NA ORDEM DO DISCURSO: CIÊNCIA, CAPITALISMO E GOZO


Allan de Aguiar Almeida


Este trabalho ainda em fase de elaboração pretende tratar, pelo viés psicanalítico lacaniano, dos modos contemporâneos de enlaçamento social, a partir do impacto do discurso capitalista sobre as demandas subjetivas, que rearticulam desejo e gozo em resposta a mercantilização dos produtos da ciência.

Uma revista científica de renome anuncia uma outra nova droga capaz de aliviar de modo muito mais eficaz a dor própria do existir. Em outra de suas reportagens o anúncio de uma nova técnica cirúrgica para correções corporais de mulheres e de homens, próteses, aparelhos, cosméticos cientificamente comprovados para retardar a ação do tempo. Drogas ofertadas também para a impotência, perante as falhas e aos limites do corpo.
Os anúncios se repetem nos outdoors: eletroeletrônicos que prometem ao sujeito viver sem fronteiras e de modo muito mais confortável, roupas e acessórios que multiplicam a sensualidade, oferta excessiva e segmentada de entretenimento na TV e diversos canais exclusivos para a venda. Alimentos com um sabor extra, em edição limitada, adicionados de substâncias necessárias à saúde e a preço promocional. Marketing pessoal, também é disciplina obrigatória nesse mercado.
Nos templos religiosos superlotados a promessa eterna, a totalidade do saber, a ordem discursiva da crença de salvação, curas, sucesso espiritual e financeiro atrelados - além da segurança sempre duvidada da verdade. Nos Shopping Centers, templos de consumo, expostas nas vitrines modelos de plástico divulgando imagens de desejo, beleza, jovialidade, salvações outras pela tecnologia, todas a saciar a necessidade, e as tendências do homem moderno.
Na internet a velocidade, a quantidade de informações e por vezes a descartabilidade de conhecimento; as comunicações instantâneas e de tão imediatas, fugidias. As comunidades virtuais de todos e de nenhum. A virtualidade refletindo a realidade do outro lado da tela. Nas bancas também se multiplicam publicações específicas e para todos, de esportes radicais, de economia com seus gurus multiplicadores do capital, revistas de saúde atrelada à beleza, de mulheres com suas curvas mais que sinuosas. Nas livrarias best-sellers da auto-ajuda que estão mudando a vida de pessoas por todo o mundo, isso a cada mês.
Uma pseudo-arte e sua produção em série pela indústria cultural. Nas escolas e nas universidades uma demanda crescente de produção de saber empurrada por uma política de resultados contábeis focada prioritariamente no mercado.
Temos assim os mandamentos, a ordem do discurso que nos é apresentada pela verdade absoluta da ciência e pela necessidade imposta do capital. Saber, Consumir e Gozar são aqui também as palavras–chaves, significantes que parecem se impor aos sujeitos na contemporaneidade.
A marca desta contemporaneidade trás o registro de que algo do sujeito e de seu desejo vem se transformando radicalmente, onde o desamparo, a insegurança, as adições e extrações corporais, o atopismo cotidiano se mostram como sintomas e como elementos que vêem à tona. Assim, os quadros de depressão são exemplos pontuais, da mesma forma que o consumismo exacerbado, os workaholics, os toxicômanos e tantos outros expoentes de nossa época.
Freud já enunciava o mal-estar advindo pela cultura [1], pelos enlaçamentos sociais, tratando do antagonismo entre as exigências pulsionais e as restrições impostas pelo processo civilizatório. Descreveu que não poderíamos suportar a existência sem passar por construções auxiliares, medidas paliativas, ou seja, “derivados poderosos” que fariam parecer pequenas nossas desgraças, ou “satisfações substitutivas” que as diminuiriam ou mesmo “substancias tóxicas” que nos tornariam insensíveis ao desamparo inerente a vida.
Essas satisfações substitutivas seriam as ilusões frente à realidade que não se mostrariam menos eficaz, graças ao papel que a fantasia assume em nossa existência. Frente à problemática cultural, Freud considerou que a substituição do poder do indivíduo, dos próprios interesses e moções pulsionais, pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo, o elo constitutivo de uma civilização, de formação de uma cultura e de sujeitos.
Lacan em um de seus Seminários [2] formulou uma teoria dos discursos ao tratar dos laços sociais entre os sujeitos, face nossa constituição e estruturação pela linguagem. Postulou inicialmente um “Discurso do Mestre” marcado pelas relações de poder; um “Discurso Universitário” em que predominaria a detenção do saber; um “Discurso Histérico” que estaria para a produção desse saber e um “Discurso do Analista”, inaugurado por Freud e próprio da constituição da Psicanálise.
Desde os escritos freudianos e percorrendo as formalizações lacanianas percebemos que os discursos como laços sociais se perfazem como modo de aparelhar o gozo frente ao processo cultural, na medida em que permite o estabelecimento das relações entre os sujeitos. Ato este que implica necessariamente à renúncia pulsional.
Sendo o discurso um aparelho de gozo, os laços sociais acabam por enquadrarem à pulsão numa perda real do gozo. Tomando a atual conjuntura de nosso tempo, vemos a intensa formalização e produção de saber sobre o real o que nos leva a perceber que os discursos se entrelaçam.
A objetalização da cultura mostra a expressão do mal-estar nas doenças do discurso, de nossa psicopatologia que se apresenta pelo “Discurso Capitalista” que é o laço social dominante em nossa sociedade. Ou melhor, não há laço, pois não há propriamente relações discursivas com outros sujeitos, já que o discurso capitalista sugere a relação com latusas, com gadgets, objetos de uso próprio e determinado para se consumir temporariamente, já que são objetos mais-de-gozar, fugazes, intercambiáveis e sempre a disposição.
Este discurso que aqui falamos promove “algo” da economia do desejo do Outro que vem a estimular ilusões, “satisfações substitutivas reais”, não com a possibilidade de um outro, mas com a realidade de um parceiro, com um objeto a visar o tamponamento da falta e anulando toda a questão sobre o desejo. Cria-se uma demanda própria de poder ser possível encontrar em um objeto, ou em uma coletânea de objetos seriados, uma satisfação total e plena. Anula-se a questão de que o gozo é sempre prometido e não alcançável por estrutura dada a insaciabilidade própria do desejo.
Regido pelo discurso do capital fabrica-se assim a falta de gozo e produzem-se sujeitos ávidos a própria demanda de consumo. “Objetos” e “saberes” aqui já se confundem, já que tanto a ciência como a economia do sistema tem como finalidade a conquista do real. Colocando a mais valia no lugar da causa de desejo, essa se torna objeto de gozo, “mais-de gozar”. Forja-se um sujeito pelo discurso capitalista que materializa não o capital, mas o dinheiro como significante mestre de seu discurso.
Aqui teríamos o possível índice de uma outra economia psíquica com elementos que se mostram nos laços que se criam, não fundados na representação em si, mas no ser do objeto, no autentico, onde este só é investido na medida em que seu ser é fonte de benefícios, nas quais as manifestações do gozo devem dominar. O que vem com uma economia do signo, e não mais da linguagem, do significante, onde a representação se torna mais o signo do objeto, o efetivo de sua realidade, do que sua metáfora.
Jacques Lacan, em “Televisão” [3], enuncia que o discurso do capitalismo vem a balizar nosso tempo, dado ser esse discurso regulado pela ação do saber científico. Saber o qual produz objetos de mais-de-gozar, que por sua vez criam um imperativo de gozo frente ao consumo, junto com uma insaciabilidade em adquiri-los.
Dessa forma vem se organizado demandas e ofertas para suavizar o mal-estar, empreendendo um significativo trabalho de esquecimento, confortando, e não confrontando, esse novo sujeito. No esquecimento é excluída a subjetividade da análise do mal-estar, não cabendo mais as apreciações sintomáticas dos sujeitos. Na busca de um conforto está o saber científico capitalizado para fabricar instrumentos e artefatos que possam representar objetos pulsionais. O ideário científico debruça-se sobre si e articula-se com a tecnologia na busca de saberes integrais.
A história do sujeito, sua subjetividade, se dá num apagamento da memória, ao mesmo que de um imperativo discursivo. O termo “disorder”, usado categoricamente nos manuais diagnósticos e estatísticos vem a se remeter diretamente a um establisment social, a uma ordem do discurso, pressuposta, deixando seu caráter normativo muito bem evidenciado. Os DSMs e seus similares, dito científicos, vem a tomar a forma de um sistema operacional, universalizador, que vem a reger por uma lógica bem determinada, os objetos da ciência que anteriormente eram inscritos pela própria formação da cultura.
As mudanças ocorridas no campo psi surgem assim como um fenômeno de convergência, de uma clínica do sujeito narcísico entregue ao seu gozo, clínica esta que apresenta as patologias da contemporaneidade, identificadas a partir de síndromes vagas, como a violência, depressão, adição, transtornos de personalidades e do humor, toxicomanias, síndromes pós-traumáticas e alimentares, pânico, todas estas tocando no ponto de articulação da identidade narcísica, um dos modos de gozar na nossa civilização.
Abandonado o paradigma de um saber possível acerca da singularidade, a psicopatologia da contemporaneidade se mostra como a mais perfeita e ideal engenharia do organismo, fundada na sofisticação tecnológica e no aniquilamento da palavra e do discurso do sujeito, de seu inconsciente.
Dessa forma acreditamos que a palavra, o sutil instrumento da linguagem, a dialética do desejo é o que re-lançaria o sujeito para além do apagamento produzido pela civilização, pela razão instrumentalista e pelo discurso imperativo e ideológico.
Há que se pensar na questão de um afeto de angústia que não se apaga, das manifestações do limite colocado a um imperativo de gozo tão marcado pela proliferação desses objetos ofertados à in-satisfação. Há que se pensar nos afetos indicadores da presença de um desejo a insistir.
Frente a essa uma compra de sensações, de se atingir a supressão de todo e qualquer mal-estar surgem questões: O discurso do analista seria a única saída possível frente ás amarras do discurso capitalista? Haveria algo a barrar o ideal mercantil que alude a todo o momento a busca de uma felicidade adquirida? O que a psicanálise em seus desdobramentos tem a dizer e a fazer por isso?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BROUSSE, Marie-Hélène. “O uso do objeto”. Em: LATUSA Digital – ano 4 – Nº30 – Setembro de 2007. Disponível em: . Acessado em 21/10/2007
______. “Em direção a uma nova clínica psicanalítica”. Em: LATUSA Digital – ano 4 – Nº30 – Setembro de 2007. Disponível em: . Acessado em 21/10/2007
FREUD, SIGMUND.1927. “O futuro de uma ilusão”. Em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XXI, Ed. Imago, 1996.
______.1930. “O mal-estar na civilização”. Em Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro. Vol. XXI, Ed. Imago, 1996.
LACAN, Jacques. “O Seminário, livro 17 – O avesso da psicanálise”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992
______. “Televisão”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1993
QUINET, Antonio. “A clínica psiquiátrica nos discursos da modernidade”. Disponível em: . Acessado em 21/10/2007
ROUDINESCO, ELIZABETH. “Por que a psicanálise?”. Rio de janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000.
SADALA, GLÓRIA. “Consumo: Parceiros dos Sintomas Contemporâneos”. LATUSA, Os Labirintos do Mal-estar, Escola Brasileira de Psicanálise, Rio de janeiro, n.º 03, 1999.

NOTAS
[1] FREUD, S. “O Mal-estar na Civilização” (1930). Em: Obras completas, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
[2] LACAN, J. “O Seminário, livro 17 – O avesso da psicanálise (1969/1970)”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1992.
[3] LACAN, JACQUES. “Televisão”. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. 1993. p. 34.