Allan de Aguiar
Almeida
RESUMO
Qual o objeto do seu trabalho da saúde mental, com o
que você trabalha? Quais são suas ferramentas de manejo nesse trabalho? Qual a
finalidade do seu trabalho, o que deseja alcançar? O trabalho a seguir busca
investigar junto à equipe de um programa de saúde mental essas e outras
questões concernentes às éticas, os discursos e as práticas que sustentam o
atual campo da saúde mental. Nosso objetivo se pauta em questionar, num
provocar e numa posterior reflexão de um dos principais recursos que dispomos –
nós mesmos. Qual seu desejo? O que quer?
“(…) pois, se é preciso fazer
as coisas pelo bem, na prática
deve-se deveras sempre perguntar pelo bem de
quem”.
Jacques Lacan, em ‘A ética da psicanálise’.
INTRODUÇÃO
O remodelamento da atenção em saúde mental no
Brasil, oriundo com o Movimento da Reforma Psiquiátrica oferece continuamente novos
modelos institucionais a partir de novos discursos e éticas quanto ao cuidado. A
partir dessa ruptura com os modelos até então vigentes, uma profunda alteração
da resposta social à loucura e aos sofrimentos psíquicos, provocam mudanças de
ordem política, ideológica, ética e das concepções de clínica e reabilitação.
Pensar e prestar
uma “Atenção Psicossocial” é sustentar uma proposta de se haver com uma rede de
cuidados com orientações diversas que por vezes se conflitam – é se deparar com
questões que se renovam e se apresentam em vários campos de saber. Como
promover a cidadania de todos, ao mesmo que oferecer uma clínica de cuidados
singularizada?
Ana Cristina Figueiredo ao tratar da “ética do
cuidar” diz que uma ética enquanto princípio é prescritiva e indica o que deve ser feito, como deve ser
feito, assim como aquilo que está para se fazer. Deste modo, a ética é o que
conduz nossos atos, nossas ações frente ao trabalho, e esta ética pode estar
referenciada a um plano teórico, uma posição, uma crença, ou seja, a um bem. Mas
tal “bem” é relativo e correlaciona-se diretamente ao significado que se dá a
este cuidar, que deriva na ação enquanto um fechamento num tipo de ideal. E
assim pergunta: “O que de nós, sujeitos,
está em jogo no exercício de nosso trabalho?”. Nossa ética põe em cheque
nosso próprio desejo, e nos situa em relação ao desejo do outro. Sendo assim
seria a ética a justa medida entre o desejo e a ação, como definiu Jacques
Lacan?
Examina-se, diagnostica-se e medica-se. E ponto
final. Extinguir o sintoma inicialmente para agir sobre a doença no a
posteriori, eis a meta, e aqui estritamente pelo olhar da medicina cuidar
parece ser diferente de tratar. Mas, cuidar, por vezes seria sinônimo de tratar
frente uma escuta psicológica? Frente ao fazer trabalhar, ao produzir uma
autonomia pela via da terapia ocupacional? Seria tratar, os cuidados
específicos da enfermagem ou as contextualizações político-culturais de
convívio, elencadas pelo serviço social? Ou cuidar estaria para a imbricação
dessas práticas correlacionadas a diversas outras áreas?
Percebemos em nossa prática cotidiana que o campo
da saúde mental, por vezes, ou na maior parte das vezes, se apresenta como uma
nação de várias línguas onde os sujeitos se entendem, em outras, não se
entendem, organizando os próprios discursos e práticas, compondo campos de
conhecimentos que disputam espaços, ocasionando diferentes leituras e técnicas.
Por vezes, alguns discursos imperam, negando tal pluralidade e afirmando seus
estatutos de verdade.
Cria-se assim uma disputa pela via da produção, da
reafirmação de saber e da aplicabilidade nas atividades práticas entre os
representantes de cada grupo, cada qual reivindicando maior supremacia e feitos
em seus trabalhos. Tais campos tratam das mesmas questões e problemas? Como discursos
com construções diferenciadas apresentam mesma equivalência conceitual?
Seria possível construir um racionalismo
universalizante fundamentado em técnicas válidas e aplicáveis em quaisquer que
sejam os campos da experiência humana? Tal concepção idealista da busca da
verdade remete-nos ao século XIX e nos é tida hoje como ingênua. Não há um
saber isolado ou total que dê conta da diversidade de fenômenos concernentes à
experiência humana. Cada discurso esgota-se em suas possibilidades e em seus
elementos conceituais.
A loucura pode ser apreendida por diferentes
olhares, tempos e espaços, e todos os modelos teóricos não conseguem bem
representa-la, deixando sempre indicada uma fenda, um ponto obscuro,
ininteligível, e que escapa a qualquer representação possível. A loucura é o
paradoxo que faz frente a toda e qualquer ideia de sistematização que busque
representar os fatos. Mas ainda parece que cada discurso acredita atingir tal
saber através de novas descobertas e construções de novos sistemas e aplicabilidade.
Não possuímos uma fala linear em nenhum dos campos
do saber, o que não seria diferente na saúde mental. Nosso saber não abarca
toda a complexidade do nosso trabalho, principalmente quando não falamos a
mesma língua, o que nos leva simplesmente a escolher a abordagem e os
instrumentos que melhor julgamos, e com isso, de preferência, apoderamos de um
justo compromisso ético.
Quanto a um trabalho que se proponha ético, um
norte seria os efeitos de nossas ações e a não sustentação de ideais. Levando-se
em consideração que há uma brecha entre o preceito e a ação, cuidar se mostra
como uma ética das mais variáveis definições e significados inconstantes, que
só podem ser medidos nos seus feitos e consequências cotidianas. E assim
perguntamo-nos quais os princípios éticos que norteiam a assistência em saúde
mental. Há propriamente uma circulação de saberes?
Com este trabalho
nosso objetivo é investigar junto aos profissionais que compõem a equipe do
Programa de Saúde Mental do Município de Santo Antônio de Pádua, que é composto
por um Centro de Atenção Psicossocial, um Ambulatório de Saúde Mental e um
Serviço Residencial Terapêutico, quais seriam os objetos, as ferramentas e os
objetivos à visar uma saúde mental? Com o que trabalhariam, quais os
instrumentos frente a este trabalho, e o que pretenderiam alcançar?
Faremos um estudo
bibliográfico das éticas e dos discursos em saúde mental, e posteriormente uma
análise das falas e técnicas que atravessam as unidades do referido Programa de
Saúde Mental. Analisaremos tais discursos no âmbito da assistência em saúde
mental, suas articulações, encontros e desencontros advindos de uma prática
feita em equipe. Descreveremos brevemente algumas contextualizações históricas,
os discursos e as práticas, e identificaremos alguns impasses que se apresentam
como desafios à construção de uma ética do cuidado numa rede pública ampliada
de atenção em saúde mental, assim como levantaremos algumas provocações que
julgamos necessárias ao campo.
ASSISTÊNCIA E
CUIDADO
As
ideias reformistas do início da década de 80 que eram consideradas alternativas
em saúde mental se tornaram o discurso oficial. Criou-se uma rede de ações
descentralizadas do modelo hospitalocêntrico e organizada em torno de
peculiaridades locais, pautada por uma oferta diversificada de recursos e
serviços, com maiores chances de responder efetivamente as mais variadas
demandas daqueles que possuem algum sofrimento mental. Criamos novas técnicas
de atendimentos, recursos sociais, medicações, outros olhares e práticas. Porém,
a tendência antimanicomial apresenta em si mesma, perspectivas, éticas e
discursos diferenciados quanto ao fazer, que por vezes são discrepantes, em
outros, opostos.
Podemos
pensar que há uma necessidade constante de reformulação das práticas de cuidado
e atenção ao sofrimento psíquico, dado que discursos estigmatizantes e
iatrogênicos num espaço instituído são renováveis e apresentam sempre novas
roupagens. As práticas se burocratizam, as teorizações se tornam dogmas, sem a
mínima possibilidade de reflexões críticas efetivas. Sendo assim, não seria
necessário avaliar o que se faz, correndo os riscos de se tomar novas posições
mais adequadas àquelas até então escolhidas?
A
saúde mental se mostra como uma prática plural a se organizar a partir de demandas,
também plurais, e de diferentes mandatos: por vezes pelo alivio de algum
sofrimento psíquico individual ou sociocultural, moradia, defesa da cidadania,
direito à saúde básica, alargamento dos laços sociais. Algumas proposições
abarcam um discurso transdisciplinar e plural, outras um discurso de um
determinismo reducionista biológico. Aqui o discurso da neuroquímica cerebral é
similar ao asilo destituído das questões filosóficas, políticas e subjetivas existentes.
Pode ser a política da Secretaria de Saúde, as teses
de movimentos de trabalhadores, a teoria de tal autor sobre as estruturas
psíquicas, os resultados de tal pesquisa laboratorial, tanto faz. O que importa
é que depositam numa autoridade supostamente indiscutível, as razões e as
justificativas para o que fazem. A despeito de possuírem eventualmente um
vocabulário progressista e reformador, apenas dão sobrevida ao asilo naquilo
que este tem de pior: o veneno burocrático que transforma todo humano em
instrumento, todo agente em máquina, todo sujeito em objeto nas mãos de um
outro.[1]
Benilton Bezerra
Júnior destaca aqui no Brasil três linhas importantes de pensamento no interior
do chamado “campo psi”: a psiquiatria
biológica, a psiquiatria guiada pela reforma italiana e a psiquiatria
influenciada pela psicanálise. Ressalta que cada uma destas linhas não são
unívocas, apresentando cada uma concepções e práticas rígidas e dogmáticas, por
vezes abertas a cooperação com as demais. Porém, a dificuldade de um discurso
possível entre si, estimula uma disputa pela legitimidade ética, onde cada
perspectiva mostra uma concretude apenas no modo de se apresentar superior às
outras. Frente a tais discursos, paralelos, que por vezes não se encontram,
seria possível preservar a especificidade e a efetividade das varias abordagens
de se acolher aqueles que sofrem subjetivamente?
Lidando com o pathos psíquico a saúde mental também
trata da dor de existir que se articula a termos fisicalistas, psicanalíticos,
políticos e sociais, todos estes vindo a oferecer algum tipo de intervenção a
reduzir ou eliminar algum tipo de mal-estar. Eis o que tratamos na prática,
dado que é na teoria que lidamos com “sinapses
neuronais, mecanismos psíquicos inconscientes ou suportes individuais de
relações sociais capitalistas”, como relata Benilton. Nossas éticas vão de
encontro com um tipo de experiência de sofrimento, de mal-estar, por vezes
insuportável, que não está contida em nenhum vocabulário que dê conta dessa
complexidade, pois é do sofrimento que todos nós tratamos, para além de nossas
filiações teóricas ou estratégias de ação.
A psiquiatria, ao lidar com o sofrimento mental ou
psíquico, o que visa? A resposta não pode ser apenas a de um alivio da dor –
não somos anestesistas da alma. Tampouco deve ser a restituição de algum padrão
de funcionamento estabelecido como normal – não somos ortopedistas do espírito
(...). Por mais ‘científica, objetiva’ que se pretenda uma intervenção, ela
terá efeitos éticos e políticos pelo simples fato de que incidirá sobre alguém,
sobre algum sujeito. Terá, portanto, sempre efeitos no plano da
intersubjetividade, sobre os quais não se pode fingir distância.[2]
Frente as mais diversas implicações envolvidas
neste extenso campo composto por variadas linhas teóricas, profissionais,
conjunturas históricas, políticas, sociais e éticas, questionamos nossos próprios
fazeres. Há alguma distância entre a demanda e a resposta? Há um ideário a
enfatizar que o tratamento é aquele que deve necessariamente devolver o bem estar,
um reabilitar o sujeito? Investigamos tais questões.
A psiquiatria nasce
como necessidade de dar uma resposta social à loucura, não se embasando num
mero enclausuramento de um grupo de indivíduos cujas falas e atos apresentam
uma particularidade e uma ruptura com o discurso comum e diferente da “norma”
social. Assim, a clínica da saúde mental enquanto um modo de resposta se
apresenta multifacetada: pode ser pensada pelo viés patológico, pode ser vista
pela sua dimensão existencial, ou de resposta enquanto sujeito. Tais
abordagens, e seus meandros, de algum modo orientam o trabalho em saúde mental,
inscrevendo o “louco”, a partir de todas as particularidades, em sua diferença
no laço social. Preserva-se assim o direito à diferença de cada um.
No trabalho diário
parece-nos que hoje a maioria dos profissionais está em regime de urgência,
voltando-se para os casos mais visíveis, sem muita disponibilidade para
planejar o cotidiano do serviço e a continuidade dos acompanhamentos. Perder-se
em demandas urgentes e em pedidos que emergem no cotidiano parece ser tarefa
possível frente à pluralidade das situações. Neste cenário torna-se pertinente
perguntarmo-nos qual o estatuto de nossas intervenções ao auxiliar sujeitos a
lidarem com experiências que lhe são insuportáveis? Será que todo sofrimento
humano é passível de evitação e necessariamente deve ser tratado?
Há uma demanda social
exigindo do campo da saúde mental uma série de abordagens a regular e suturar o
mal-estar. Não é coincidência que a toxicomania seja o paradigma contemporâneo,
onde ao procurar uma forma de suavizar as angústias cotidianas os sujeitos
recorrem, por vezes, indiscriminadamente a drogas lícitas e ilícitas. A partir
de sintomas difusos, queixas variadas e pedidos específicos de alívio há uma
resposta que deve ser rápida e eficaz.
A filosofia
pré-socrática destaca a reflexão moral das atitudes do indivíduo para com o
mundo, tentando estabelecer regras e condutas a nortear nossas ações. Hoje essa
reflexão se mostra fundamental frente ao saber científico e tecnológico, e
pelas possibilidades e poderes advindos de nossa atuação. A ciência, deste modo,
gera constantes questionamentos, e a formalização de conjuntos de regras dão
origens aos códigos de éticas, os quais refletem a perfil de cada tempo, de
cada época. Tal ética aliada a interesses específicos de algum modo controla a
conduta da sociedade como um todo através da ciência. Com o avanço do saber
científico, os valores torna-se mais delicados e complexos, o que dificulta a
criação e o estabelecimento de regras morais duradouras e fixas. A ideia de
“bem” e “mal” não serve efetivamente de parâmetro para nortear as ações
isoladamente ou o conjunto delas.
Jean Oury, em Création et Schizophrénie, diz que a
preocupação maior para todos aqueles que praticam a psiquiatria deve ser traçar
a cada dia o seu campo de ação, redefinindo suas ferramentas, conceitos,
lutando contra a própria nocividade, isso para que seja preservado o campo da
ética, domínio este sempre ameaçado. A ética é aquilo que vem a ultrapassar o
campo da atuação profissional, pois diz respeito a uma atitude diante da vida e
do ser humano. Pensar a psicose é poder se deparar quanto ao ensinamento
freudiano onde o “delírio é uma tentativa
de cura, de reconstrução”, algo sistematizado para se sobreviver, ou então
pensar, a partir de Tosquelles, que a “loucura
é criação e não passividade”. Podemos pensar a psicose, e até mesmo
aneurose, como algo positivado e não negativizado, não como algo pela via da
insuficiência, do defeito, da doença. Essa pode ser uma das éticas a apostar na
criação, na reconstrução, numa possibilidade de se haver com a própria
existência, como destaca Cavalcante.
Nossa ética implica também em
interrogarmo-nos a propósito do nosso desejo, pois se estamos ali, metidos
naquela encrenca, é preciso interrogarmo-nos o por que disto e é apenas tendo
alguma noção, mesmo que nunca completa e sempre a ser refeita, do nosso próprio
desejo, que poderemos nos situar em relação ao desejo do outro. E isto é ética,
pelo menos como a define Lacan, ‘a justa medida entre o desejo e a ação’. Levar
em conta o outro exige, portanto, que saibamos que a relação com o outro
depende do lugar de nosso próprio desejo.[3]
Poderíamos
perguntar: o que é efetivamente adequado na saúde mental? O que seria bom ou
ruim enquanto prática assistencial? Para responder a tais questões, pela
filosofia nos dividiríamos em variadas correntes, que passam pelo “naturalismo
ético”, que toma os fatos morais como fatos da natureza, até o “niilismo
ético”, no qual a moralidade é uma ilusão, pois não há fatos, conhecimentos ou
verdades morais, não há o certo ou errado, o bom ou o ruim. Entre ambas as
correntes o “funcionalismo” apregoa que algo é bom ou ruim a partir da
possibilidade efetiva de se cumprir ou não a função que lhe é destinada. Para
refinarmos a pesquisa, um olhar possível se dá pelos aspectos históricos, e por
aquilo que nos levou a construir nosso presente.
O historiador
inglês, Peter Burke, ao falar de “Como
Cresceu a ideia de Cuidado” [4],
revela que o termo cuidado é vago e impreciso por si só, e que sua conotação
varia ao longo do tempo e da cultura. Relata que o ideal é que nos tornemos
cientes das maneiras como fazemos nossas praticas do cuidar, como sustentamos
nossos discursos no aqui e agora. Diz que se pensarmos nas formas alternativas
de se sustentar uma prática, acabamos por nos tornar mais conscientes de nossos
atos e assim nos tornamos propensos e mais críticos a novos olhares frente às
mudanças e ajustes que se façam necessários.
Destaca três grupos
de cuidados ao longo dos últimos 600 anos: o cuidado com as crianças, com os idosos, com os doentes e
com os pobres. Conta-nos que em
muitos lugares, os idosos, os pobres e os doentes são tratados como crianças.
Essa é uma das vertentes do cuidar e de como nos posicionamos em relação a isso.
Um exemplo mostra-se nesta fala:
“A gente trabalha com o pessoal (...) que não
tem uma noção das coisas, que não sabem as coisas que falam, não sabem o que
fazem (...) não são coisas de pessoas normais, bem poucos daqui são normais, eu
vejo assim. (...) Só vindo para cá que a gente vê, eles são tipo crianças e
fazem as coisas quando estão bem, e quando não estão bem não fazem.” [5]
Burke relata que a
história do cuidar é tida como uma “psico-história”, uma história das emoções,
que diz do desejo de cuidar de outras pessoas, e pontua que essas práticas tem uma
localização no tempo. O autor trata destas questões pela história social, a
história da organização do cuidado e dos grupos sociais.
Historicamente
lembra-nos que os cuidadores originais estavam na família, o que se estendia as
mães, os pais, os tios, avós e outros. Há um cuidado familiar, que se passa
através de um saber transmitido e recebido diretamente destes. Mas há ainda os
cuidados de ‘estranhos’, aqueles que excedem da família, o que era relativo à
igreja, e hoje é dado pelo Estado.
Na Idade Média, o
cuidado estava restrito à família, ou então à comunidade do vilarejo que tomava
conta, coletivamente, daqueles que precisavam de atenção, já nas cidades, as
paróquias ficavam a cargo de tomar este cuidado para si. Havia naquele período
o conceito da “caridade organizada”, onde a “piedade” aqui se destacava, e
poderíamos incluir ainda a “generosidade” e a “pena”, como afetos a se
priorizar. Burke nos lembra, por exemplo, que aqui no Brasil o primeiro
Hospital se chamou: “Santa Casa de Misericórdia”.
“Trabalhamos
em favor de pessoas que precisam da gente, de carinho, de atenção, que estão
revoltadas, e que depois de um carinho elas melhoram. (...) Eu uso muita
paciência e muito amor” (...) “Acho que a gente tem que ter paciência, muita
calma, muito amor, porque sem amor a gente não vai a lugar nenhum, tem que
lidar com prazer, gostando deles para lidar no dia a dia, porque sem amor não
se faz nada, isso é o principal e o mais importante.” [6]
A igreja
recomendava aos seus fiéis que fossem realizados os “Sete Trabalhos Corporais
da Misericórdia”, que eram: alimentar os pobres, dar água a quem tinha sede,
dar vestimentas àqueles que não tinham, visitar os prisioneiros, dar abrigo a
quem não tinha lar, visitar os doentes e, enterrar os mortos. Práticas essas
necessárias e fundamentais do cuidar.
Neste período, na
Europa, as instituições do cuidado começaram a se multiplicar: havia as “Casas
das Dádivas” onde as pessoas que não tinham onde morar podiam se instalar sem pagar
aluguéis. Havia também as “Escolas Livres”, onde crianças podiam ser educadas
sem que os pais pagassem mensalidades, assim como existiam as “Fraternidades”
dentro das paróquias, onde grupos cuidavam especificamente de famílias inteiras
ou então de partes destas.
Outras instituições
eram os “Monastérios” que organizavam seu cuidar, oferecendo bebida e comida a
um grupo de pessoas desfavorecidas economicamente, além dos crescentes “Hospitais”,
que eram instituições gerais de atenção a quem precisavam de cuidados, não
necessariamente de saúde, mas que abarcavam uma variada gama de pessoas, aos
moldes de uma “hospedagem”. Naquela época não se diferenciavam quais eram os
lugares para as pessoas pobres viverem, quais que distribuiriam os alimentos e
quais espaços estavam reservados àqueles afetados por uma doença ou próximos a
morte.
No final do período
medieval é que de fato surgiram os hospitais a parir de uma configuração médica,
seguindo o exemplo de instituições características do oriente médio. Burke
destaca que desde aquela época há três modos de organização destas unidades: pela
especialização, através da secularização e pela marketização.
Os hospitais, de
generalistas, acabaram por se especializar e segmentar-se no cuidado dos
doentes, e também na cura. Se tornaram lugares onde os pacientes podiam melhorar
e voltar para suas casas, o que fez com que se instaura-se uma mudança social
radical. Surgiram, por exemplo, unidades específicas para crianças, os
ancestrais dos orfanatos, assim como surgiram também hospitais que se
especializaram em doentes mentais, os asilos, ou manicômios. Importante
destacar que o louco só começou a se tornar “paciente”, a se tornar “doente” a
partir do século XVIII, e que só por volta do século XIX especializaram-se os
profissionais e os cuidadores destes hospitais, além de médicos, enfermeiras e
trabalhadores sociais de diversas áreas.
Vem do século XV um
processo de secularização, onde o Estado e os governos mais centrais assumem um
lugar mais importante na organização desse cuidado. Este período foi marcado
pela crise da igreja, com a fragmentação da cristandade, com a abolição dos
mosteiros nos países protestantes, isso somado a uma crise social, resultado de
colheitas ruins devido ao clima europeu, e a uma explosão populacional que veio
a aumentar o número de pedintes nas cidades.
Viveu-se assim
aquilo que alguns sociólogos hoje chamam de “pânico moral”, onde a primeira
reação dos governos foi mandar os mendigos de volta para as paróquias que eles
nasceram, a partir de uma ideia de que o cuidado deve ser dado a nível local. Tal
politica organizada em torno do século XVI não funcionou, e culminou com a
criação em algumas cidades das “Casas de Trabalhos”, dispositivos criados para
que os famintos e necessitados pudessem de alguma forma ser alimentados.
Considerando as condições insuficientes de estrutura e a alta carga de trabalhos
impostos houve um o elevado índice de evasão, o que fez com que essa estratégia
também não funcionasse.
No final do século
XIX houve uma mudança política, onde os governos centrais começaram a entender que
as famílias estavam se rompendo devido à urbanização, resultado imediato da
industrialização, o que foi ocasionado pelas mudanças econômicas em voga. Surgiu
assim um alto número de desempregados que passaram a entrar para esse grupo que
também necessitavam de cuidados do Estado.
O historiador nos
lembra de que o cuidado social é sempre partilhado, diretamente ou
indiretamente. Somos nós que o fazemos: seja pelo Estado, pelas entidades
religiosas, por grupos específicos que construímos, e exemplifica a Cruz
Vermelha, os Médicos Sem Fronteiras, e outros, onde passamos a doar dinheiro a
estas organizações, ou passamos a pagar impostos direta ou indiretamente ao
Estado, sem ter muita noção ou controle disso. Estes são mediadores, gestores,
a organizar uma burocracia, a repassar a instituições próprias e específicas os
processos de cuidar.
Burke nos fala também
de uma mudança que vai para uma mercantilização do cuidado, um marketing, onde algumas
pessoas têm melhores condições financeiras do que outros. Uma privatização do
cuidado, que vai passar por hospitais, creches, casas de idosos e demais
instituições que congregam cuidadores que não se dedicam a seus próprios
familiares, num dado período, para cuidar de familiares de outros, que vão pagar
por isso.
Hoje tal olhar é
claro, os pontos aqui abordados são explícitos e fazem parte de nossas praticas
diárias e ações, o que se articula com os especialismos, e com as políticas
públicas de Estado, mas num dado momento, tais processos se mostraram em nossa
história como algo inédito e inovador. A seguir algumas pontuações de nossa
clínica pública articuladas a uma política do cuidar.
CLÍNICA PÚBLICA
E POLÍTICA
No Brasil, os anos
70 se apresentaram como a origem de todo o movimento da reforma psiquiátrica, a
partir de ideais e valores próprios frente uma política de Estado que se
marcava por um autoritarismo aliado a uma ineficácia na assistência pública. A
década de 80 foi marcada por uma ampliação, uma moralização e um aprimoramento
técnico, com ressalvas para o asilo e o ambulatório, o que culminou para a
criação de serviços baseados numa lógica territorial. Nos anos 90 estabeleceram
e instituíram-se o modelo de assistência em saúde mental, com a expansão dos
Centos de Atenção Psicossocial, como organizadores do modelo de atenção, além
de uma diversificação de serviços e dispositivos para a criação de uma rede de
instituições a acolher os portadores de algum sofrimento psíquico, seja ele em
quais níveis fossem.
Os anos 2000 nos
mostram uma mudança no nível das políticas públicas, onde a promulgação da Lei
nº 10216 e da Portaria nº 336 nos trouxeram diretrizes legais e um aumento da
rede pública de cuidados em saúde mental: serviços comunitários abertos e
regionalizados fazendo parte da atual proposta dos dispositivos, que não mais
enfatizam a lógica hospitalocêntrica para aqueles que necessitam de cuidados no
campo psiquiátrico, mas uma clínica ampliada. Assim, a rede de Saúde Mental do
Sistema Único de Saúde visa à garantia de acesso ao tratamento, um sistema
universal e que responda as mais variadas necessidades, estas que não são
necessariamente as mesmas, com exatas especificidades para os seus respectivos
grupos.
O trabalho na rede
de saúde mental é assim atravessado pelas diretrizes de uma política pública
enquanto elemento orientador, e geral, assim como pelas particularidades e
especificidades de cada clínica, de cada discurso, de cada caso. Transformou-se
uma ação setorial em política de Estado, transformou-se um modelo hospitalar
para um modelo comunitário, e assim, construímos uma política de bem estar, ou
alimentamos um ingênuo assistencialismo?
“O fato da política pública propor
diretrizes para orientar o trabalho na rede de saúde mental não quer dizer que
na prática o funcionamento se faz por protocolos. É um equivoco pensar que a
clínica da saúde mental se faz por protocolos. Essa visada empobrece o que há
de mais particular na clínica defendida pela reforma psiquiátrica, que é uma clínica
que propõe levar em conta cada sujeito a partir de seu quadro clínico, de sua
fala, de seu contexto social, de seus laços familiares.”[7]
Uma assistência em
saúde mental autoriza legalmente alguns a suprir incapacidades e deficiências
de outros, estes tidos como merecedores de medidas e decisões que ampliem suas
chances de uma “melhor” qualidade de vida. Há atos no manejo e a questão da
internação psiquiátrica, enquanto exemplo de intervenção de cuidado mostra-se
importante aqui. As internações involuntárias psiquiátricas legalmente devem se
restringir aos mandatos judiciais, e as urgências quanto ao destino do outro,
que num certo ponto desconsidera a revelação do desejo do “louco”. Uma
internação, assim como qualquer outra medida assistencial visa o que? O
sofrimento do doente? O ato responsável de um profissional? O controle e o
saneamento social, índices de uma política higienista de Estado?
Cabe ainda evocar uma
ética da responsabilidade, aquela que fala do ‘tomar a si a responsabilidade de
tratar’, não do delegar a outrem o que por lei está dado aos profissionais’, e
negociar a tutela quando a razão do louco se impuser aos desmandos dos agentes
da sociedade. Discutir condutas humanas pertinentes numa sociedade de cidadãos
implica num permanente exercício sobre a transitoriedade de situações e
diagnósticos.[8]
Classicamente, essa
assistência, está para assistir as necessidades daqueles que necessitam de
cuidados de profissionais que são autorizados pelo mandato jurídico e social, para
o fazer público. Mas de modo geral, não se escuta “o doente mental”, nem
individual, nem coletivamente, como apregoa, Pitta. O desencontro é social,
familiar, e de cada sujeito, dado que os próprios portadores de algum
transtorno mental não formam efetivas corporações para defender seus
interesses. Aqui a própria “doença”, aquilo que é mais próprio ao campo é um
sinal que conspira contra si.
Deste modo, há uma
resposta social onde alguém tem de fazer valer seus direitos, seja o direito ao
tratamento, à internação, cuidados quanto ao próprio patrimônio e os arranjos
cotidianos e necessários. Pitta defende que a saída dele para a comunidade em condições
de sobrevida deve estar adequada as suas próprias limitações, onde cuidar é
dever do Estado, através do poder judiciário e das autoridades sanitárias.
“Eu
tento inclui-los, tento coloca-los de maneira que eles tenham autonomia e
corram atrás daquilo que é direito deles, porque eles são cidadãos como todos
os outros, (...) mostro a eles o que eles são, o potencial deles e o que eles
devem buscar. (...) Quero trabalhar de maneira que os pacientes tenham
autonomia e saibam buscar os próprios direitos. Quero que eles saiam daquele
lugarzinho de coitadinhos. Faço com que eles se vejam cidadãos, com direitos e
deveres, que são parte do contexto familiar e social (...) No tratamento tem
que haver uma união da família, do paciente, do profissional e do serviço. Tem
que haver um elo entre todos para que haja uma sintonia.”[9]
Assistência, deste
modo, diz do uso de uma ética de responsabilidades que têm imbricações legais,
técnicas e administrativas ao cuidar de fato de sujeitos detentores de
desejos. Há medidas protetivas da
sociedade, do sujeito, e há justificativas, cabíveis e incabíveis, quanto à
periculosidade a si e ao outro. O ideal de “normal” e “patológico” sempre ficam
pendentes neste ponto.
“Buscamos
alcançar a melhora dos pacientes, ver eles bem, não agressivos, ver que estão
se dando bem com todo mundo, conversando bem, agindo direitinho, aí vejo que
eles estão melhores, sem internação.” (...) O objetivo é curar, fazer com que
eles fiquem bons, ficar como a gente, e cada dia menos atacado. Corrigindo quem
está errado. (...) As coisas que eles fazem não são coisas de pessoas normais,
bem poucos daqui são normais (...) Quero que eles melhorem, fiquem bons do
problema mental, que se curem e sejam normais como nós somos e sempre vejo um
esforço muito grande. Até a gente mesmo não é muito normal, temos um
desequilibriozinho”. [10]
Silva relata-nos
que a atenção psicossocial envolve diferentes procedimentos: seja a mediação
das trocas sociais no sentido de aumentar a contratualidade do sujeito, seja
propiciar um melhor gerenciamento de si, enfatizando uma melhor autonomia, ou
então, poder tornar-se referência a fim de se garantir um vínculo de confiança
e assim uma continuidade no tratamento. Todas essas práticas do cuidado em
saúde mental marcam as limitações impostas ao social e aos conflitos com a
ordem pública. Esse responsabilizar-se pelo território, pelo processo de
trabalho e por fazer o sujeito advir como responsável por sua própria condição
são discursos advindos da saúde pública, da análise institucional e da
psicanálise respectivamente. Tais falas incidem tanto sobre as praticas
clássicas de atendimento e manejo clínicos, quanto sobre a organização e gestão
dos serviços.
Os
serviços comunitários em saúde mental integram redes de apoio ao sujeito,
trazendo uma noção de mobilidade no território. Não aguardam as demandas
espontâneas do sujeito, por intervirem direta e politicamente no contexto
simbólico da comunidade, construindo de algum modo uma relação contratual com o
sujeito, e a partir desse, com todo o tecido social. A atenção psicossocial é um
campo que se constrói a partir de uma pluralidade de saberes e profissionais, assim
como com um saber leigo de familiares e da comunidade enquanto um todo. Uma das
vias do trabalho se dá em aumentar as possibilidades de contratualidade no
tecido social, ao mesmo que minimizando os excessos do sofrimento psíquico.
A ideia
de autonomia, na modernidade, é uma representação imediata da liberdade humana,
acaba por se tornar um valor a qualificar e caracterizar o humano como um
princípio. Chega-se a pensar que uma “produção da autonomia” está
necessariamente articulada a um ideal de “cura”, autonomia esta que um
tratamento na atenção psicossocial deve necessariamente produzir.
Há
vários modos de se pensar a ideia e o conceito de autonomia, mas um deles se
destaca ao tomar que a autonomia é definida como uma capacidade do indivíduo de
gerar normas para a vida a partir de suas possibilidades, de ampliar seus laços
sociais.
Será considerado mais autônomo aquele
que depender do maior número de relações com pessoas e coisas. É isso que lhe
garantirá possibilidade de escolha e lhe dará capacidade de gerar novas normas,
ampliando o seu repertório para lidar com o meio no qual está inserido. Neste
caso o indivíduo é considerado autônomo quando não está refém de determinações
únicas, absolutas e totalizantes. Em geral, sob esta perspectiva ele, é considerado
livre quanto maiores e mais variadas forem as suas possibilidades de relações.[11]
Os cuidados
oferecidos na saúde mental não tem a pureza descrita dos modelos estabelecidos
ao longo deste texto, a clínica não é um corpo único multifacetado. Temos vários
olhares, variadas clínicas, que por vezes se sobrepõem, que se compõem,
estabelecendo parciais alianças, ou totais antagonismos. Nenhum campo de nossa
cultura é total, completo e livre de encontros ou contradições.
Na França do século
XVIII, a medicina incorpora a psiquiatria e o asilo, tomando para si o mandato
do controle social da loucura e dos comportamentos que se faziam desviantes.
“Na sociedade liberal em constituição, o Estado, a
justiça e a família dividiam as responsabilidades pelo controle do louco (...)
até que a medicina entrou nessa partilha, tornando o louco um doente mental
passível de tutela, tendo em vista sua desimplificação com a ordem republicana,
de exercício de direito, mas sujeição a deveres cívicos. O louco se transforma
em alguém que necessita de proteção / cuidados ao mesmo tempo que precisa ser
administrado / controlado, ou seja, fato histórico que aponta para a
articulação entre a terapêutica da doença mental e a gestão de comportamentos
que desafiam a ordem pública”.[12]
O ideário da uma
reforma psiquiátrica, diz respeito a uma profunda mudança nas políticas
publicas em saúde mental ao se dar ênfase ao atendimento comunitário em
detrimento à lógica hospitalocêntrica. Mas o redirecionamento assistencial do
hospital para a comunidade não se dá apenas pela via de uma simples
transposição, mas faz-se por toda uma desmontagem de saberes e práticas
específicas, exigindo assim novos modos de sociabilidade, e de produção de
valor social.
“Trabalho com o comportamento, as emoções, a queixa
dos outros, relacionadas ao desequilíbrio emocional. (...) o pensamento que vai
modificar o comportamento e a ação daquela pessoa. (...) No meu objetivo
pretendo causar o alívio do sintoma, já que a cura é algo que não é alcançada,
pretendo a mudança do comportamento, e o objetivo é o equilíbrio”.[13]
Em nosso país vemos
ainda uma variação da importância do sofrimento a depender de onde e com quem
aconteça, pois na assistência a população economicamente desfavorecida há uma
banalização dos sofrimentos que põe em xeque os princípios básicos de
cidadania. Em boa parte das vezes o reducionismo biologicista, com uma resposta
imediata, e temporária, é a demanda principal, esta que sozinha só vem a
desconsiderar a dimensão mais ampla do problema. Ao abordar e buscar resolutividades para
aquilo que concerne ao sofrimento humano deve-se necessariamente eleger os
aspectos socioculturais em questão, assim como o lugar que a sociedade concede
a este sujeito e a resposta deste. “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, são
de fato, “ideais”, da Revolução.
Soares relata que a
sociedade brasileira não oferece a grande parte de seus membros as condições
mínimas de sobrevivência e os benefícios da cidadania, ao ponto de exigir
obediência aos seus princípios reguladores, e destaca os exemplos da
propriedade privada e do respeito interindividual.
“Se nós não dispuséssemos, na
sociedade brasileira, de tradições religiosas fortes e de outras modalidades de
construções superegóicas, que funcionam como balizamentos redutores do potencial
explosivo do comportamento; se nós dispuséssemos apenas de éticas laicizadas e
liberais, certamente estaríamos vivendo uma situação muito mais grave do que a
que vivemos.” [14]
Há dentre as
diretrizes do Sistema Único de Saúde, um ideário de saúde coletiva e uma
importância dada à sociedade civil em decidir sobre a formulação e o
planejamento das políticas públicas, tanto no controle da oferta quanto na
distribuição dos serviços pelo território. Essa participação da comunidade e o
controle social visam decentralizar a figura do Estado enquanto estratégia
democrática, convidando cada um a também tomar para si os encargos pela gestão
e assistência.
No campo da saúde
mental tais parcerias e redes de suporte social são algumas dos modos de
atenção diferentes da internação ou do silenciamento advindo do sofrimento
psíquico. Agenciar, partilhar, negociar e delegar cuidados aos profissionais, a
vizinhança, e aos usuários são práticas concernentes ao campo da saúde mental,
ao mesmo tempo em que se criam a permanente construção de redes.
Há impasses da
atenção psicossocial que mostram os desafios frente à produção de uma autonomia
e de uma cidadania, por vezes possível, por vezes idealizada, mas que abre
margens às possibilidades de atendimento àqueles que conhecem como via única de
alívio do mal-estar, a internação e o fármaco.
“Minha
ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão orgânica, psíquica e
anímica do paciente olhando o ser humano como um todo (...) Como adepto
profundo da reforma psiquiátrica temos que analisar o ideal e o real. Dentro do
ideal alcançaríamos situações do contexto social, no plano real uma maior
dignidade humana, um respeito e uma cumplicidade maior, respeitando dentro de
uma ética da cidadania” [15]
Sabemos e vivemos
com os limites e impasses das instituições públicas de saúde, que são ameaçadas
pelo descaso das autoridades, dos profissionais e até da população que é
usuária. Uma das maneiras de se construir e se
exercer uma política de saúde que se proponha pública se da por meio de ações,
resoluções, diretrizes, leis e portarias a organizar um conjunto comum de atos
a integrar programas que vão do Ministério da Saúde, passando pelas secretarias
Estaduais e Municipais até chegar aos profissionais e usuários dos serviços. O movimento
é sempre de mão dupla.
A amplitude e a
vastidão do campo da saúde mental, seja por suas referencias teóricas e
praticas, seja pela variedade de instituições envolvidas, não permite aspirar a
uma homogeneização frente pena de reduzir a um olhar simplista a complexidade
na assistência a saúde pública. Ao incluir a psiquiatria nos dispositivos da
saúde mental, recusamos uma oposição simplista e enfatizamos um trabalho
multiprofissional e interdisciplinar pelo viés clínico, ou político
institucional. A ação da clínica pode atuar de um modo generalista, frente às
diretrizes próprias ao campo como a reabilitação, cidadania, autonomia,
contratualidade, ou seja, laços nos quais se possam ampliar as relações sociais
dos usuários, fazendo com que proliferem suas possibilidades e autonomia junto
ao social.
O modo como o
trabalho em equipe se estrutura é decisivo para o destino do cuidado e podemos
pensar em duas lógicas ou dois modos de organização: um no qual se segue uma
lógica hierárquica das funções e dos saberes, que tem como consequência uma
burocratização da clínica, dado poder e saber verticais, que burocratizam as
praticas. Assim como há um modo mais igualitário de organização, que vai horizontalizar
as relações de poder, mesclando as funções e os especialismos, isso sem se
perder as referências e as singularidades de cada prática. Veremos a seguir as
variadas éticas, discursos e práticas possíveis.
ÉTICAS,
DISCURSOS E PRÁTICAS
Jurandir Freire
Costa, em “As Éticas da Psiquiatria”,
dispensando discussões histórico-filosóficas postula que a ética “é tudo aquilo que diz respeito ao bem, ao
justo, ao digno, àquilo que é moralmente adequado” [16].
Afirma que os enunciados éticos traduzem, num primeiro momento, um estilo de
fala, um discurso próprio daquilo que é “certo” ou “errado”, ou seja, toda
ação, estado ou intenção, que podem ser interpelados no âmbito do “isto é certo
ou errado”, ou que podem ser justificados a partir dessas ordenações
específicas. Um enunciado ético é sempre posto a partir de uma forma absoluta,
dado que a uma ética gira em torno de valores próprios.
Postula que são
três os tipos de conceitos de ética, três modos problemáticos de exercício da
ética na assistência em saúde mental, grupos estes que se caracterizam por
analogias e diferenças, fronteiras e transições: a ética da tutela, a ética da
interlocução e a ética da ação social.
Na ética da tutela a relação do agente de
cuidados com aquele que recebe os cuidados há um lugar prévio de definição de
um indivíduo privado de vontade ou razão. Especificamente aqui, a questão da
loucura se destaca. O indivíduo, a partir de sua conduta, é despojado de sua
razão e de suas vontades, de inicio pela descrição e determinação estritamente
fisicalista, passando por privações jurídico-legais quanto seus atos, tido como
“irresponsáveis”, “lesivos” e “incapazes”.
A ética da tutela
parte de uma objetificação máxima do sujeito, a partir dos conceitos
desviantes, do transtorno, da desordem mental. Objetiva o sujeito em sua
realidade biológica e jurídica, onde o “normal” é a norma devidamente
instituída.
Ela é tomada tal como é, de maneira que, quem fala
em nome da biologia, das técnicas biológicas, da psicofarmacologia, ou quem
fala em nome do direito, tende, a princípio, a justificar seus atos morais da
assistência em nome da ciência. E aqui
que temos a máxima aproximação entre a moral “do que devia ser” e a moral
“daquilo que é”. Aqui o instituído é pouco criticado.[17]
A partir destes
pressupostos os agentes de cuidados se definem mais facilmente e são tomados
como especialistas, ao passo que o sujeito é supostamente incapaz ou desprovido
de conhecimentos técnicos, um saber que dê acesso às causas de seu sofrimento,
de seu mal-estar. A ética da tutela tem como referência uma ética instrumental,
que prevê, prediz e controla de modo experimental seu objeto, dentre seus
dispositivos estão as técnicas farmacológicas, biológicas e as instituições
custodiais.
A ética da tutela,
não se adequa em ser boa ou má, como se poderia pensar inicialmente. É aquela
que faz com que o cuidador chamado a atender, afirme que conhece algo do corpo,
e que esse sujeito legitime uma autoridade na medida em que ela está de acordo
com certos pressupostos a respeito da conduta humana. Do mesmo modo quanto
àquilo instituído pelo jurídico-legal na demarcação de limites e regras, já que
nem tudo pode.
O grande
questionamento desta ética, e por vezes, a grande resistência quanto a este
discurso, é que ela é facilmente resvalada e tendenciosa ao tratar o sujeito
como mero objeto e produto de variadas intervenções. Tal ideia de definir
sujeitos como objetos de circulação econômica, através de cadeias de lucro, de
produção de desejo se faz presente no discurso contemporâneo de modo intenso. É
grave a definição reducionista genética e neuroquímica de fatores da
subjetividade e de nossa cultura como um todo.
A ética da interlocução destaca a natureza
do sujeito relacionado com suas ações e condutas, não definindo este sujeito
como privado de vontade ou razão, mas como portador de uma vontade e razão
próprios, onde as referencias ao instituinte e ao instituído são mais
facilmente criticados, assim como o poder do especialismo se autolimita. O
sujeito do tratamento é um sujeito competente, com possibilidades dialógicas,
de buscar aquilo que lhe é melhor. Jurandir relata que esse modelo da ética da
interlocução baseia-se na ética da moral privada, onde aquilo que é instituído
pode ser desfeito, refeito em nome de uma recriação permanente, não se fixando
a tempos específicos, mas permitindo uma flexibilidade mais ampla que as
recriações de crenças e normas sociais.
A flexibilidade do universo das técnicas
psicanalíticas, psicoterápicas ou de autoajuda, a meu ver, vem um pouco deste a
priori ético de valorização das crenças privadas, tendo interesse para o
indivíduo e pouco interesse para a ordem social. Os dispositivos desta ética
são constituídos por recursos consultorais ou ambulatoriais, que dizem respeito
a estas relações onde se procura uma modificação dos afetos individuais. [18]
Um ponto importante
desta ética da interlocução é a ênfase na individualidade que pode trazer a
perda quanto ao olhar para o outro.
Outro tipo a se
destacar é a ética da ação social.
Nesta, sujeito e agente não disputam quem possui a razão ou vontade, ambos
buscam refazer a ordem ou a vontade geral. Tanto o sujeito como o agente da assistência
se definem como pares, cidadãos que buscam renovar o instituído abrindo espaço
para a ação e integração que não foram previstas ou mesmo realizadas. Aqui eles
são definidos como iguais, ao mesmo que as ênfases nos estatutos de cidadania
são prioritárias, assim como há um destaque valorativo para o ideal da
assistência, onde ideais políticos e terapêuticos se equivalem.
Quando a terapêutica não é claramente abolida do
vocabulário, é fracamente assimilada ao que seria uma ação política real. O
modelo desta ética, que tem normalmente como universo de amostra os casos
graves, atingidos ou abandonados pela psiquiatria (...) tais como minorias,
nestes casos, nós vemos o modelo da ação social pregnante. É tomar aquele
sujeito suposto assistido, considera-lo como um par, um cidadão, um próximo, e
procurar agir, construindo no mundo outros lugares de interação. [19]
Essa ética, visando
o social, pode por vezes construir uma espécie de moral das minorias, tomando o
instituído das divisões como algo a ser aprofundado a todo o custo, criando
cada vez mais tipificações específicas. A ética da ação social se pauta no
modelo da ética pública, que faz com que se possa agir dentro de um conjunto de
práticas e dispositivos que nos dê um ponto em comum, de caráter moral
escolhido como norma.
“Trabalho
com pessoas e me volto para o social, para o objetivo da reforma psiquiátrica,
de fazer com o doente mental, até onde isso é possível, o resgate da cidadania,
fazê-lo cidadão com diretos e deveres, de inseri-lo na sociedade o mais que eu
possa, mesmo com as barreiras, impedimentos e dificuldades sociais e
profissionais. Procuro dar o maior espaço possível para estas pessoas viverem
com dignidade (...) Minhas ferramentas de trabalho é a minha relação com as
pessoas, a relação interpessoal com o paciente, mas também com as pessoas na
comunidade e as outras instituições”. [20]
Quanto à relação da
ética com o social, podemos tomá-la inicialmente a partir da tradição grega
onde ética está associada à noção de morada, a casa, um tipo de segunda
natureza onde a comunidade compartilhava os valores de modo unívoco, ou seja,
uma lógica do comportamento, dos códigos estabelecidos para ação, um fazer
consensual, mesmo que maleável, articulável e dinâmico, mas que não levantava
dúvidas. Na modernidade as orientações sendo multifacetadas fazem aparecer
diversos olhares e fazeres que criam variadas referencias, que por vezes se
contradizem e se fragmentam.
Costa, nos fala
ainda de uma ética dos cuidados, que
é uma ética do sofrimento, que não formula preceitos, mas que é prescritiva
quando diz que é a crueldade, aquilo que fazemos aos outros, onde nada do que
se faz pode atentar contra a integridade do semelhante.
Uma postura ética
possível pode ser evocada como um novo posicionamento, frente à apropriação,
partilha e integração de saberes e conceitos variados. Aquele que adoece,
aquele que sofre é um sujeito e não um corpo, daí o fundamental lugar da
linguagem frente à investigação destes processos de tratamento, não enquanto
uma manifestação patológica ou mero sinal de correção ou resposta rápida, mas
como campo de possibilidades de se mostrar a dimensão de uma queixa que
particularize o pedido de ajuda. A linguagem aqui deve ser ouvida por toda essa
gama de profissionais a compor uma equipe na disponibilidade de se haver com
situações não previstas e soluções a serem descobertas ou inventadas.
“Os
instrumentos são conversa e remédio. Precisam muito de diálogo, muito carinho.
Gosto de conversar com os pacientes, pois eu acho que estou ajudando. (...)
Tenho essa ligação direta na conversa, em arrumar a medicação, dar o
medicamento, muita das vezes orientando (...) muitas das vezes ouvindo”.[21]
Figueiredo[22]
nota que há uma tendência da psiquiatria em privilegiar o tratamento
medicamentoso frente sua rapidez e eficácia dos resultados. Um índice disso são
os manuais diagnósticos e estatísticos que fragmentam categorias clínicas da
psicopatologia clássica, como neurose e psicose, para criar um conjunto de
síndromes variadas e transtornos de personalidades. Outro ponto curioso é a
conjunção de sinais e sintomas a parir de substratos químicos e
neuro-anatômicos rastreados por aparelhos que mostram alterações não
perceptíveis inicialmente. Na fisiologia, ressalta sua importância, mas no
campo da subjetividade e da saúde mental os resultados são imprecisos, vagos e
ainda contestáveis.
Ao tratar do trabalho em equipe, Figueiredo[23]
vai afirmar que, estas podem ser mais ou menos coesas, assim como mais ou menos
instituídas, isso frente às concepções de assistência existentes nos diferentes
serviços de saúde. Para a execução de um trabalho consistente em saúde mental e
que abarque a diversidade da demanda há a formação de uma equipe multiprofissional
a se construir um trabalho interdisciplinar.
“Trabalhar
em equipe em alguns momentos me desespera, em outros me encanta, e me dá
vontade de continuar trabalhando, é o encanto das múltiplas diversidades, que
me enriquecem, mas que, em alguns momentos me traz enormes dificuldades devido
a olhares arraigados por conceitos antigos e preconceituosos, e que incorrem
nos mesmos erros, e isso é desesperador.”[24]
Há uma mistura dos
termos multiprofissional, multidisciplinar e interdisciplinar, que supõe um
tipo de correspondência simétrica entre as diferentes categorias profissionais
e entre as diversas disciplinas, fato este que pode descaracterizar as
especificidades do trabalho clínico, fugindo de questões de ordem ética e
política que vão além do funcionamento institucional.
Quanto à formação
das equipes há a defesa das especialidades, onde cada qual tem seu campo de
atuação, o que pode estabelecer fronteiras rígidas a isolar práticas de modo a
não existir maior contato, ou então, encontros nos quais haja uma rica troca de
experiências. Frente às práticas mais isoladas há uma burocratização, um
esvaziamento da ideia de equipe, ao passo que num processo de interlocução
disciplinar os diagnósticos, os encaminhamentos e os tratamentos vêm à tona
produzindo resultados de uma prática clínica ricos.
Para promover a
saúde mental, acontecem situações nas quais os profissionais são chamados a
atuar em diferentes dispositivos e situações a partir de um referencial comum,
na maior parte das vezes não muito bem definidos. Este é um dos questionamentos
que este trabalho visa destacar. Nestas situações todos ficam habilitados para
atender individualmente, em grupos ou em domicílio, receber emergências,
acolher, fazer oficinas, acompanhar internações, agenciar cuidados básicos de
saúde, além de participar do cotidiano institucional e administrativo, porém
fica facultado aos médicos prescrever a medicação. E Figueiredo destaca:
Mas aposto para um possível paradoxo: que se
esteja criando a necessidade de se formar superespecialistas preparados para
lidar com um leque amplo e heterogêneo de instrumentos clínicos, o que demanda
uma postura subjetiva e profissional muito rara. Por isso mesmo, corre-se o
risco de tomar a exceção como regra, diluindo o alcance teórico e o potencial
terapêutico de certos instrumentos clínicos. Ou ainda, de não tornar explícito
e, portanto, transmissível o referencial teórico ou o modelo que norteia as
diferentes ações terapêuticas.[25]
Relata que a partir
dessas questões possam ocorrer, por vezes, variações e deslocamentos
interessantes frente a tais desvios dos especialismos. Não raro ocorre ainda a
produção de hierarquias de uma profissão sobre as outras, de modo mais
explicito, ou disfarçado, ou de determinado modelo ou discurso que vai
direcionar o funcionamento da equipe, ou parte dela, no encontro ou desencontro
dos profissionais e no trabalho clínico.
Ana Cristina
Figueiredo, também recorta três modelos de compromissos éticos, que podem
formar outros modelos híbridos, ou então, se excluírem completamente: o modelo médico, o modelo psicológico e o modelo
da atenção psicossocial.
O modelo médico seria aquele a não
destacar o trabalho multiprofissional, dado o reducionismo de sua prática no
encontro e conjunção de outras áreas. Funciona sob a ética da tutela, de modo
instrumental, onde o sujeito é privado de razão e vontade frente uma descrição
fisicalista. A grande marca desse discurso é a objetivação da doença, ou mesmo
do sintoma como algo que o sujeito possui, que o acomete, e a partir do qual
muito pouco ele pode fazer senão seguir as orientações dos especialistas e as
prescrições, tanto as medicamentosas quanto as educativas. O ato de medicar é
correlativo ao médico, e faz-se de suma importância no campo da saúde mental,
pois remediar um dado sofrimento traduzido como um conjunto de sinais e
sintomas específicos requer acuidade frente aos efeitos diretos e colaterais,
além das implicações clínicas a longo prazo.
“Além
da psicofarmacologia, da abordagem médico-científica vejo também outra
ferramenta de trabalho que é a aplicabilidade do sentido humanista da pratica
psiquiátrica. Minha ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão
orgânica, psíquica e anímica do paciente olhando o ser humano como um todo”.[26]
Neste modelo, o
alívio imediato de um sofrimento é sinônimo de um restabelecimento do sujeito,
da sua doença, aqui o foco se dá pela via da observação, administração de
fármacos, vigilância, acompanhamento da evolução ou remissão dos sintomas.
Cumpre-se desta forma uma função social legítima onde os psicofármacos atendem
uma demanda social de bem-estar. Através de um saber sobre o corpo, a medicina
tem o poder de barrar, de silenciar temporalmente o mal estar, tornando-o mais
suportável.
“Os
instrumentos são a equipe de trabalho, as oficinas, o psiquiatra e o psicólogo,
principalmente o psiquiatra, que todo mundo corre nele, devido à medicação.”[27]
O modelo psicológico embasa-se na ética da
interlocução, pautado na ética da moral privada, onde o sujeito é reconhecido
como competente para buscar soluções para seus conflitos junto ao profissional,
para aquilo que escaca à vontade e de sua razão. Este modelo marca a
especificidade quanto à definição de sujeito, aquele que responde, e que não se
reduz ao indivíduo da vontade. Sujeito aqui é aquele dotado de um saber e poder
de decisão, imanente e autônomo em relação ao social e à própria cultura que o abarca
como sujeito de linguagem. Uma leitura mais ingênua pode enfatizar o individual
como uma unidade em si mesma, o que pode levar a uma ideia errônea de que tudo
depende, simplesmente, da força de vontade deste sujeito.
“Uso
a reflexão, o paciente, sua história, o que ele traz, não dirigindo o
comportamento, até porque cada um é cada um, e o que é melhor para um não é o
melhor para o outro. (...) Meu objetivo é proporcionar ao indivíduo uma
reflexão frente à problemática que ela está vivenciando, que ele possa se
autodirigir, que ele possa ser capaz de encontrar aquilo que todos nós
buscamos: uma plenitude. Uma felicidade que todos nos almejamos”[28]
O modelo psicossocial é aquele que se
pauta na ética da ação social, que se referencia na ética pública a definir
sujeito e agente terapêutico como cidadãos iguais. A terapêutica se equivale à
política e vice-versa. Os cuidados são dedicados aos casos mais graves, de
sujeitos cronificados pela estrutura psiquiátrica tradicional, que se mostra
também na luta política ao asilo e ao ambulatório tradicional, a dupla
medicamento e psicoterapia.
“Pretendo
ajudar no processo de desinstitucionalização do paciente, o que está muito
longe de acontecer. Conseguimos desospitalizar, mas desinstitucionalizar
estamos muito longe de conseguir, precisamos de desinstitucionalizar até mesmo
dentro dos CAPS e de outras instituições de saúde mental, fazer com que o
paciente seja visto e aceito como uma pessoa capaz de contribuir para a
sociedade”. [29]
O adoecer enquanto
acometimento biológico, e o mal-estar advindo de um conflito subjetivo deve dar
lugar a mudanças mais amplas nessa modalidade de se pensar o tratamento, que
visa reconstrução das relações sociais, de trabalho e convivência. As praticas
grupais e coletivas se destacam e são priorizadas frente à reconstrução de
laços precários ou desfeitos. Algo delicado é quando há a suposição de que a
clínica se reduz a uma política das igualdades, ao mesmo tempo em que a doença
ou o conflito sejam meramente de ordem social ou ideológica.
Tais modelos não se
mostram puros em si, na maior parte das vezes se mesclam compondo modelos
híbridos, variando em situações específicas, entre profissionais e
instituições. Num dado momento um pode prevalecer sobre o outro, fundamentando
modalidades semelhantes de intervenção e tratamento, por vezes, modificando
seus métodos e seus objetivos. Figueiredo destaca a prevalência de um modelo
sobre o outro e analisa:
Quando a interlocução prevalece sobre a tutela,
há a possibilidade de uma maior sociabilidade, de um convívio, algo que se
aproxima em efeitos da proposta do modelo da atenção psicossocial, para além da
questão diagnóstica e do uso da medicação, não os excluindo. Permite-se assim outra
apropriação e uma consequente ressignificação dos próprios sujeitos, deixando
em aberto a produção de efeitos inusitados e não esperados.
A tutela prevalecendo sobre a interlocução
mostra-se, por exemplo, nas necessárias abordagens da atenção primária, ao
informar e esclarecer sobre as doenças e suas consequências para melhor tratá-las.
Um problema pode se dar na generalização exacerbada ao buscar suprir
especificamente os objetivos da clínica médica. A interlocução sendo
substituída ao todo pela educação, pela simples pedagogia dos atos pode
resultar num fracasso clínico onde o sujeito não se sente implicado com sua
própria patologia e seus sintomas.
Quando a interlocução prevalece sobre a ação social,
o fazer falar acaba dando sentido ao mal-estar psíquico, e abre possibilidades
de significação abertas a novas identificações. Aqui o risco de estigmatizar
identidades rígidas e cristalizadas é minimizado, mas dar conta de diferenças
subjetivas, englobadas num recorte homogeneizador é um campo limítrofe a
reforçar uma dada condição social ao invés de diluí-la.
A ação social prevalecendo sobre a
interlocução se mostra claramente nas atividades das oficinas terapêuticas,
por exemplo, onde todo o trabalho e a produção, em seus aspectos criativos,
podem minimizar os espaços dialógicos entre os sujeitos. Grosso modo destaca-se
a tematização da produção comum ou mesmo coletiva como mote terapêutico
prioritário, com consequente desvalorização dos efeitos singulares e subjetivos
para cada sujeito. Os efeitos terapêuticos de pertinência a um grupo e de
produção são inegáveis, mas não devem deixar de almejar um endereçamento
específico para se haver com um trabalho que seja clínico.
A tutela prevalecendo sobre a ação social
mostra-se, por exemplo, nas práticas das atividades ocupacionais dirigidas
especificamente a uma dada clientela, a partir de discursos estigmatizantes, ao
se tomar o “doente”, como “regredido”, “infantilizado” ou “incapaz”, onde o
cuidador define todo o projeto terapêutico ou plano de trabalho, independente
da escolha ou da vontade do sujeito.
Quando a ação social prevalece sobre a tutela, destacam-se a terapia ocupacional, ou
praxiterapia, o lazer, a sociabilidade e a abertura para espaços de autogestão.
A construção de autonomias pode ser a via de acesso. Um exemplo se dá nos
pacientes psicóticos cronificados que a partir de um movimento específico se
engajam na luta antimanicomial, encarando uma verdadeira militância oposta a
condição anterior de tutelado. Este acesso a cidadania perdida é salutar na
medida em que se limita a operar como função simbólica e não como um peso, um
fardo que cai sobre o sujeito levando-o a responder para além de suas
possibilidades de elaboração e suporte. Aqui o igualitarismo pode apresentar um
risco enquanto elemento desestabilizador.
No trabalho em
equipe há uma consequente parcialização dos olhares, onde o psiquiatra medica,
o psicólogo a partir de sua escuta avalia a personalidade, assim como o
assistente social se atem nas questões familiares e sociais, o enfermeiro na
dedicação de cuidados específicos, o terapeuta ocupacional da relação do
sujeito com seu corpo e por aí vai.
“Fazer
um acompanhamento em cima do comportamento do paciente, um acompanhamento que
na maior parte das vezes é variado (...) Acho que aqui está tudo certinho: o
psicólogo faz o serviço e desenvolve, o assistente social acolhe, o enfermeiro
faz o cuidado de enfermagem e por aí vai (...) focar a patologia do paciente no
dia a dia, o quadro de saúde e os problemas que vem de casa.” [30]
Para além da
construção de uma significação profissional de tratamento, o mais adequado a um
verdadeiro trabalho que se proponha clínico é a circulação de saberes, que se
constroem em relação a um desejo de saber sobre o que determina aquilo que é
determinante na clínica de cada sujeito. Eis a particularização caso a caso.
Figueiredo defende
que pela via da psicanálise a ética da tutela está fora de questão, assim como
a ética da ação social, dado que não há como conciliá-las. O limite está na
recuperação da cidadania perdida, o que pode ser incompatível com a
especificidade de uma escuta da elocução da cada sujeito. “É uma escolha a ser
feita”, destaca. Para fazer valer essa elocução, o psicanalista deve estar
advertido para se atravessar as diferentes modalidades de tratamento sem se
perder na terapia ou mesmo na pedagogia, que por vezes é convocado a fazer,
principalmente no serviço público onde curar e educar, rápido, são os
principais mandatos.
“Exigem
da gente dar conta de todos os portadores de sofrimento psíquico do território
só que isso é praticamente impossível, impossível também é conciliar essa
postura muita das vezes respeitosa do desejo do outro e aquela coisa mais
autoritária que gera uma briga terrível. (...) acho muito difícil trabalhar com
psicanálise no serviço público, até porque essa é uma questão que vai pela via
institucional, seja pela transferência, por uma triangulação institucional, o
que é difícil.”[31]
A tarefa inicial
assim é poder tomar a interlocução de modo sutil para dela destacar a elocução,
convertendo-a em fala associativa como um modo de fazer o sujeito se
apresentar. A especificidade do trabalho analítico está em voltar-se
radicalmente as produções da fala dos sujeitos, para daí extrair suas consequências.
Mesmo trabalhando a
partir do modelo da interlocução, Figueiredo alerta que o risco de um
sectarismo quanto a práticas e discursos da clínica está no movimento
corporativista que dificultam as relações intra-institucionais e acabam
contaminando o trabalho possível.
Os mais burocráticos medicam ou fazem uma
psicoterapia anódina, e os mais corporativistas criam tensões que acirram as
disputas de poder pelas pequenas causas imersos, mais do que nunca, no
indesejável narcisismo das pequenas diferenças. [32]
Figueiredo nos
convida a pensar os princípios éticos que orientam a assistência em saúde
mental, nos propõe conhecer para compreender, antes de se elaborar planos,
condutas, regras ou códigos para proibir ou prescrever, isso como um exercício
de reconhecimento e respeito às diferenças, pois somente uma abordagem múltipla
marcaria esse reconhecimento das diferenças.
Aos
poucos, vivenciando a gente vai aprendendo, pois lidar com a questão da mente é
difícil. Na verdade a gente pensa que sabe, mas não sabe, a gente está lidando
com uma coisa que a gente desconhece.[33]
A seguir algumas
considerações sobre a interlocução e sobre o campo da saúde mental.
INTERLOCUÇÕES
E PROVOCAÇÕES
Se formos verificar no dicionário o
termo “saúde mental”, iremos encontrar que esta é de algum modo um “estado
caracterizado pelo desenvolvimento equilibrado da personalidade de um indivíduo”,
com “boa adaptação ao meio social” e “com boa tolerância aos desafios da
existência individual e social”, e esse é um dos grandes riscos da reforma
psiquiátrica.
Não levar a sociedade a repensar a
relação estabelecida com a doença mental, ao mesmo que privilegiar uma
adaptação do doente mental ao seu meio é elaborar explicitamente o apagamento
do sujeito, através de uma ortopedia pobre que mascara uma ética do cuidar.
Somente na conjunção das diversas disciplinas e discursos é que podemos começar
a pensar num justo campo de um saber que se proponha interdisciplinar:
A clínica, por um lado, diz respeito ao caso
tomado em sua singularidade. A saúde mental, por outro, diz respeito às ações
políticas e eticamente orientadas, só que referida a uma singularidade não
individual, à singularidade de um certo grupo. Melhor dizendo, a saúde mental
diz respeito às especificidades de um grupo social portador de um traço comum
(no caso, a “loucura” e a exclusão social).[34]
A
clínica nos diz que existe um sujeito no indivíduo, assim como a saúde mental
nos lembra das variadas determinações sociais, políticas e ideológicas, do
indivíduo para o sujeito. Os dois olhares só entram numa justa medida quando
consideramos possíveis antagonismos ou sobreposições.
Há na
contemporaneidade um discurso que se centra no “sujeito cerebral”, no qual o
cérebro é tido como o lugar da subjetividade humana. O discurso neurocientífico
atravessa o imaginário leigo ao tecer toda uma teorização que se intitula
“científica” ao abordar a diferença sexual, as compulsões, os afetos e nossas diversas
outras características humanas, seja no contexto do indivíduo seja no contexto
da sociedade. As intervenções
psicofarmacológicas somadas às técnicas de visualização da estrutura e
funcionamento cerebral elaboram as certezas e verdades do discurso
neurocientífico que elegem o cérebro como o centro de todas as ações e
movimentos.
Nossa ética em
saúde mental não deveria considerar a dimensão da subjetividade? Não haveria
assim uma tensão conceitual entre o sujeito cidadão, um sujeito da
singularidade e um sujeito biológico? A cebralização reduz a questão social e
subjetiva, enfatizando as técnicas e teorias diagnósticas, sustentadas por um
discurso tecnológico, a incidir diretamente no tecido neural. Assim não há
espaço para a experiência vivida, apenas um comportamento objetivo, biológico,
descartando toda a subjetividade e intersubjetividade.
Sabemos que a vida psíquica não cabe
no cérebro, mas tampouco cabe em qualquer outro constructo, discurso ou matéria
tomados isoladamente (...) nem todas as abordagens são compatíveis ou partilham
da mesma ética, mas não estamos em condições de dispensar nenhuma das peças do
tabuleiro. Resta saber se o campo da saúde mental suportará e sustentará a
tensão instalada, em cada lance, pelo diálogo entre posições muitas vezes tão
distintas.”[35]
Há a possibilidade
de uma ética da demanda, que visa descontruir a demanda inicial, relativizando
o pedido de medicação, oferecendo outras vias de tratamento não enfatizando o
diagnóstico psicopatológico, mas trabalhando junto a um diagnostico
situacional, os articulando. Nesse processo há de se convocar o sujeito a ser
parceiro no processo do próprio tratamento, não sendo apenas depósito de
sintomas e serem extirpados pelos profissionais e seus instrumentos. Aqui ser
tratado é um lugar frente ao outro que atua a partir de um modo específico de
acolher e proteger o sujeito de seus próprios excessos e atos.
“Há
uma questão que as pessoas não entendem, pois as coisas são muito ligadas a
supressão dos sintomas, e a gente não trabalha assim, essa é outra dificuldade,
pois a maioria trabalha assim e por isso a gente se sente nadando contra a
maré”. [36]
Para a psicanálise,
a complexidade do dispositivo não deve ir de encontro com os ideais do
terapeuta, pois se a ideia de cura é referenciada pelos seus próprios valores,
sua função não é de ser um analista. O analista deve assim resistir com seu eu,
seus sintoma, suas interpretações plenas de significado, mas com seu saber
suposto que não deve ser tomado num eu ideal. Porém há variadas clínicas em
atuação.
A palavra clínica,
tão repetida nesse texto, vem do grego kline,
e se refere a leito. Clínica é o ensinamento que se faz no leito, diante do
corpo, na presença do sujeito. Tal ensino não é teórico, se dá a partir da
experiência particular, nunca a partir de um saber universal, mas referenciado
ao particular do sujeito.
Quanto à clínica, sabemos que vem do grego kline,
leito; o sentido da clínica é o debruçar-se sobre o leito do doente e produzir
um saber a partir dai. Em suma, a “construção do caso clínico” em psicanálise é
o (re)arranjo dos elementos do discurso que “caem”, se depositam com base em
nossa inclinação para colhê-los, não ao pé do leito, mas ao pé da letra.[37]
Assim Figueiredo
enfatiza que a psicanálise não é o efeito de um saber do outro sobre uma
história, mas o encontro das ferramentas conceituais de um analista com as
contingencias de uma história, produzindo um caso, e por vezes um novo sujeito,
algo singular e inventado a cada nova situação. Ao tratar da construção do caso
clínico na saúde mental, vai marcar que para se operar com o rigor e a
radicalidade clínica há de se fugir de duas grandes armadilhas insidiosas: a
pedagogia interpretativa, que visa a partir de psicologismos um saber, e a
terapêutica da restauração, que vai ser enfática ao almejar um retorno ao
estado anterior da doença.
“Vejo que nosso principal instrumento
é a nossa qualidade mental de entender e de fazer esse processo de
transformação, trabalhar com eles, de conversar, dos cuidados. (...) Dentre
meus objetivos está o meu prazer de que eles estejam bem, amparados, com
suporte, protegidos contra a sociedade, contra as doenças, acidentes, o dia a
dia.”[38]
Ao pensarmos em uma
reabilitação, esta só deve acontecer na medida de seguir o estilo de cada
sujeito, se desfazendo do emaranhado de saberes ou funções a determinar o
necessário, ou melhor:
Em vez de nos perguntarmos o que podemos fazer por
ele, a pergunta deve ser feita de outro modo: o que ele pode fazer para sair de
tal ou tal situação com nosso suporte. Isso significa de termos de suportar, no
sentido mais radical da palavra, as ações do sujeito e chamá-lo a sua
responsabilidade a cada vez, a cada ato. [39]
O melhor antídoto
seria a responsabilidade? Figueiredo responde que sim, mas só ao fazer o
sujeito se perguntar: “O que é que eu
faço aqui? O que é que torna minha vida tão insuportável, o que posso fazer
para encontrar uma solução?”. Pontos cruciais e fruto de um trabalho de
equipe que não deve ser levado pela ideia de curar ou educar.
“Para você ser professor você também tem que ter
um controle, você tem que prender, ensinar, isso para transmitir aquilo que
você sabe, e na área de saúde mental a minha facilidade vem desse controle,
pois quando coloco 25 pessoas no grupo, eu tenho esse controle sobre eles, com
o grupo. Uso muito a questão didática, a postura de como conduzir” [40]
Reabilitação diz de
reeducar, esse um dos matizes do processo civilizatório, da construção e
formação de laços sociais. Mas as pulsões são ineducáveis e mostram-nos os
paradoxos.
Quanto ao sujeito
nota-se que a via é poder seguir seu próprio estilo, para lhe provocar naquilo
que lhe é pertinente, fazendo-o tomar a responsabilidade de seus atos, nem que
seja por uma via mínima, mesmo que não tenha responsabilidade jurídica de si.
Separados desse campo de responsabilidades, esses sujeitos tutelados,
desresponsabilizados de si, não se sentem menos culpados ou vitimados. Tal
postura ética só enfatiza uma imobilidade, falta de soluções próprias e uma
cronificação da “doença”. Não somos
contra a uma assistência ou uma reabilitação que se mostre como uma
restituição, um reconstruir do direito à cidadania, mas sabemos que a tutela
decreta o fracasso da clínica e o fim da transformação da psiquiatria. Pensamos
numa reabilitação mais no sentido jurídico do que no sentido médico-ortopédico.
Acolher e oferecer
certo alívio do sofrimento, apaziguando a angústia e os excessos do mal-estar é
algo fundamental, um meio e não um fim, pois há um impossível, há um
“incurável” da “doença mental”, algo que não se dá a reparar. Há de se colher
as produções do sujeito como indicadores de seu tratamento, não impondo uma
prática ou modelo de reabilitação pela via de uma moral ou de uma pedagogia das
condutas.
Miller[41]
nos fala que a saúde mental é definida segundo a ordem pública, ou seja, pontua
que os pacientes da saúde mental são selecionados a partir de uma perturbação
da ordem pública, ordem esta que também pode chegar até a ordem supostamente
privada da família. Relata que os trabalhadores da saúde mental exercem um
ofício próximo ao trabalho dos policiais e daqueles que trabalham no judiciário,
a seu ver, a saúde mental está para reintegrar o indivíduo à comunidade.
Pontua que o
critério operativo a situar o indivíduo do lado da saúde mental, e do lado da
ordem pública é a responsabilidade, ponto também defendido por Lacan ao falar
que a responsabilidade, como um castigo, seria um dos critérios essenciais à ideia do homem que prevalece em nossa sociedade. Deste
modo, a noção em vigor para o conceito de saúde mental é sobre a
responsabilidade de um indivíduo, ou seja, se o sujeito é responsável há a
resposta social possível de castigá-lo, ou então, se é irresponsável pelos seus
atos, há a submissão a algum tratamento determinado para uma cura. Por este
viés o homem teria saúde mental sempre que fosse possível castigá-lo por seus
atos.
Em seu texto Miller
relata que o termo sujeito, tão usado
no discurso psicanalítico, não se introduz a partir do mental, das teorizações do
campo médico-psicológico, mas a partir do direito. O irresponsável seria aquele
que não teria razão pelos seus atos, que não responderia por eles, e pontua que
“responsabilidade” inclui uma resposta, na raiz do termo, onde esta responsabilidade
é a possibilidade de responder por si mesmo. A partir de uma equivalência
social e da cultura, a saúde mental seria parte do conjunto da ordem pública,
um tipo de subcategoria.
Enuncia que o
psicanalista não é um trabalhador de saúde mental, e que esse é o segredo da
psicanálise, mesmo com aquilo que se possa dizer para justificar seu papel
enquanto um elemento de utilidade social. Mas isso pode mostrar um paradoxo,
pois a psicanálise é um tratamento que se dirige exatamente ao sujeito de
direito, àquele pleno enquanto tal, um sujeito que responde pelo que faz e pelo
que diz, e que está em constante e necessário encontro com o outro. O sujeito é
aquele que responde, e em psicanálise podemos até pensar que o próprio sujeito
já é uma resposta, aquele que tem a ver com aquilo do qual se queixa.
A saúde mental em
seus cuidados trata das perturbações do físico, do mental e do social e esta é
por sinal, a atual definição dada pela Organização Mundial de Saúde: Saúde é um completo bem-estar
biopsicossocial. Miller levanta uma provocação e nos diz que esta definição
é a voz doce do imperativo impossível, a fórmula do supereu moderno de modo totalitário, sob o véu de um ideal.
Lembra-nos ainda que a definição clássica de saúde se da pelo silêncio dos
órgãos, mas há o inconsciente que nunca se cala e assim não faz harmonia. Deste
modo, em psicanálise, relata que a saúde mental não nos serve enquanto critério
para uma prática analítica, mas sim de ordenação pública.
Laurent ao falar da
saúde mental diz que ela existe, mas que tem pouco a ver com o mental e mais
com a saúde, dado ela estar referenciada ao outro e ao silêncio, pois a saúde
mental é o que garante o silêncio do outro, tal como a saúde pode ser pensada
como o silêncio dos órgãos, como relatamos. Descreve que pela saúde mental a
ordem pública é deslocada para o novo estatuto do mestre, embaraçado com as
medidas, políticas, cifras, índices e sondagens.
Lembra-nos que foi
com o Iluminismo e posteriormente com os Direitos do Homem que se iniciou a
preocupação com a saúde e com o mental, englobando-se também os aspectos
sociais. O estado contemporâneo apresenta novas definições de um horizonte
democrático prometido aos cidadãos, não mais garantindo a felicidade, nem mesmo
a seguridade do Estado de Bem Estar-social. Limita-se a demostrar pela via
científica os efeitos de um bem estar, privatizado e individual, não situando o
campo do necessário, tampouco o lugar do contingente. É a responsabilidade que
determina ser alvo de tratamento ou punição.
Machado, ao tratar
dos paradoxos em saúde mental, relata-nos que estes fazem parte de um exercício
ético a nos ajudar a esclarecer o lugar de uma clínica singular, e nos alerta
para que nossa prática não caia por si só num obscurantismo, ou então em
consensos. Se saúde e doença já são critérios imprecisos no plano orgânico,
naquilo que tange ao psiquismo o problema se torna ainda maior. Defende que a
tese que mais lhe parece ousada é a de que nosso modelo de saúde mental está
mais para o modelo máquina, do que para o mundo animal. Na relação do sujeito
com o Outro, se não há um sujeito sem o outro, e se a saúde é o silencio do
Outro, para a psicanálise a saúde mental é da ordem do impossível.
A psicanálise, a rigor, não
trabalha com o mental já que este não se confunde com o inconsciente. Ao tomar
como objeto o sujeito do inconsciente fica impraticável a ideia de saúde, pois
do inconsciente somos todos doentes, padecemos dele.[42]
O objeto da saúde
mental é aquele delineado pela clínica da atenção psicossocial, que a partir de
um conjunto de medidas pautados em significantes universais, como inclusão e
cidadania, o que pode vir a deixar o sujeito fora de suas particularidades. A
ética da psicanálise busca vigorar para além dessas generalizações, não
apostando num conjunto específico de regras, normas ou deveres. Essa ética a
qual nos referimos não se guia por uma moral a promover um ideal de saúde, bem
estar ou mesmo “felicidade”, não se vincula a ideais imperativos de nossa
civilização.
Borsoi[43]
nos fala que tudo vai depender das consequências e não das boas intensões, e lembra-nos
que as instituições de saúde mental vêm se questionando frente aos aspectos da
segregação e destes ideais universalizantes planejados em suas práticas, e
assim marca que o discurso do mestre é o que vigora aquele que quer o bem do
paciente, assim como sua inclusão social, ou melhor, biopsicossocial. Relata
que aquilo que está em jogo na saúde mental em termos de objeto, é aquilo que
deve ser deixado de lado frente a toda e qualquer forma de normatização e
esquadrinhamento.
Quanto ao uso
adequado do discurso analítico numa instituição, seja ela qual for, marca que tal
discurso está para opor-se ao gozo da segregação que relega, separa, recusa e
não ouve o sujeito. Uma das vias pode ser levar o sujeito a despertar para uma
responsabilidade nova, algo pelo qual poderá de fato estar incluído.
“O
que quer um analista?”
Esta é a pergunta a que se depara um analista para suportar sua oferta. Também
é a pergunta chave que direciona todo um tipo específico e singular de trabalho.
Para Freud um analista não pode querer a normalidade, dado que não se chega a
um padrão possível do “normal” para o qual se deseja “educar” os pacientes.
Lacan, em seu Seminário 11, nos alerta que em psicanálise não há apenas o que o
analista pretende fazer de seu paciente, mas, há também o que o analista
pretende que o seu paciente faça dele. Um analista não é “uma mãe completa”, ou
“uma mãe suficientemente boa”, tampouco, um “filho-pai”, nem um representante
da realidade a qual o eu do paciente aspira e almeja.
Numa análise o
único sujeito em questão é o analisando como sujeito do inconsciente, ou seja,
o desejo do analista não é o desejo de um sujeito, não vai pela via de um
saber, tampouco é uma forma de gozar enquanto objeto ou pela via de seu poder
na transferência, não é uma modalidade pulsional.
O desejo do analista não é um desejo puro. É um
desejo de obter a diferença absoluta, aquela que intervém quando, confrontado
ao significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez em posição de se assujeitar
a ele. Somente aí pode surgir a significação de um amor sem limite, porque está
fora dos limites da lei, só onde ele pode viver. [44]
O significante
primordial ao qual ele deve se assujeitar é aquilo que é próprio ao discurso
psicanalítico, e sua função social está num desejo de “diferença absoluta” que
não deve ser entendido como um tipo de narcisismo das pequenas diferenças, como
relatamos há pouco. Essa diferença se remete a uma hiância, um vazio entre a
positividade, onde não adianta ser diferente de algo, mas sim de produzir
diferenças, não impondo, o próprio ideal, seu próprio eu, resistindo a toda e
qualquer significação. O analista como significante irredutível se volta mais
para uma abolição da significação do que para uma significação ou causa
primeira.
O analista deve
fazer a diferença, não deve se colar, se aderir, a qualquer uma das series
psíquicas que foi remetido pela transferência, não deixando de fazer semblante,
mas fazendo com que o trabalho aconteça. Semblante este do objeto que falta, causa
de desejo, a deslocar-se do lugar que é chamado a ocupar pelo analisando. A via
se dá a conduzir o sujeito numa direção nova, aberta a diferença. Importante
notar aqui que tal desejo de diferença não é mera ausência de desejo, pois não
comporta uma neutralidade, a via está em acolher sem ceder às demandas do
sujeito.
O desejo de diferença incide sobre a significação.
E o que permite desfazer sua fixidez remetendo a novas significações que, por
sua vez, se desfazem, afetando o sujeito, provocando viradas e causando o
desejo.[45]
Figueiredo descreve
que o psicanalisa que convém é aquele que convive, é aquele que faz o jogo
difícil da política institucional, é aquele que faz da sua diferença uma
especificidade, e não uma especialidade. Nesta diferença, o analista pode se
subtrair não se retirando do campo de ação no trabalho em equipe, e caso não
haja uma equipe, trabalha-se na solidão, campo conhecido e por vezes muito
comum pela via institucional, mas não desejável no serviço público. Mas pode
ser que aconteça uma certa atopia, uma área de sombra, espaço esse adequado e
possível para o psicanalista no trabalho institucional. Por vezes o trabalho se
dá sobre aquilo que resta das demandas, das modalidades outras e já utilizadas
de tratamento, daquilo que ainda está sem resposta, a levar o sujeito o mais
perto possível daquilo que considera satisfatório a fim de ratificar sua
posição. Este é o lugar.
Resumindo numa fórmula: consiste na elaboração
como trabalho analítico, pela via da repetição, que se dá na transferência como
instalação do ‘sujeito suposto saber’ por onde incide a ação do analista
sustentada pelo desejo de diferença. [46]
O objetivo do
trabalho, e destas provocações aqui expostas, não é pela via de formar novas
corporações, discursos categóricos e detentores da verdade, mas sim, sustentar esse
desejo de diferença.
Na psicanalise,
postula que a técnica deve dar lugar a uma posição ética, nisso que
conceituamos como desejo do analista, o saber fazer. Esse desejo é aquele que marca a pura diferença, que se sustenta
na transferência a partir do lugar de objeto perdido como causa do desejo.
Assim esse lugar do analista, como falamos, não deve e nem pode ser o de um
outro sujeito, mas o do objeto que falta, e que por isso lança o sujeito ao
desejo, ou seja, deve-se reduzir ao mínimo a pessoa do analista, seu eu, não
perdendo as possibilidades de intervenção. O analista é aquele que deve fazer o
papel de semblante do objeto que falta, a causa do desejo, num processo de
travessia da fantasia, de desidentificações. Por não ser este o objetivo
específico deste trabalho não nos estenderemos aqui, mais ainda, às
especificidades da clínica psicanalítica.
Laurent
nos diz que os analistas têm de passar da posição de analista como
especialistas da desidentificação imaginária, para a posição de analista
cidadão:
Um analista cidadão no sentido que tem
esse termo na teoria moderna da democracia. Os analistas precisam entender que
há uma comunidade de interesses entre o discurso analítico e a democracia, mas
entende-lo de verdade! Há que se passar do analista fechado em sua reserva,
crítico, a um analista que participa; um analista sensível as forças de
segregação; um analista capaz de entender qual foi sua função e qual lhe corresponde agora.[47]
Assim, a
primeira parte do trabalho do analista é silenciar qualquer identificação que
permita o desencadeamento de paixões narcísicas, e depois remeter o grupo
social em questão às suas verdadeiras tarefas. O analista, mais que um vazio, é
aquele está para ajudar a civilização a respeitar as articulações possíveis
entre as normas e as particularidades. Com os demais, este analista deve
impedir que em nome de um universal se esqueçam das singularidades. Laurent nos
lembra de que estas particularidades são constantemente esquecidas no exército,
no partido político, na igreja, na sociedade analítica, na saúde mental e em
diversos outros espaços humanos, e defende que não é por um humanitarismo que
se deve tirar alguém de sua particularidade para misturá-lo num universal.
O
analisa útil, para Laurent, seria aquele compatível com as novas formas de
assistência em saúde mental, democráticas, mas não normativas e irredutíveis a
uma causalidade ideal. O ponto comum entre os psiquiatras, os trabalhadores de
saúde mental e os analistas é saber que a democracia, e os laços sociais são
frágeis e simplesmente baseados em um manejo delicado das crenças de um grupo –
ficções que se deve tratar. Vale estar atento que o desejo de curar, seja ele
de que ordem for, desejo próprio de quem está no campo da saúde mental, tem
sombras.
Garcia, ao nos
falar de psicanálise, saúde pública e saúde mental nos defronta que estabelecendo
um conteúdo para o conceito de saúde mental, este ficaria diretamente
relacionado com uma ideia normativa. Lembra-nos de uma série de autores que
procuraram estabelecer o conceito de saúde mental aos parâmetros dos conceitos
de saúde física, pois:
Se a definição do conceito de saúde psíquica
pretende incluir referencia a necessidades tidas como verdadeiras, temos que
afirmar que em algum momento há equívoco, pois estaria sendo sugerido que em
algum lugar existem esses verdadeiros objetos do nosso querer; bastaria
descobri-los para conseguir o objetivo. [48]
E relata que a
pergunta que diz respeito à verdadeira felicidade como critério para a saúde
psíquica não depende de seu conteúdo, ou seja, não podemos isolar uma concepção
psíquica como correta ou natural. Freud já fazia referencias a um dia no qual a
psicanálise poderia se expandir tendo efeitos junto a toda a comunidade, ao
social. Nesse seu, digamos, “projeto de saúde mental”, não abandonou a ideia de
um fim do “mal-estar” na civilização, e anunciou algo da ordem de uma pedagogia
política.
Enquanto a saúde
pública vai enfatizar a epidemiologia, organizando movimentos de tratamento em
massa, convocando a uma coletivização forçada e se voltando para um atendimento
mecanizado ao público, a saúde coletiva estaria para o convite a uma
participação. Desse modo pensando a relação médico paciente em termos de uma
simetria possível, e acreditando que um aprende com o outro, a saúde coletiva
se baseia no social e no processo de articulação das massas.
Tanto a saúde
pública quanto a coletiva articulam-se com um modelo de ciência segregativa.
Tal segregação se da na imposição única das causalidades físicas ou sociais,
como mecanismos suficientes, a desconsiderar e consequentemente eliminar a
questão do sujeito. A ênfase nesse pensamento vai desconsiderar o “sujeito” em
si e tenderá para o “público alvo”.
A clínica da
toxicomania nos traz exigências cruciais frente a quaisquer tratamentos
possíveis, seja pela via da constituição da demanda, seja pelo manejo da
transferência, e isso com destaque quanto a possibilidade do sujeito se abrir
para novas posições subjetivas. O paradoxal da toxicomania é que esta nos exige
o mínimo, forçando-nos a diminuir qualquer expectativa, qualquer desejo de
“querer curar”, pois nos exige a busca da construção de um saber a partir das
descobertas diárias.
Garcia propõe deste
modo, o conceito de “saúde a ser inventada”, na qual há um sujeito que
comparece a partir de sua singularidade, e não de leis gerais ou universais. O
sujeito em questão não vem assim se resumir ao estatuto de um animal vivo, mas
a uma subjetividade singular. Pensa que a saúde mental aqui é traçada com
relação a uma comunidade, a algo que se articula ao nível coletivo.
Ao se pensar a
construção do caso clínico em saúde mental, Viganò nos alerta que tendo-se
eliminado o significante doença mental, no tratamento do usuário criou-se em
contrapartida, um regime que vai se pautar na assistência social. Frente a isso
nos alerta que é necessário reencontrar a dimensão da clínica, isto é, a
dimensão do homem.
Relata que
abandonar o saber do mestre em saúde mental é estar aberto para o debate
democrático, o caminho possível para a construção do caso a fim de se produzir
uma nova autoridade, um novo mandato, que chama de autoridade clínica. A
construção de um caso por um grupo de trabalho tende a trazer a relação do
sujeito com o seu Outro, a fim de construir também o diagnóstico do discurso e
não apenas do sujeito. Quem nos alerta também é Freud ao afirmar que:
Qualquer analista que, talvez pela grandeza do seu
coração e por sua vontade de ajudar, estende ao paciente tudo o que um ser
humano pode esperar receber de outro, comete o mesmo erro econômico de que são
culpadas as nossas instituições não-analíticas para pacientes nervosos. O único
propósito destas é tornar tudo tão agradável quanto possível para o paciente,
de modo a este poder sentir-se bem ali e alegrar-se de novamente ali
refugiar-se das provações da vida. (...) Recusamo-nos, da maneira mais
enfática, a transformar um paciente, que se coloca em nossas mãos em busca de
auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a
impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador, a formá-lo
à nossa própria imagem e verificar que isso é bom. [49]
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Não
almejamos com este trabalho tirar conclusões sobre as éticas e os discursos de
nosso campo, mas apenas algumas considerações mínimas, afinal, se cuidar de si
mesmo já não é algo muito obvio, o que diremos então de cuidar dos outros?
Algumas
questões surgiram ao longo desta pesquisa, outras se mantiveram firmemente: “O
que de nós, sujeitos, está em jogo no exercício de nosso trabalho?”. “O que de
nossa ética está xeque quanto a nosso próprio desejo, e nos situaria em relação
ao desejo do outro?”, e “O que queremos?”.
Deparamo-nos
que os variados discursos não tratam das mesmas questões e problemas, assim
como lidamos com construções diferenciadas que não apresentam a mesma
equivalência conceitual. Não há, de fato, um saber isolado ou total que dê
conta da diversidade de fenômenos concernentes à nossa experiência humana, seja
ela de que ordem for. Cada discurso esgota-se em suas possibilidades e em seus
elementos conceituais, e a loucura, uma imposição sempre limítrofe, já é o
paradoxo que faz frente a toda e qualquer ideia de sistematização que busque
representar os fatos.
Analisamos
alguns discursos no âmbito da assistência em saúde mental, suas articulações,
encontros e desencontros advindos de uma prática feita em equipe, ou ao menos
almejada. Sabemos que nossas éticas vão de encontro com um tipo de experiência
de sofrimento, de um mal-estar, por vezes insuportável, que não está contida em
nenhum vocabulário que dê conta dessa complexidade, pois é do sofrimento que
todos nós tratamos, para além de nossas preferências, filiações teóricas,
partidárias, ou estratégias de ação.
Os
cuidados e a atenção que oferecemos na saúde mental não tem a pureza descrita
dos modelos estabelecidos ao longo deste trabalho, e constatamos que nossa
clínica não é de fato um corpo único multifacetado. Temos vários olhares,
diversos tempos, desejos particulares, variadas clínicas, que por vezes se
sobrepõem, e que se compõem, estabelecendo algumas alianças, ou silenciosos
antagonismos. Como dissemos, nenhum campo de nossa cultura é total, completo ou
livre de encontros ou contradições.
Parecenos que a
clínica é uma questão de posicionamento, de um flexível e necessário
posicionamento. A ética da tutela toma o sujeito como objeto, é instrumental; a
ética da interlocução é a do sujeito como ser privado, ao passo que a ética da
ação social, em sua ênfase ao público, vai definir o sujeito como político.
Destes três tipos disponíveis basta escolher, não uma posição e segui-la
dogmaticamente, mas escolher qual a melhor opção conforme a situação cotidiana
e específica que se apresenta: esse é o ponto chave. Também não podemos
enfatizar uma felicidade física, determinações neuroquímicas, particularidades
estruturais, egóicas ou de classes sem pensar no que queremos com essas teorias
e suas determinações.
Mostra-se
significativo o predomínio de um discurso biomédico, da ética da tutela, assim
como uma verticalização da assistência no cotidiano dos serviços, enfatizando por
vezes algumas técnicas em detrimento de outras. Aqui o campo “psiquiátrico” e
“psicológico” parecem ficar mais delimitados e explícitos. Há também, e
igualmente operativo um discurso “social”, mas que não se define muito bem,
onde o social abarca uma série de posições, por vezes disformes, por vezes
definidas.
Para apreensão e construção das
informações fizemos um levantamento bibliográfico e realizamos entrevistas
semidiretas, cujos conteúdos foram gravados e posteriormente transcritos,
garantindo o sigilo dos entrevistados, assim como a não exposição direta de
suas respectivas áreas de formação. As entrevistas aconteceram nos últimos
momentos de elaboração deste texto. Com o que se trabalha, com quais
instrumentos e quais os objetivos? Questões simples, e necessárias, que por
vezes desencadeiam surpresas, incômodos e reflexões profundas.
Nas
falas dos entrevistados, componentes do Centro de Atenção Psicossocial, do
Ambulatório de Saúde Mental e do Serviço Residencial Terapêutico, se destacaram
o “transtorno mental” enquanto “doença” às vezes passível de “cura”, em outra,
passível de “tratamento” e sua necessária e normativa “melhora”. Tal melhoria
por hora referia-se à “saúde”, à “existência”, ou mesmo a uma “qualidade de
vida”, expressão usada repetidas vezes pelos entrevistados, ou então um “bem-estar”.
O
parâmetro de “norma” revela-se, naquilo que é da ordem de um “controle”, da
“orientação”, de uma “inclusão” a gerar certa passividade, frente a uma
possível “agressividade”, falta de razão, da preocupação com uma possível e
evitada “internação”. Nessas falas, poucos parecem questionar o próprio papel
de agente de cuidados, os resultados das próprias ações, suas consequências a
médio e longo prazo. Tomam o trabalho como um mandamento de inclusão social, uma
ordem discursiva dada, por vezes sem uma crítica de fundo, por hora sem desnaturar
o próprio olhar ou as questões concernentes ao normal e ao patológico.
Por
raras vezes vieram a toma os limites do campo, as imbricações públicas e
políticas que não são desvencilhadas de nossas práticas, assim como os
problemas institucionais e de formação de equipe. Interessante notar que após
se desligar o gravador, elemento constrangedor para alguns, específicas falas
correram mais descompromissadas, mais livres, imediatas, e por isso mais
verdadeiras.
A “fala”
e a “escuta”, tal qual o “social”, se destacam, ao mesmo que não se sabe bem o
que fazer com isso, clínica ou operacionalmente. Há a busca dos “direitos”,
assim como dos “deveres”, de um “equilíbrio”, de uma “dignidade”, do elemento
“humano”, do lugar da “pessoa”, em detrimento ao transtorno ou a doença em jogo
nas relações, assim como se revela o fim do “preconceito” e dos estigmas.
“Paciência”, “calma”, “carinho”, “felicidade”, e “muito amor” também estão na
ordem do discurso.
Contrabalanceando
as falas e os discursos surgidos na equipe, entrevistamos também os pacientes
sobre o Programa de Saúde Mental, quanto a esta assistência e os cuidados que
eles recebem. O conjunto das respostas são pontuais.
Quanto a um grupo
diário de fala, o “Grupo de Bom Dia”,
disseram que este serve para “ajudar”, para “avaliar”, “vigiar”, “fazer com que
os pacientes tenham algum compromisso”, para “ver o comportamento e ajudar nos
problemas mentais”, assim como funcionaria para “acabar com a preocupação dos
pacientes”, para “saber se estão tomando os remédios”, para “saber como a
família trata”, para “se fazer uma avaliação geral”, ou então “para mandar para
o médico”, para “se apresentar”, ou mesmo “para falar para os outros”, para “escrever
nos prontuários”, e curiosamente “para criar juízo”.
Nas Oficinas,
entendem que estas servem “para desenvolver a mente”, “para distrair e não
inventar moda”, “para aprender ou ajudar a ter uma profissão”, “para
desenvolver e acionar a memória, e para não esquecer as coisas”. Numa das oficinas
que tem como ênfase o trabalho de corpo destacam que esta serve “para emagrecer”,
para “melhorar as juntas e espichar”, para “agitar o sangue, para a saúde e
respiração”, “para agonizar”, assim como para a “dor na coluna e nos músculos”,
“para melhorar a postura, tirando a dor dos nervos”. Numa oficina específica de
expressão escrita marcam a importância de “saber das notícias”, assim como a
possibilidade de “expor a opinião”, ou mesmo para “ganhar um dinheiro”, além de
“mostrar que não somos tão doidos como eles pensam”, “para provar para a
sociedade que somos capazes”.
Para além da
psicose e de seus rearranjos institucionais, para além da querela psiquiátrica,
e de sua hegemonia discursiva, temos desafios em voga, a saber: as questões
referentes às toxicomanias, as estratégias de ação quanto ao uso abusivo de
álcool e outras drogas, cuidados com a infância e adolescência, e as falhas na
assistência aos idosos. Fundamentais ainda
são as articulações intersetoriais, necessárias, e precárias, na maior parte
das vezes, ao campo da saúde mental. O laço social nos exige isso.
Deve-se
estar atento para aquilo que está para além das falas, deve-se estar precavido
para os pontos que não se deixam ver, àquilo que não se é dito no cotidiano,
mas que tem consequências a partir dos silêncios. O ato de cuidar nos exige estar implicados não por um exercício de um
saber-poder, mas de estar destituídos de qualquer ordem de uma identificação,
mera domesticação, adaptação, ou mesmo preceitos e classificações institucionais.
O
objetivo do presente trabalho não foi analisar, questionar, ou mesmo provocar
os discursos, as práticas e as éticas em saúde mental. Este é um duro trabalho
que não cabe num texto, mas que é fundamental que se imponha em nosso trabalho
cotidiano, desde nossas imediatas decisões até nossos pequenos gestos, até
nossos simples atos.
O que
você tem a ver com isso? O que você quer?
Entrevista nº
01
“Trabalho com pessoas e me volto para o
social, para o objetivo da reforma psiquiátrica, de fazer com o doente mental,
até onde isso é possível, o resgate da cidadania, fazê-lo cidadão com diretos e
deveres, de inseri-lo na sociedade o mais que eu possa, mesmo com as barreiras,
impedimentos e dificuldades sociais e profissionais. Procuro dar o maior espaço
possível para estas pessoas viverem com dignidade. Combato o assistencialismo
que vê o indivíduo como um pobre coitado, que se coloca sempre numa posição
superior e que julga que é capaz de oferecer o melhor, de ditar os caminhos que
são melhores para ele e de definir as opções. (...) Minha ferramenta de
trabalho é a minha relação com as pessoas, a relação interpessoal com o
paciente, mas também com as pessoas na comunidade e as outras instituições.
(...) Pretendo ajudar no processo de desinstitucionalização do paciente, o que
está muito longe de acontecer. Conseguimos desospitalizar, mas
desinstitucionalizar estamos muito longe de conseguir, precisamos de desinstitucionalizar
até mesmo dentro dos CAPS e de outras instituições de saúde mental, fazer com
que o paciente seja visto e aceito como uma pessoa capaz de contribuir para a
sociedade. (...) Trabalhar em equipe em alguns momentos me desespera, em outros
me encanta, e me dá vontade de continuar trabalhando, é o encanto das múltiplas
diversidades, que me enriquecem, mas que, em alguns momentos me trazem enormes
dificuldades devido a olhares arraigados por conceitos antigos e
preconceituosos, e que incorrem nos mesmos erros, e isso é desesperador. (...) Os
maiores desafios se dão na luta dos hospitais psiquiátricos, no desafio de se
criar leitos nos hospitais gerais e a questão de álcool e drogas e nesta grande
a divisão de opiniões.”
Entrevista
nº 02
“Trabalho lidando com os pensamentos, com
os comportamentos e sentimentos, visando à qualidade de vida deles (...) Testes
nós não usamos aqui, e seria às vezes importante até para mediar aquilo que não
temos acesso. O discurso e as técnicas terapêuticas da cognitivo comportamental
são as minhas ferramentas. (...) Sabendo que as pessoas sofrem, o objetivo é
fazer algo por elas, proporcionando uma melhor qualidade de vida, melhorando
cada um, mas não um ideal para todos, e sim intervindo naquele caso para que a
pessoa viva e se sinta melhor. (...) Sinto-me às vezes de mãos atadas, por não
poder fazer um pouco a mais, isso até pelas pessoas se colocaram numa posição
de não quererem mais ajuda. (...) Acho que seria melhor que os profissionais
pudessem falar mais, todos os olhares e vejo que há um poder restrito pelo
medicamento e pela coisa psicológica. Seria importante haver um debate a altura
de todos os saberes e olhares, o que não acontece.”
Entrevista
nº 03
“Acho importante que eles tenham um
contato e um saber do corpo, e que sejam incluídos num trabalho, já que lá fora
eles não teriam essa inclusão. (...) Fico a disposição da minha coordenada
também, o que ela pede para fazer, se estiver ao meu alcance eu faço para
ajudar a eles também. (...) Tudo mundo pretende a inclusão deles na sociedade,
para mim, explicar para eles a importância da minha área, em si, é muito bom e
satisfatório. Quando eles vêm para mim e recebo uma resposta deles e dizem
‘estou melhor, estou melhorando’ isso já é uma resposta boa para mim. Quero o
melhor para eles como todo mundo quer, pensando o bem estar, eles bem com eles
mesmos.”
Entrevista
nº 04
“Exigem da gente dar conta de todos os
portadores de sofrimento psíquico do território só que isso é praticamente
impossível, impossível também é conciliar essa postura muita das vezes
respeitosa do desejo do outro e aquela coisa mais autoritária que gera uma
briga terrível. (...) Na medida do possível o trabalho é escutar o sofrimento
do outro e acolher. (...) Trabalhar num grupo é mexer com questões pungentes:
ser preterido, ser mandão e outras características que se não forem bem
trabalhadas acabam comprometendo a capacidade da equipe de tratar ou de
trabalhar bem os pacientes, clientes, usuários, ou seja lá qual for o nome que
se dê. (...) Meu comprometimento no trabalho é uma ferramenta, minha trajetória
teórica, minha trajetória pessoal em termos de ser paciente me ajudam muito.
Não sou psicanalista, mas tenho um olhar tendendo para a psicanálise, mas acho
muito difícil trabalhar com psicanálise no serviço público, até porque essa é
uma questão que vai pela via institucional, seja pela transferência, por uma
triangulação institucional, o que é difícil. Trocar com os colegas de trabalho
e com os pacientes é um instrumento instigante. (...) Busco reconhecimento
profissional, contribuir para melhorar a qualidade de vida de algumas pessoas,
fazendo-as se sentirem mais felizes e mais plenas; questionar algumas coisas,
até porque a minha personalidade é muito questionadora. (...) Há uma questão
que as pessoas não entendem, pois as coisas são muito ligadas a supressão dos
sintomas e a gente não trabalha assim, essa é outra dificuldade, pois a maioria
trabalha assim e por isso a gente se sente nadando contra a maré (...) mas vejo
alguns pacientes tendo uma vida melhor, mais tranquila, lidando melhor com a
medicação e podendo usufruir de outras coisas fora do CAPS, esses são
indicadores objetivos de uma qualidade de vida. A dificuldade é atingir uma boa
quantidade de pacientes, é saber equilibrar a demanda grande podendo acolher
dentro dos limites para não comprometer a qualidade do trabalho.”
Entrevista
nº 05
“Fazer um acompanhamento em cima do
comportamento do paciente, um acompanhamento que na maior parte das vezes é
variado: pacientes com deficiência mental, o esquizofrênico, o enganador,
pessoas que apresentam problemas graves, mas que não querem ser abordadas ou
tratadas, nisso acho que a gente não pode tomar nenhuma atitude porque fica
muito difícil. (...) Acho que aqui está tudo certinho: o psicólogo faz o
serviço e desenvolve, o assistente social acolhe, o enfermeiro faz o cuidado de
enfermagem e por aí vai (...) Em minhas ferramentas estão o focar a patologia
do paciente no dia a dia, o quadro de saúde e os problemas que vem de casa.
(...) Em meu objetivo está o reconhecimento como profissional da área junto com
o cuidar, dar atenção. No mais é isso.”
Entrevista
nº 06
“Trabalho com o comportamento, as emoções,
a queixa dos outros, relacionadas ao desequilíbrio emocional. (...) Minhas
estratégias estão dentro da minha linha, o pensamento que vai modificar o
comportamento e a ação daquela pessoa. (...) No meu objetivo pretendo causar o
alívio do sintoma, já que a cura é algo que não é alcançada, pretendo a mudança
do comportamento, e o objetivo é o equilíbrio”.
Entrevista
nº 07
“O objeto principal é justamente o doente
mental, onde temos que ter uma visão de amplitude com relação a ele, não o
tratando como um paciente em si, mas como alguém em sua profundidade. Como
pessoa, como cidadão, fazendo com que ele se sinta gente, e não apenas como
objeto de pesquisa, ou de medicações, como acontecia na filosofia anterior onde
ele era confinado e tratado como objeto. O principal objeto é a dimensão humana
que a gente tem que materializar em cada atendimento, em cada paciente. (...)
Além da psicofarmacologia, da abordagem médico-científica vejo também outra
ferramenta de trabalho que é a aplicabilidade do sentido humanista da pratica
psiquiátrica. Minha ferramenta é o conhecimento aplicado numa ampla dimensão
orgânica, psíquica e anímica do paciente olhando o ser humano como um todo
(...) Como adepto profundo da reforma psiquiátrica temos que analisar o ideal e
o real. Dentro do ideal alcançaríamos situações do contexto social, no plano
real uma maior dignidade humana, um respeito e uma cumplicidade maior,
respeitando dentro de uma ética da cidadania. Busco um aprimoramento, uma
melhoria no que tange a estrutura alterada, a bioquímica levando a um exercício
da afetividade, esse que é um alimento importante, uma dignidade maior (...)
cumprindo aquilo que chamamos de evolução, cabe a cada ser humano desenvolver
sempre um senso crítico para criar um aprimoramento sempre maior, e temos de
usar essa evolução junto à ciência, com um compromisso, no sentido humanista,
ampliando a visão da existência e da espiritualidade do ser como um todo.”
Entrevista
nº 08
“Dar uma melhor qualidade de vida para o
paciente; orientá-lo para que ele possa se sentir melhor diante do quadro que
ele apresenta. Que eles possam lidar com aquilo de uma forma mais saudável
fazendo com que a medicação não os prejudique tanto, pois é uma preocupação dos
pacientes os efeitos colaterais desses medicamentos, até porque eles ficam
totalmente dependentes da medicação. Se há um alívio para a dor há um
sofrimento pela dependência, e percebo que a medicação sendo um mal necessário,
ela causa outro tipo de incômodo. Penso numa qualidade de vida, viver de uma
forma mais digna, que eles possam exercer as atividades do dia a dia como nós,
com a família, com a sociedade. (...) Uso a reflexão, o paciente, sua história,
o que ele traz, não dirigindo o comportamento, até porque cada um é cada um, e
o que é melhor para um não é o melhor para o outro. (...) Meu objetivo é
proporcionar ao indivíduo uma reflexão frente à problemática que ela está
vivenciando, que ele possa se autodirigir, que ele possa ser capaz de encontrar
aquilo que todos nós buscamos, uma plenitude. Uma felicidade que todos nos
almejamos, o desejo, que até pode ser inconsciente, isso é muito questionável,
mas entendo que se ele está me buscando, é porque ele tem o desejo de uma
melhora, não de permanecer em uma doença se alimentando dela. Meu objetivo é
que ele possa reverter esse quadro (...) O desafio é igual a matar um leão a
cada dia, a saúde mental é um laboratório, os problemas maiores estão no SUS,
no CAPS, é o que enriquece na parte clínica, é o grande desafio, a caixinha de
surpresas, é um novo olhar a cada dia para chegar a essa qualidade de vida.”
Entrevista
nº 09
“Trabalho com pessoas portadoras de um
transtorno mental (...) Meus instrumentos de trabalho são as atividades, e o
olhar atento para as devidas intervenções. (...) Busco a melhora do paciente a
partir do resultado da minha intervenção, somado a medicação e a inserção
social. O objetivo não é leva-lo para a internação, mas inserir ele na
sociedade, tendo um convívio normal. Busco acabar com esse preconceito que
existe em torno das pessoas portadoras de transtorno mental, que não acabou
nada, que continua muito, que continuam chamando de ‘louco’, de ‘maluco’. (...)
Meu objetivo é essa inserção social de fazê-los participar da sociedade como
pessoas normais como nós. Aliás, às vezes acho eles muito mais normais do que
nós.”
Entrevista
nº 10
“Trabalho com uma diversidade de pessoas,
que tem sentimentos, que tem sua personalidade. (...) Trabalho com muita calma,
paciência, com a fala do paciente e com a minha escuta, seja num grupo, seja
numa oficina. Às vezes me sinto impotente com o pensamento de outros
profissionais, eu já vejo um lado mais humano. É através da minha sensibilidade
eu chego até a eles, eu me coloco às vezes no lugar deles. Alguns profissionais
não são assim, se levam mais pelo lado da razão. Às vezes o paciente quer um
pouco de atenção, uma palavra mais suave. (...) Quando entrei aqui no CAPS eu
não tinha função alguma, e daí me perguntava ‘o que é que eu estou fazendo
aqui?’, ‘qual minha utilidade?’, e hoje eu vejo que eu tenho muita utilidade
não só na minha área específica, mas também de ouvir um pouco e tentar melhorar
aquela pessoa com a minha escuta, onde a pessoa sai mais equilibrada, mais
centrada. Não sei se para os colegas, mas para os pacientes eu tenho um valor. (...)
Para você ser professor você também tem que ter um controle, você tem que
prender, ensinar, isso para transmitir aquilo que você sabe, e na área de saúde
mental a minha facilidade vem desse controle, pois quando coloco 25 pessoas no
grupo, eu tenho esse controle sobre eles, com o grupo. Uso muito a questão
didática, a postura de como conduzir. Aos poucos, vivenciando a gente vai
aprendendo, pois lidar com a questão da mente é difícil. Na verdade a gente
pensa que sabe, mas não sabe, a gente está lidando com uma coisa que a gente
desconhece. Tudo que eu faço para eles eu tento fazer o melhor, se eu estou
aqui é por causa deles, e acho que eles merecem o melhor, porque lá fora eles
já não têm.”
Entrevista
nº 11
“Trabalhamos com pessoas com problemas
mentais e eles têm melhorado, temos visto a melhora de alguns, quando eles
frequentam o CAPS ou o Ambulatório. A gente vê a diferença, quando eles tomam
esse medicamento vemos que eles estão melhor. (...) As ferramentas no trabalho
são as oficinas que alguns gostam, um passeio, os grupos, onde cada um vai
expor seu problema. (...) Buscamos alcançar a melhora dos pacientes, ver eles
bem, não agressivos, ver que estão se dando bem com todo mundo, conversando
bem, agindo direitinho, aí vejo que eles estão melhores, sem internação.”
Entrevista
nº 12
“Trabalhamos em favor de pessoas que
precisam da gente, de carinho, de atenção, que estão revoltadas, e que depois
de um carinho elas melhoram. (...) Eu uso muita paciência e muito amor (...)
Desejo a melhoria da população, das pessoas que nos procuram, do nosso
município, isso para não ver ninguém na rua pedindo, meio perdido ou por aí.
Acho que tem que ter uma pessoa direto aqui no CAPS, 24h, uma pessoa para
plantar vida nisso, deixar mais bonito e melhor ainda.”
Entrevista nº
13
“A gente trabalha com o pessoal de saúde
mental, de quem tem problema mental, que não tem uma noção das coisas, que não
sabem as coisas que falam, não sabem o que fazem, não tem uma higiene. As
coisas que eles fazem não são coisas de pessoas normais, bem poucos daqui são
normais, eu vejo assim. (...) Acho que a gente tem que ter paciência, muita
calma, muito amor, porque sem amor a gente não vai a lugar nenhum, tem que
lidar com prazer, gostando deles para lidar no dia a dia, porque sem amor não
se faz nada, isso é o principal e o mais importante. (...) Quero que eles
melhorem, fiquem bons do problema mental, que se curem e sejam normais como nós
somos e sempre vejo um esforço muito grande. Até a gente mesmo não é muito
normal, temos um desequilibriozinho, todos nós temos, um é de uma coisa e outro
é de outra. Até que eles não são tão diferentes da gente assim não, eles nem
são agressivos! Só vindo para cá que a gente vê, eles são tipo crianças e fazem
as coisas quando estão bem, e quando não estão bem não fazem.”
Entrevista
nº 14
“Se trabalha com transtornos mentais,
psicológicos, psiquiátricos. (...) Os instrumentos são a equipe de trabalho, as
oficinas, o psiquiatra e o psicólogo, principalmente o psiquiatra, que todo
mundo corre nele, devido a medicação. O psicólogo é que aguenta uma coisa brava
e serve para se ter um convívio com os pacientes, já que o psiquiatra não tem,
os psicólogos conversam mais. Os pacientes são mais chegados com os psicólogos
do que com os psiquiatras, já que são de três em três meses numa consulta. (...)
O objetivo com os pacientes graves é evitar levar para a clínica psiquiátrica,
fazer a luta anti-manicomial, para não internar, como era antigamente.”
Entrevista
nº 15
“Nós trabalhamos com o problema mental que
tem que ser cuidado. (...) Eu sempre busco ter muita atenção, muito carinho e
busco entender eles, não deixando muito a vontade, mas sabendo lidar com eles.
Chamar a atenção quando tem que chamar, para que eles aprendam, pois deixar a
vontade não pode deixar. (...) O objetivo é curar, fazer com que eles fiquem
bons, ficar como a gente, e cada dia menos atacado. Corrigindo quem está
errado, Pois não adianta ficar passando a mão na cabeça, cuidar, observar é o
que faço.”
Entrevista
nº 16
“A gente trabalha com as pessoas que tem
problema mental, com as pessoas que são agressivas, que de repente não estão
bem e falam coisas sem sentido, que tiram a roupa. Tomando remédio direitinho
até dá a crise, mas não precisa de internação. (...) Os instrumentos são
conversa e remédio. Precisam muito de diálogo, muito carinho. Gosto de
conversar com os pacientes, pois eu acho que estou ajudando. (...) O objetivo é
melhorar, e acho que há possibilidade de melhorar, o objetivo é evitar as
internações, e fazer a sociedade e a família aceitar a doença e o que é que se
passa com o paciente.”
Entrevista
nº 17
“Trabalho com os portadores de transtorno
mental e com os familiares para minimizar o sofrimento que a doença traz para
eles. Eu tento inclui-los, tento coloca-los de maneira que eles tenham
autonomia e corram atrás daquilo que é direito deles, porque eles são cidadãos
como todos os outros, para que eles não sejam discriminados, porque a sociedade
discrimina muito, mostro a eles o que eles são, o potencial deles e o que eles
devem buscar. E trabalho com a família para aliviar a sobrecarga que o
transtorno mental trás. (...) Trabalho com grupo, visitas domiciliares, ida a
hospitais para fazer as visitas, informações do INSS, o BPC e dentro da medida
do possível, o que eles pedem eu tento esclarecer. (...) Quero trabalhar de
maneira que os pacientes tenham autonomia e saibam buscar os próprios direitos.
Quero que eles saiam daquele lugarzinho de coitadinhos, que até então era o do
doente mental lá dentro do manicômio. Faço com que eles se vejam cidadãos, com
direitos e deveres, que são parte do contexto familiar e social, e dentro da
medida do possível eles tem que se doar, ajudar de uma maneira ou de outra,
para que eles se sintam valorizados e que a família tenha um olhar diferente e
não de ‘o coitadinho’. (...) No tratamento tem que haver uma união da família,
do paciente, do profissional e do serviço. Tem que haver um elo entre todos
para que haja uma sintonia.”
Entrevista
nº 18
“Trabalho com o ser humano, procuro fazer
sempre o melhor, observar, e acho que todos nós temos um pouquinho de
desequilíbrio. Antes de ser paciente é o ser humano em primeiro lugar. (...)
Tem que ter muita perspicácia para perceber, eu analiso o paciente, às vezes
fico parada observando. Trabalho com remédio, e até dou opinião no serviço dos
outros. (...) No meu objetivo eu quero ter o reconhecimento dos pacientes, eu
tendo isso está ótimo, o paciente me achando legal, me achando responsável,
suficiente, está bom. Quando eu recebo o agradecimento do paciente, o
reconhecimento, mais do que dos colegas, eu já alcancei meu objetivo.”
Entrevista
nº 19
“O trabalho é feito para o paciente, a
situação que ele está envolvido, o transtorno que ele têm, o momento que ele
está e tudo aquilo que envolve ele. (...) Os instrumentos são os atendimentos e
as abordagens tanto da equipe de nível superior quanto da equipe de apoio. Acho
que a gente tem que conhecer o momento do paciente: se há um paciente histérico
a gente trata ele de um modo diferente de um paciente que está em surto,
depende do quadro do paciente. (...) O objetivo é tratar ele da melhor forma
possível, para que ele possa sair da crise, é um grande sofrimento. O
importante é o modo como a gente se relaciona com o paciente.”
Entrevista nº
20
“Se trabalha com pessoas que possuem
problemas mentais, com pessoas que tem dificuldades de aprendizagem, com alguma
deficiência. (...) O objetivo no tratamento é o melhor para os pacientes, o bem
estar deles, às vezes nem em casa eles tem o tratamento que eles têm aqui: vem
de casa de uma maneira, às vezes sujo e sai daqui alimentado. Eu achava que as
pessoas vinham aqui, ficavam aqui e se observava o comportamento das pessoas e
medicava depois. Não imaginava a preocupação que se tem com a Residência
Terapêutica, com o Ambulatório e achava que era só deficiente mental, mas
também tratamos problemas de álcool e drogas, e isso é muita coisa.”
Entrevista nº
21
“Trabalho diretamente com os pacientes.
(...) Tenho essa ligação direta na conversa, em arrumar a medicação, dar o
medicamento, muita das vezes orientando, no banho, na higiene, muitas das vezes
ouvindo. (...) Quero alcançar mais conhecimento, quero aprender, além de querer
passar para eles segurança e confiança.”
Entrevista nº
22
“Meu trabalho está para atender as
necessidades de cada paciente, para que eles possam ter uma boa qualidade de
vida (...) Minhas ferramentas de manejo na saúde mental são o carinho, o bom
humor e a paciência. (...) Meu objetivo é o meu crescimento profissional, pois
percebi que cada dia me fascina essa área, que gosto cada vez mais”.
Entrevista
nº 23
“Trabalhamos com as pessoas tentando
aproximá-las do nosso mundo, buscando transportá-las para nosso dia a dia,
melhorando sua qualidade de vida. (...) Vejo que nosso principal instrumento é
a nossa qualidade mental de entender e de fazer esse processo de transformação,
trabalhar com eles, de conversar, dos cuidados. (...) Dentre meus objetivos
está o meu prazer de que eles estejam bem, amparados, com suporte, protegidos
contra a sociedade, contra as doenças, acidentes, o dia a dia. Acho muito
difícil o preconceito, até de outros profissionais de saúde, até mesmo os
médicos clínicos, frente a uma urgência, a uma situação mais difícil. O
paciente psiquiátrico parece que incomoda as pessoas, o incômodo às vezes vem
das vestes, dos gestos, do corte do cabelo, das roupas, o cigarro, do jeito
dele. Na Residência Terapêutica quero que eles sintam que lá é a casa deles e
respeito às particularidades e as vontades de cada um.”
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[1]
BEZERRA JÚNIOR, Benilton. “A Diversidade do Campo Psiquiátrico:
pluralidade ou fragmentação”. Em; Práticas ampliadas em saúde mental:
desafios e construções do cotidiano: Cadernos do IPUB, vol. XIV, 1999 p. 139.
[3]
CAVALCANTI, Maria Tavares. “Ética e
Assistência em Saúde Mental”. Em FIGUEIREDO,
Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 78.
[4] BURKE, Peter. “Como cresceu a ideia de cuidado”. Café Filosófico – CPFL Cultura.
Acesso em http://www.cpflcultura.com.br/2010/09/28/como-cresceu-a-ideia-de-cuidado-%e2%80%93-peter-burke-2/
em maio de 2012.
[5] Entrevista nº 13. Todas as entrevistas aqui citadas
estão na íntegra no anexo II deste trabalho, e são de profissionais que compõem
o Programa de Saúde Mental, utilizado como campo nesta pesquisa.
[7]
OLIVEIRA, Raquel Corrêa. “A chegada de crianças e adolescentes para
tratamento na rede pública de saúde mental”. Em Saúde Pública e Saúde
Mental: Questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica. Orgs. COUTO, Maria
Cristina Ventura e MARTINEZ, Renata Gomes. NUPPSAM/IPUB/UFRJ. 2007. Pág. 40.
[8]
PITTA, Ana Maria Fernandes. “Ética e
Assistência em Psiquiatria”. Em FIGUEIREDO,
Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 103.
[11] LEAL, Erotildes Maria. “Clínica e subjetividade contemporânea:
questão de autonomia na Reforma Psiquiátrica Brasileira”. Trabalho
apresentado no II Encontro dos Serviços de Atenção Diária do Rio de Janeiro.
2000. Pág. 77.
[12]
SILVA,
Martinho Braga Batista e. “Atenção
Psicossocial e Gestão de Populações: Sobre os Discursos e as Práticas em Torno
da Responsabilidade no Campo da Saúde Mental”. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva,
Rio de Janeiro, 15(1):127-150, 2005. Pag. 130.
[14]
SOARES, Luiz Eduardo. “Ética e Sociedade”.
Em FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA
FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e
Saúde Mental”. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001. Pág. 51.
[16] COSTA, Jurandir Freire, “As Éticas da Psiquiatria” em:
FIGUEIREDO, Ana Cristina; SILVA FILHO, João Ferreira (Org.). “Ética e Saúde Mental”. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2001. Pág. 27.
[22] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
- A clínica psicanalítica no ambulatório público”. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1997. Pág. 15.
[34] FURTADO, Juarez Pereira e
CAMPOS, Rosana Onocko. “A transposição
das políticas de saúde mental no Brasil para a prática nos novos serviços”
Revista Latino-americana de Psicopatologia Fundamental., VIII, 1, ano VIII, n.
1, mar/2005. Pág 116.
[35]
LIMA, Rossano Cabral. “A cerebralização do autismo: notas
preliminares”. Em Saúde Pública e Saúde Mental: Questões para a agenda da
Reforma Psiquiátrica. Orgs. COUTO, Maria Cristina Ventura e MARTINEZ, Renata
Gomes. NUPPSAM/IPUB/UFRJ. 2007. Pág. 63.
[37] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “A construção do caso clínico: uma
contribuição da psicanálise à psicopatologia e à Saúde Mental”. Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VIII, n. 1, p.
75-86, março, 2004. Pág. 79.
[39] FIGUEIREDO,
Ana Cristina. “A construção do caso
clínico: uma contribuição da psicanálise à psicopatologia e à Saúde Mental”.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. VIII, n.
1, p. 75-86, março, 2004. Pág. 81.
[41] MILLER, Jacques-Alain. “Saúde Mental e Ordem Pública”. Curinga.
Belo Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise/MG. (13): 20-31, set. 1999.
[42] MACHADO, Ondina. “Paradoxos da saúde mental”. Opção
lacaniana online. www.opcaolacaniana.com.br - Ano 2 - Número 4 - Março 2011. Pag.05.
[43] BORSOI, Paula. “O objeto na saúde mental: a utilidade
pública da psicanálise ou o uso possível do psicanalista”. Latusa Digital –
ano 5 – N° 33 – junho de 2008.
[44] LACAN, Jacques. “O Seminário - Livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da
Psicanálise”. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor, 1979. Pág. 248.
[45] FIGUEIREDO, Ana Cristina. “Vastas confusões e atendimentos imperfeitos
- A clínica psicanalítica no ambulatório público”. Rio de Janeiro:
Relume-Dumará, 1997. Pág. 167.
[47] LAURENT, Eric. “A cidade analítica: o analista cidadão”. Curinga. nº. 13. Belo
Horizonte: Escola Brasileira de Psicanálise, 1999. Pág. 08.
[48] GARCIA, Célio. “Saber
e ciência: psicanálise, saúde pública e saúde mental”. In: Cadernos IPUB,
Rio de Janeiro, n. 21, abr. 2002. Pág. 70.
[49] FREUD, Sigmund. 1919. “Linhas de Progresso da Terapia
Psicanalítica”. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XVII, Ed. Imago, 1996. Pág. 171.
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Trabalho
apresentado no Seminário “Panorama Atual
da Atenção Psicossocial nos Estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito
Santo - Atenção Psicossocial, Gestão e Pesquisa”, realizado no Instituto Philippe Pinel, pelo Instituto
de Psiquiatria, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 2012.