do território só que isso é praticamente impossível, impossível também é conciliar essa postura muita das vezes respeitosa do desejo do outro e aquela coisa mais autoritária que gera uma briga terrível. (...) Na medida do possível o trabalho é escutar o sofrimento do outro e acolher. (...) Trabalhar num grupo é mexer com questões pungentes: ser preterido, ser mandão e outras características que se não forem bem trabalhadas acabam comprometendo a capacidade da equipe de tratar ou de trabalhar bem os pacientes, clientes, usuários, ou seja lá qual for o nome que se dê. (...) Meu comprometimento no trabalho é uma ferramenta, minha trajetória teórica, minha trajetória pessoal em termos de ser paciente me ajudam muito. Não sou psicanalista, mas tenho um olhar tendendo para a psicanálise, mas acho muito difícil trabalhar com psicanálise no serviço público, até porque essa é uma questão que vai pela via institucional, seja pela transferência, por uma triangulação institucional, o que é difícil. Trocar com os colegas de trabalho e com os pacientes é um instrumento instigante. (...) Busco reconhecimento profissional, contribuir para melhorar a qualidade de vida de algumas pessoas, fazendo-as se sentirem mais felizes e mais plenas; questionar algumas coisas, até porque a minha personalidade é muito questionadora. (...) Há uma questão que as pessoas não entendem, pois as coisas são muito ligadas a supressão dos sintomas e a gente não trabalha assim, essa é outra dificuldade, pois a maioria trabalha assim e por isso a gente se sente nadando contra a maré (...) mas vejo alguns pacientes tendo uma vida melhor, mais tranquila, lidando melhor com a medicação e podendo usufruir de outras coisas fora do CAPS, esses são indicadores objetivos de uma qualidade de vida. A dificuldade é atingir uma boa quantidade de pacientes, é saber equilibrar a demanda grande podendo acolher dentro dos limites para não comprometer a qualidade do trabalho.”


Entrevista nº 05



“Fazer um acompanhamento em cima do comportamento do paciente, um acompanhamento que na maior parte das vezes é variado: pacientes com deficiência mental, o esquizofrênico, o enganador, pessoas que apresentam problemas graves, mas que não querem ser abordadas ou tratadas, nisso acho que a gente não pode tomar nenhuma atitude porque fica muito difícil. (...) Acho que aqui está tudo certinho: o psicólogo faz o serviço e desenvolve, o assistente social acolhe, o enfermeiro faz o cuidado de enfermagem e por aí vai (...) Em minhas ferramentas estão o focar a patologia do paciente no dia a dia, o quadro de saúde e os problemas que vem de casa. (...) Em meu objetivo está o reconhecimento como profissional da área junto com o cuidar, dar atenção. No mais é isso.”


Entrevista nº 06



“Trabalho com o comportamento, as emoções, a queixa dos outros, relacionadas ao desequilíbrio emocional. (...) Minhas estratégias estão dentro da minha linha, o pensamento que vai modificar o comportamento e a ação daquela pessoa. (...) No meu objetivo pretendo causar o alívio do sintoma, já que a cura é algo que não é alcançada, pretendo a mudança do comportamento, e o objetivo é o equilíbrio”.



Entrevista nº 07



“O objeto principal é justamente o doente mental, onde temos que ter uma visão de amplitude com relação a ele, não o tratando como um paciente em si, mas como alguém em sua profundidade. Como pessoa, como cidadão, fazendo com que ele se sinta gente, e não apenas como objeto de pesquisa, ou de medicações, como acontecia na filosofia anterior onde ele era confinado e tratado como objeto. O principal objeto é a dimensão humana que a gente tem que materializar em cada atendimento, em cada paciente. (...) Além da psicofarmacologia, da abordagem médico-científica vejo também outra ferramenta de trabalho que é a aplicabilidade do sentido humanista da pratica psiquiátrica. Minha ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão orgânica, psíquica e anímica do paciente olhando o ser humano como um todo (...) Como adepto profundo da reforma psiquiátrica temos que analisar o ideal e o real. Dentro do ideal alcançaríamos situações do contexto social, no plano real uma maior dignidade humana, um respeito e uma cumplicidade maior, respeitando dentro de uma ética da cidadania. Busco um aprimoramento, uma melhoria no que tange a estrutura alterada, a bioquímica levando a um exercício da afetividade, esse que é um alimento importante, uma dignidade maior (...) cumprindo aquilo que chamamos de evolução, cabe a cada ser humano desenvolver sempre um senso crítico para criar um aprimoramento sempre maior, e temos de usar essa evolução junto à ciência, com um compromisso, no sentido humanista, ampliando a visão da existência e da espiritualidade do ser como um todo.”


Entrevista nº 08



“Dar uma melhor qualidade de vida para o paciente; orientá-lo para que ele possa se sentir melhor diante do quadro que ele apresenta. Que eles possam lidar com aquilo de uma forma mais saudável fazendo com que a medicação não os prejudique tanto, pois é uma preocupação dos pacientes os efeitos colaterais desses medicamentos, até porque eles ficam totalmente dependentes da medicação. Se há um alívio para a dor há um sofrimento pela dependência, e percebo que a medicação sendo um mal necessário, ela causa outro tipo de incômodo. Penso numa qualidade de vida, viver de uma forma mais digna, que eles possam exercer as atividades do dia a dia como nós, com a família, com a sociedade. (...) Uso a reflexão, o paciente, sua história, o que ele traz, não dirigindo o comportamento, até porque cada um é cada um, e o que é melhor para um não é o melhor para o outro. (...) Meu objetivo é proporcionar ao indivíduo uma reflexão frente à problemática que ela está vivenciando, que ele possa se autodirigir, que ele possa ser capaz de encontrar aquilo que todos nós buscamos, uma plenitude. Uma felicidade que todos nos almejamos, o desejo, que até pode ser inconsciente, isso é muito questionável, mas entendo que se ele está me buscando, é porque ele tem o desejo de uma melhora, não de permanecer em uma doença se alimentando dela. Meu objetivo é que ele possa reverter esse quadro (...) O desafio é igual a matar um leão a cada dia, a saúde mental é um laboratório, os problemas maiores estão no SUS, no CAPS, é o que enriquece na parte clínica, é o grande desafio, a caixinha de surpresas, é um novo olhar a cada dia para chegar a essa qualidade de vida.”



Entrevista nº 09



“Trabalho com pessoas portadoras de um transtorno mental (...) Meus instrumentos de trabalho são as atividades, e o olhar atento para as devidas intervenções. (...) Busco a melhora do paciente a partir do resultado da minha intervenção, somado a medicação e a inserção social. O objetivo não é leva-lo para a internação, mas inserir ele na sociedade, tendo um convívio normal. Busco acabar com esse preconceito que existe em torno das pessoas portadoras de transtorno mental, que não acabou nada, que continua muito, que continuam chamando de ‘louco’, de ‘maluco’. (...) Meu objetivo é essa inserção social de fazê-los participar da sociedade como pessoas normais como nós. Aliás, às vezes acho eles muito mais normais do que nós.”


Entrevista nº 10



“Trabalho com uma diversidade de pessoas, que tem sentimentos, que tem sua personalidade. (...) Trabalho com muita calma, paciência, com a fala do paciente e com a minha escuta, seja num grupo, seja numa oficina. Às vezes me sinto impotente com o pensamento de outros profissionais, eu já vejo um lado mais humano. É através da minha sensibilidade eu chego até a eles, eu me coloco às vezes no lugar deles. Alguns profissionais não são assim, se levam mais pelo lado da razão. Às vezes o paciente quer um pouco de atenção, uma palavra mais suave. (...) Quando entrei aqui no CAPS eu não tinha função alguma, e daí me perguntava ‘o que é que eu estou fazendo aqui?’, ‘qual minha utilidade?’, e hoje eu vejo que eu tenho muita utilidade não só na minha área específica, mas também de ouvir um pouco e tentar melhorar aquela pessoa com a minha escuta, onde a pessoa sai mais equilibrada, mais centrada. Não sei se para os colegas, mas para os pacientes eu tenho um valor. (...) Para você ser professor você também tem que ter um controle, você tem que prender, ensinar, isso para transmitir aquilo que você sabe, e na área de saúde mental a minha facilidade vem desse controle, pois quando coloco 25 pessoas no grupo, eu tenho esse controle sobre eles, com o grupo. Uso muito a questão didática, a postura de como conduzir. Aos poucos, vivenciando a gente vai aprendendo, pois lidar com a questão da mente é difícil. Na verdade a gente pensa que sabe, mas não sabe, a gente está lidando com uma coisa que a gente desconhece. Tudo que eu faço para eles eu tento fazer o melhor, se eu estou aqui é por causa deles, e acho que eles merecem o melhor, porque lá fora eles já não têm.”






Entrevista nº 11



“Trabalhamos com pessoas com problemas mentais e eles têm melhorado, temos visto a melhora de alguns, quando eles frequentam o CAPS ou o Ambulatório. A gente vê a diferença, quando eles tomam esse medicamento vemos que eles estão melhor. (...) As ferramentas no trabalho são as oficinas que alguns gostam, um passeio, os grupos, onde cada um vai expor seu problema. (...) Buscamos alcançar a melhora dos pacientes, ver eles bem, não agressivos, ver que estão se dando bem com todo mundo, conversando bem, agindo direitinho, aí vejo que eles estão melhores, sem internação.”


Entrevista nº 12



“Trabalhamos em favor de pessoas que precisam da gente, de carinho, de atenção, que estão revoltadas, e que depois de um carinho elas melhoram. (...) Eu uso muita paciência e muito amor (...) Desejo a melhoria da população, das pessoas que nos procuram, do nosso município, isso para não ver ninguém na rua pedindo, meio perdido ou por aí. Acho que tem que ter uma pessoa direto aqui no CAPS, 24h, uma pessoa para plantar vida nisso, deixar mais bonito e melhor ainda.”


Entrevista nº 13



“A gente trabalha com o pessoal de saúde mental, de quem tem problema mental, que não tem uma noção das coisas, que não sabem as coisas que falam, não sabem o que fazem, não tem uma higiene. As coisas que eles fazem não são coisas de pessoas normais, bem poucos daqui são normais, eu vejo assim. (...) Acho que a gente tem que ter paciência, muita calma, muito amor, porque sem amor a gente não vai a lugar nenhum, tem que lidar com prazer, gostando deles para lidar no dia a dia, porque sem amor não se faz nada, isso é o principal e o mais importante. (...) Quero que eles melhorem, fiquem bons do problema mental, que se curem e sejam normais como nós somos e sempre vejo um esforço muito grande. Até a gente mesmo não é muito normal, temos um desequilibriozinho, todos nós temos, um é de uma coisa e outro é de outra. Até que eles não são tão diferentes da gente assim não, eles nem são agressivos! Só vindo para cá que a gente vê, eles são tipo crianças e fazem as coisas quando estão bem, e quando não estão bem não fazem.”


Entrevista nº 14



“Se trabalha com transtornos mentais, psicológicos, psiquiátricos. (...) Os instrumentos são a equipe de trabalho, as oficinas, o psiquiatra e o psicólogo, principalmente o psiquiatra, que todo mundo corre nele, devido a medicação. O psicólogo é que aguenta uma coisa brava e serve para se ter um convívio com os pacientes, já que o psiquiatra não tem, os psicólogos conversam mais. Os pacientes são mais chegados com os psicólogos do que com os psiquiatras, já que são de três em três meses numa consulta. (...) O objetivo com os pacientes graves é evitar levar para a clínica psiquiátrica, fazer a luta anti-manicomial, para não internar, como era antigamente.”


Entrevista nº 15



“Nós trabalhamos com o problema mental que tem que ser cuidado. (...) Eu sempre busco ter muita atenção, muito carinho e busco entender eles, não deixando muito a vontade, mas sabendo lidar com eles. Chamar a atenção quando tem que chamar, para que eles aprendam, pois deixar a vontade não pode deixar. (...) O objetivo é curar, fazer com que eles fiquem bons, ficar como a gente, e cada dia menos atacado. Corrigindo quem está errado, Pois não adianta ficar passando a mão na cabeça, cuidar, observar é o que faço.”



Entrevista nº 16


“A gente trabalha com as pessoas que tem problema mental, com as pessoas que são agressivas, que de repente não estão bem e falam coisas sem sentido, que tiram a roupa. Tomando remédio direitinho até dá a crise, mas não precisa de internação. (...) Os instrumentos são conversa e remédio. Precisam muito de diálogo, muito carinho. Gosto de conversar com os pacientes, pois eu acho que estou ajudando. (...) O objetivo é melhorar, e acho que há possibilidade de melhorar, o objetivo é evitar as internações, e fazer a sociedade e a família aceitar a doença e o que é que se passa com o paciente.”


Entrevista nº 17


“Trabalho com os portadores de transtorno mental e com os familiares para minimizar o sofrimento que a doença traz para eles. Eu tento inclui-los, tento coloca-los de maneira que eles tenham autonomia e corram atrás daquilo que é direito deles, porque eles são cidadãos como todos os outros, para que eles não sejam discriminados, porque a sociedade discrimina muito, mostro a eles o que eles são, o potencial deles e o que eles devem buscar. E trabalho com a família para aliviar a sobrecarga que o transtorno mental trás. (...) Trabalho com grupo, visitas domiciliares, ida a hospitais para fazer as visitas, informações do INSS, o BPC e dentro da medida do possível, o que eles pedem eu tento esclarecer. (...) Quero trabalhar de maneira que os pacientes tenham autonomia e saibam buscar os próprios direitos. Quero que eles saiam daquele lugarzinho de coitadinhos, que até então era o do doente mental lá dentro do manicômio. Faço com que eles se vejam cidadãos, com direitos e deveres, que são parte do contexto familiar e social, e dentro da medida do possível eles tem que se doar, ajudar de uma maneira ou de outra, para que eles se sintam valorizados e que a família tenha um olhar diferente e não de ‘o coitadinho’. (...) No tratamento tem que haver uma união da família, do paciente, do profissional e do serviço. Tem que haver um elo entre todos para que haja uma sintonia.”


Entrevista nº 18


“Trabalho com o ser humano, procuro fazer sempre o melhor, observar, e acho que todos nós temos um pouquinho de desequilíbrio. Antes de ser paciente é o ser humano em primeiro lugar. (...) Tem que ter muita perspicácia para perceber, eu analiso o paciente, às vezes fico parada observando. Trabalho com remédio, e até dou opinião no serviço dos outros. (...) No meu objetivo eu quero ter o reconhecimento dos pacientes, eu tendo isso está ótimo, o paciente me achando legal, me achando responsável, suficiente, está bom. Quando eu recebo o agradecimento do paciente, o reconhecimento, mais do que dos colegas, eu já alcancei meu objetivo.”


Entrevista nº 19


“O trabalho é feito para o paciente, a situação que ele está envolvido, o transtorno que ele têm, o momento que ele está e tudo aquilo que envolve ele. (...) Os instrumentos são os atendimentos e as abordagens tanto da equipe de nível superior quanto da equipe de apoio. Acho que a gente tem que conhecer o momento do paciente: se há um paciente histérico a gente trata ele de um modo diferente de um paciente que está em surto, depende do quadro do paciente. (...) O objetivo é tratar ele da melhor forma possível, para que ele possa sair da crise, é um grande sofrimento. O importante é o modo como a gente se relaciona com o paciente.”



Entrevista nº 20


“Se trabalha com pessoas que possuem problemas mentais, com pessoas que tem dificuldades de aprendizagem, com alguma deficiência. (...) O objetivo no tratamento é o melhor para os pacientes, o bem estar deles, às vezes nem em casa eles tem o tratamento que eles têm aqui: vem de casa de uma maneira, às vezes sujo e sai daqui alimentado. Eu achava que as pessoas vinham aqui, ficavam aqui e se observava o comportamento das pessoas e medicava depois. Não imaginava a preocupação que se tem com a Residência Terapêutica, com o Ambulatório e achava que era só deficiente mental, mas também tratamos problemas de álcool e drogas, e isso é muita coisa.”


Entrevista nº 21


“Trabalho diretamente com os pacientes. (...) Tenho essa ligação direta na conversa, em arrumar a medicação, dar o medicamento, muita das vezes orientando, no banho, na higiene, muitas das vezes ouvindo. (...) Quero alcançar mais conhecimento, quero aprender, além de querer passar para eles segurança e confiança.”


Entrevista nº 22


“Meu trabalho está para atender as necessidades de cada paciente, para que eles possam ter uma boa qualidade de vida (...) Minhas ferramentas de manejo na saúde mental são o carinho, o bom humor e a paciência. (...) Meu objetivo é o meu crescimento profissional, pois percebi que cada dia me fascina essa área, que gosto cada vez mais”.




Entrevista nº 23


“Trabalhamos com as pessoas tentando aproximá-las do nosso mundo, buscando transportá-las para nosso dia a dia, melhorando sua qualidade de vida. (...) Vejo que nosso principal instrumento é a nossa qualidade mental de entender e de fazer esse processo de transformação, trabalhar com eles, de conversar, dos cuidados. (...) Dentre meus objetivos está o meu prazer de que eles estejam bem, amparados, com suporte, protegidos contra a sociedade, contra as doenças, acidentes, o dia a dia. Acho muito difícil o preconceito, até de outros profissionais de saúde, até mesmo os médicos clínicos, frente a uma urgência, a uma situação mais difícil. O paciente psiquiátrico parece que incomoda as pessoas, o incômodo às vezes vem das vestes, dos gestos, do corte do cabelo, das roupas, o cigarro, do jeito dele. Na Residência Terapêutica quero que eles sintam que lá é a casa deles e respeito às particularidades e as vontades de cada um.”

BIBLIOGRAFIA



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[1] BEZERRA JÚNIOR, Benilton. “A Diversidade do Campo Psiquiátrico: pluralidade ou fragmentação”. Em; Práticas ampliadas em saúde mental: desafios e construções do cotidiano: Cadernos do IPUB, vol. XIV, 1999 p. 139.


[2] Idem, p. 143.


[3] CAVALCANTI, Maria Tavares. “Ética e Assistência em Saúde Mental”. Em FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 78.


[4] BURKE, Peter. “Como cresceu a ideia de cuidado”. Café Filosófico – CPFL Cultura. Acesso em http://www.cpflcultura.com.br/2010/09/28/como-cresceu-a-ideia-de-cuidado-%e2%80%93-peter-burke-2/ em maio de 2012.


[5] Entrevista nº 13. Todas as entrevistas aqui citadas estão na íntegra no anexo II deste trabalho, e são de profissionais que compõem o Programa de Saúde Mental, utilizado como campo nesta pesquisa.


[6] Entrevistas nº 12 e 13.


[7] OLIVEIRA, Raquel Corrêa. “A chegada de crianças e adolescentes para tratamento na rede pública de saúde mental”. Em Saúde Pública e Saúde Mental: Questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica. Orgs. COUTO, Maria Cristina Ventura e MARTINEZ, Renata Gomes. NUPPSAM/IPUB/UFRJ. 2007. Pág. 40.


[8] PITTA, Ana Maria Fernandes. “Ética e Assistência em Psiquiatria”. Em FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 103.


[9]   Entrevista nº 17.


[10] Entrevistas nº 11 e nº 15.


[11] LEAL, Erotildes Maria. “Clínica e subjetividade contemporânea: questão de autonomia na Reforma Psiquiátrica Brasileira”. Trabalho apresentado no II Encontro dos Serviços de Atenção Diária do Rio de Janeiro. 2000. Pág. 77.


[12] SILVA, Martinho Braga Batista e. “Atenção Psicossocial e Gestão de Populações: Sobre os Discursos e as Práticas em Torno da Responsabilidade no Campo da Saúde Mental”. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 15(1):127-150, 2005. Pag. 130.


[13] Entrevista nº 06.


[14] SOARES, Luiz Eduardo. “Ética e Sociedade”. Em FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 51.


[15] Entrevista nº 07.


[16] COSTA, Jurandir Freire, “As Éticas da Psiquiatria” em: FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 27.


[17] Idem, p. 30


[18] Idem, p. 31


[19] Idem, p. 32


[20] Entrevista nº 01.


[21] Entrevistas nº 16 e 21.


[22] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos - A clínica psicanalítica no ambulatório público”. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. Pág. 15.


[23] Idem, p. 57.


[24] Entrevista nº 01.


[25] Idem, p. 61.


[26] Entrevista nº 07.


[27] Entrevista nº 14.


[28] Entrevista nº 08.


[29] Entrevista nº 01.


[30] Entrevista nº 05.


[31] Entrevista nº 04.


[32] Idem, p. 95.


[33] Entrevista nº 10.


[34] FURTADO, Juarez Pereira e CAMPOS, Rosana Onocko. “A transposição das políticas de saúde mental no Brasil para a prática nos novos serviços” Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental., VIII, 1, ano VIII, n. 1, mar/2005. Pág 116.


[35] LIMA, Rossano Cabral. “A cerebralização do autismo: notas preliminares”. Em Saúde Pública e Saúde Mental: Questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica. Orgs. COUTO, Maria Cristina Ventura e MARTINEZ, Renata Gomes. NUPPSAM/IPUB/UFRJ. 2007. Pág. 63.


[36] Entrevista nº 04


[37] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à Saúde Mental”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VIII, n. 1, p. 75-86, março, 2004. Pág. 79.


[38] Entrevista nº 36.


[39] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “A construção do caso clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à Saúde Mental”. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VIII, n. 1, p. 75-86, março, 2004. Pág. 81.


[40] Entrevista nº 10.


[41] MILLER, Jacques-Alain. “Saúde Mental e Ordem Pública”. Curinga. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise/MG. (13): 20-31, set. 1999.


[42] MACHADO, Ondina. “Paradoxos da saúde mental”. Opção lacaniana online. www.opcaolacaniana.com.br - Ano 2 - Número 4 - Março 2011. Pag.05.


[43] BORSOI, Paula. “O objeto na saúde mental: a utilidade pública da psicanálise ou o uso possível do psicanalista”. Latusa Digital – ano 5 – N° 33 – junho de 2008.


[44] LACAN, Jacques. “O Seminário - Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise”. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1979. Pág. 248.


[45] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos - A clínica psicanalítica no ambulatório público”. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. Pág. 167.


[46]  Idem, p. 173.


[47] LAURENT, Eric. “A cidade analítica: o analista cidadão”. Curinga. nº. 13. Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 1999. Pág. 08.


[48] GARCIA, Célio. “Saber e ciência: psicanálise, saúde pública e saúde mental”. In: Cadernos IPUB, Rio de Janeiro, n. 21, abr. 2002. Pág. 70.

[49] FREUD, Sigmund. 1919. “Linhas de Progresso da Terapia Psicanalítica”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XVII, Ed. Imago, 1996. Pág. 171.
» Trabalho apresentado no Seminário “Panorama Atual da Atenção Psicossocial nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo - Atenção Psicossocial, Gestão e Pesquisa”, realizado no Instituto Philippe Pinel, pelo Instituto de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2012.