FRACASSO ESCOLAR



Allan de Aguiar Almeida
Anderson Rosário Amorim
Daniele Carli de Oliveira
Roberta Pena Oliveira

As questões implicadas ao tema se direcionam nas mais variadas vertentes e abarcam as mais diversas áreas e campos de saber não se restringindo apenas a escola, perpassam a escola o campo do social, psicologia, psiquiatria, antropologia política e tantos outros.

O presente trabalho faz uma passagem pelas raízes históricas de nossa sociedade que sustenta as mais diversas teorias a respeito do tema e que buscam justifica-lo junto com toda a construção ao longo do tempo, os indivíduos implicados.

Mostramos aqui, e questionamos, o papel da medicina e da “psicologia”, em especial, na construção de rótulos, realidades e idealidades junto com todo o cientificismo que assim se impõem.

Pretendemos assim não resolver, tampouco analisar profundamente o “não sucesso escolar”, mas levantar questões em relação àquilo que se tem por fracasso, como algo instituído, que se dá tanto dentro da escola como fora dela.

I. A CONSTRUÇÃO HISTÓRICO-SOCIAL DA EDUCAÇÃO

A nossa proposta aqui é de demonstrar como o processo educacional foi historicamente construído. Com isso, veremos que está intrinsecamente ligado ao processo de construção do sentimento da infância. E, através da relação entre eles, tentaremos traçar um panorama cronológico dos fatos relacionados com estes processos.

Tomemos como ponto de partida a época Medieval. Quando, de início, a educação era reservada apenas para um pequeno número de clérigos. Com o tempo, passa a ser ministrada para o povo, em locais públicos, como nas igrejas ou em suas portas, nas ruas ou nas praças. Não existia uma preocupação com o ambiente escolar e as turmas eram mistas, pois julgava-se que o que era realmente relevante seria a matéria dada e não as características dos alunos. Até mesmo porque, não existia a distinção do que seria um adulto, o indivíduo passava diretamente da infância para a fase adulta sem que houvesse uma etapa de transição. Portanto, podia-se encontrar, em uma mesma turma, crianças de 6 anos muito mais avançadas no processo de aprendizagem, e, jovens de 20 anos, ou mais, ainda aprendendo o Donat (gramática rudimentar) – características de uma sociedade com grande liberdade de costumes.

Na sociedade antiga, a criança ao ingressar na escola ingressa, também, no mundo dos adultos – pensamento que irá resistir até o final da Idade Média. Ao contrário da modernidade, quando haverá na educação uma grande preocupação de separar as crianças, no período de formação moral (ou intelectual), da sociedade dos adultos. Contudo, ainda na época medieval, é importante ressaltarmos a existência dos contratos de aprendizagem, que estipulavam, pelos pais, o grau de aprendizagem que seria oferecido à seus filhos. Estes seriam confiados aos clérigos, que lhes dariam abrigo – única forma de internato conhecida na época. Os outros estudantes viviam como podiam, muitos em espécies de pensões, misturados meninos e velhos, todos em um mesmo quarto.

No século XIII surgem os colégios, mas como espécies de asilos para estudantes pobres, onde não existia a função de ensinar. A partir do século XV, esses locais tornaram-se institutos de ensino, com grande número de pessoas e uma hierarquia autoritária, onde passou a ser ministrado o ensino das artes. Esses institutos foram o modelo para as grandes instituições escolares do século XV ao XVIII: o colégio dos jesuítas, o colégio dos doutrinários e o colégio dos oratorianos. E o estabelecimento da disciplina determinou a transformação da escola medieval (simples sala de aula) até o colégio moderno, instituição de ensino, vigilância e enquadramento da juventude.

Ao longo do século XIV, inicia-se um processo de recusa a esse sistema que mistura todas as idades em uma mesma turma, de início em favor das crianças menores e mais tarde estendendo-se aos maiores. Pois, essa separação não os atingia enquanto crianças, mas sim enquanto estudantes. Para isso os educadores basearam-se no modelo dos monastérios, separando os estudantes do resto da sociedade, que continuava fiel à mistura das idades, dos sexos e das condições sociais.

No início do século XV começa-se a dividir o ensino em classes, agrupadas em níveis de capacidade, com um mesmo professor e em um único local. Aparecem, neste momento, duas idéias novas no âmbito da educação: a noção de fraqueza da infância e o sentimento de responsabilidade moral dos mestres para com seus alunos, pois até então eles não se interessavam pelo comportamento dos alunos fora da sala de aula. E o sistema autoritário e hierarquizado dos colégios da época, viria a estabelecer o desenvolvimento de um sistema disciplinar cada vez mais rigoroso. Onde as principais características seriam a vigilância constante e a aplicação de castigos corporais.

E, foi esse novo modelo, que originou a estrutura moderna de classe escolar. Que, então no século XVI, estabeleceria subdivisões nessa população escolar, passando a organizar os alunos de acordo com idade e nível de desenvolvimento. Com maior relevância para o grau de instrução do que propriamente à idade. Portanto, podemos considerar este ponto, como o marco do pensamento moderno em relação à formação pedagógica.

Já no século XVII, surge um pensamento de distinção entre fases da infância, que considerava uma primeira infância, mais longa, e uma infância propriamente escolar, que começava aos 10 anos, enquanto que, até esta idade, as crianças eram mantidas longe da escola. E, esse afastamento dos mais novos era justificado pela crença na sua fraqueza ou incapacidade. Contudo, mesmo com essa separação, a mistura das idades persistiu pelos séculos XVII e XVIII, podia-se encontrar classes com crianças de 10 a 14 anos junto a jovens de 19 a 25.

Somente no início do século XIX que seria estabelecido definitivamente os maiores de 20 anos como adultos. Ainda assim, não era de causar estranhamento a existência de classes com jovens de idades muito diferentes. Desde que os mais novos (primeira infância) não fossem expostos a estes. E, somente ao fim deste século é que seriam destinguidas as crianças da segunda infância (12 – 13 anos) dos adolescentes, ou jovens. Graças ao surgimento de instituições de um ensino superior: universidades ou grandes escolas, em regime de internato, que representavam a preocupação burguesa de separar as crianças da elite das crianças pobres. E, também, a uma relação cada vez mais considerada entre idade e classe escolar – que desde o século XVI já era reconhecida como uma unidade estrutural importante.

Uma nova concepção de educação reinaria no século XIX, relacionada a um novo sentimento de infância, que surge em oposição à conjuntura da Idade Média. Não mais se trataria a criança a partir de sua fraqueza, pelo pensamento de que para melhorá-la deveria ser humilhada e submetida aos castigos corporais. Que rebaixava a infância ao nível do que era aplicado às camadas mais inferiores da sociedade, colocando-a como uma idade servil. No ciclo de produção do pensamento comum relacionado à infância, a preocupação agora era despertar na criança a responsabilidade do adulto e sua dignidade.

Com tudo isso, podemos dizer que o desenvolvimento do pensamento sobre a infância foi o grande tema do século XIX, assim como a adolescência o do século XX. E, que o surgimento dos especialistas que voltaram sua atenção para a área da infância e da educação (pedagogos, psicólogos, educadores, entre outros), demonstra toda a preocupação que surgiu em torno desse tema. Desde a necessidade burguesa de melhor preparar seus sucessores e garantir seu lugar no governo, até mesmo a intenção de oferecer aos jovens da população mais carente melhores condições de disputar uma posição mais digna na sociedade. A educação sempre serviu a um contexto social, construído historicamente.

II. HISTÓRIA DO FRACASSO ESCOLAR

As idéias que dizem respeito às dificuldades de aprendizagem escolar surgem historicamente mediante uma visão de mundo que se firmam hegemonicamente. Visto que tais idéias não têm uma existência independente da realidade histórica e social, é necessário entender, partindo do materialismo histórico, as determinações históricas e sociais que nas quais se originaram as idéias sobre a pobreza e seus reveres, tais como o fracasso escolar.

A era das revoluções e a era do capital:

A revolução política francesa de 1789-1792 e a revolução industrial de início em 1780 exerceram grande influência no século XIX. Segundo Hobsbaw, “a grande revolução de 1789-1848 foi o triunfo não da indústria como tal mas da indústria capitalista; não da liberdade e da igualdade em geral, mas da classe média ou da sociedade burguesa liberal; não da economia moderna ou do Estado moderno mas das economias e estados em uma determinada região geográfica do mundo [...]. A mudança do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista não se limitou apenas a uma mudança econômica. Produziu grandes transformações a ponto de ser considerada como a “maior transformação da história humana desde os tempos remotos, quando o homem inventou a agricultura e a metalurgia, a escrita, a cidade e o Estado” por Hobsbaw.

Destacam-se algumas de tais mudanças: o fim da monarquia, a impossibilidade da relação senhor-servo como relação de produção dominante, o êxodo rural, o coroamento da burguesia como a classe dominante e o proletariado como a classe dominada.

Simultaneamente à decadência econômica da ordem feudal, o comércio e a indústria manufatureira progredia de acordo com o avanço das relações comerciais através da exploração colonial e da expansão marítima. Neste contexto, surge o mercador, o percursor do capitalista industrial.

O mercador comprava os produtos dos artesãos para vendê-los a um mercado mais amplo, transformando assim o artesão em um “trabalhador por artigo produzido”. O mercador controlava a produção e ligava o produtor ao mercado mundial. Este novo empreendedor surgiu em contradição a nobreza. À medida que os rendimentos da produção agrária diminuíam, a aristocracia procura ocupar os altos cargos governamentais, porém muitos destes já estavam ocupados pelos “mal-nascidos”. O movimento de expulsão dos funcionários plebeus do aparelho estatal que ficou conhecido como a “reação feudal” parece ter sido um dos antecipadores da revolução francesa.

O movimento revolucionário contra à nobreza não se deu de forma organizada. Sua unidade era constituída de advogados, negociantes e capitalista, isto é, a burguesia. Os jacobinos representavam a reação política, enquanto que as manifestações, barricadas e agitações eram praticadas pelos sans-culotes — grupo formado por trabalhadores pobres, artesão e pequenos empresários.

As condições dos camponeses e artesãos com a transição do modo de produção feudal para o capitalista se agravou. A destituição de seus instrumentos de produção, da matéria-prima e da terra para cultivar, a peste e os eventos climáticos alavancaram uma grande massa de famintos para as cidades. O servo, agora, destituído dos meios de produção de subsistência será obrigado a vender sua força de trabalho nas indústrias em troca de salário.

Se na revolução francesa a burguesia e os trabalhadores pobres se uniram em uma causa comum, a retirada da nobreza do poder, com o tempo, o objetivo da burguesia de aumento de lucro e de sua acumulação fez com que a situação dos trabalhadores se deteriorasse em maior grau. Máquinas foram quebradas pelos trabalhadores descontentes por acreditarem serem estas as responsáveis pela má situação em que encontravam. Porém, a insatisfação não se limitou ao operariado. Entre 1825 e 1848 crises períodos afetaram também a vida econômica da pequena burguesia. A reação da burguesia frente as crises foi a diminuição dos salários, a racionalização e aumento da produção e o incremento das vendas.

A partir do momento em que o produto passa a produzir para outrem, quando é destituído dos meios de produção, e os homens começam a dividir-se em proprietários das máquinas e da matéria-prima e trabalhadores que não as possuem se inicia o trabalho alienado. Marx, no primeiro Manuscrito Econômico, “propõe-se a desvendar a natureza desse trabalho, dessa forma de trabalho na qual a) o trabalhador se sente contrafeito, na medida em que o trabalho não é voluntário mas lhe é imposto, é trabalho forçado; b) o trabalho não é a satisfação de uma necessidade mas apenas um meio para satisfazer outras necessidade; c) o trabalho não é para si, mas para outrem; e d) o trabalhador não se pertence, mas sim a outra pessoa”. A alienação do trabalho fica claro pelo fato de que sempre que possível, o trabalho é evitado. Nas condições da indústria capitalista, trabalhar significa mortificar-se, uma necessidade para manter a existência. O trabalhador só se sente livre ao desempenhar suas funções vitais: comer, dormir ..., e trabalho se configura como uma atividade vital, tal como a atividade dos animais. “Tal condição de vida produz uma inversão desumanizadora: em suas funções especificamente humanas, o trabalhador animaliza-se; no exercício de suas funções animais, humaniza-se”.

Entre 1815 e 1848 o proletariado se organiza em movimentos revolucionários e formulações teóricas socialistas. Porém, a ruptura do proletariado com a burguesia somente se deu — exceto na Grã Bretanha — a partir de 1848. O “sonho humano de um mundo igualitário, fraterno e livre” promovido pela burguesia durante o século XVIII, em meados do século XIX já havia se diluído. Na realidade o capitalismo se configurou para os trabalhadores como a produção de sua miséria para o enriquecimento da burguesia. À medida que a revolução industrial avançou a revolução política recuou. Nesta época, “a política se caracterizou por reformas sociais que tinham como meta defender os interesses da burguesia, dirigir as massas, traduzir suas reivindicações em termos assimiláveis pela ordem social existente era o caminho mais eficaz para lhes permitir uma participação política sem que se tornassem ameaças incontroláveis.

No período pós 1848, ocorreu um grande êxodo rural. A ruim situação no campo e demanda crescente de força de trabalho para a produção industrial impulsionaram as famílias de camponeses famintas para as cidades. A cidade típica desta época era superpovoada, carente de infra-estrutura e na periferia habitavam os pobres contrastando com os bairros burgueses.

A vida do trabalhador do século XIX era de constante insegurança. A ameaça de miséria se dava pela medo do desemprego e do fim de sua capacidade de produção. O empresariado, e até mesmo a classe operária faziam distinção entre “o trabalhador respeitável”, especializados e bem pago, e o “pobre sem respeito”, à beira do desemprego e não qualificado.

A polarização social, neste período, é cada vez mais radical. “Entre as pequenas conquistas de uma minoria de operariado e acumulação de riqueza da alta burguesia cavara-se um abismo que saltava aos olhos . Justificá-lo será a tarefa das ciências humanas que nascem e se oficializam neste período”.

A condição de vida da classe operária não condizia com as idéias da revolução francesa. O descontentamento dos trabalhadores produz a Comuna de Paris (1871) em que batalhões de miseráveis protestaram contra a distância que os separavam dos burgueses.

O individualismo secular, racionalista e progressista que afirmava ser o sucesso fruto da habilidade e mérito pessoal dominava o pensamento “esclarecido”. Esta era a ideologia política da burguesia, o liberalismo clássico. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 é a garantia das exigências burguesas, “prevê a existência de distinções sociais tem a propriedade privada como um direito natural e inalienável, preconiza a igualdade dos homens frente à Lei e às oportunidades de sucesso profissional, mas deixa claro que, embora seja dada a todos os competidores a possibilidade de começar no mesmo ponto de largada, ‘os corredores não terminam juntos’”.

Os sistemas nacionais de ensino:

A política educacional, iniciada no século XIX, decorre de três vertentes da visão de mundo dominante na nova ordem social: primeiro, o legado do Iluminismo que cria no poder da razão e da ciência; segundo, a substituição da desigualdade baseado na herança familiar por um projeto liberal calcado na igualdade de oportunidades e, terceiro, a consolidação dos estados nacionais, sendo esta a propulsora de uma política de implantação de redes públicas de ensino.

A crença de que se vivia numa sociedade igualitária e justa era o embasamento ideológico para a implantação de mecanismos sociais que transformassem súditos em cidadãos. Nestes moldes, a constituição determinaria direitos e deveres. Porém, a escola, no final do século XVIII até meados do século XIX , é mais uma intenção de um grupo de intelectuais da burguesia do que realidade. Isto se deve a varias circunstâncias: pequenas demanda de qualificação de mão-de-obra; desnecessidade da escola como aparelho ideológico e a inexpressividade das lutas das classes populares pela escola.

Não é possível afirmar que, entre 1780 e 1870, a escola fosse necessária para a qualificação dos trabalhadores. A adequação Às novas condições de trabalho não se deu pela escolarização. As máquinas existentes nesta época eram de funcionamento simples e, assim, a qualificação dos trabalhadores era no sentido de aquisição de “atitudes compatíveis como a nova maneira de produzir”. A capacitação desta classe incluía a obtenção de mão-de-obra mais dócil. Mesmo quando a especialização do trabalhador passa a ser necessária, será feita na própria fábrica. “A fábrica foi [...] a escola profissionalizante por excelência”.

O sacerdócio, o magistério e a burocracia eram as únicas vias que ofereciam a oportunidade aos pobres de se aproximarem da burguesia. A escola, então, neste período, exerce a função social de preparação para o funcionalismo público.

É a partir de 1848, somente nos países capitalistas liberais, estáveis e prósperos que a escola adquirirá “significados diferentes para diferentes grupos, em função do lugar que ocupam nas relações sociais de produção”.

Segundo Zanotti a primeira fase da política educacional no mundo é a escola como redentora da humanidade, a construtora de nações unificadas e progressistas.

A primeira guerra mundial abalou fortemente a crença no poder da escola; a idéia de que a escola transformaria a humanidade, redimindo-a da ignorância e da opressão foi desmentida. “A posse do alfabeto, da constituição e da imprensa, da ciência e da moralidade não haviam livrado os homens da tirania, da desigualdade social e da exploração”. Surge, entre 1918 e 1936 o movimento escolanovista — a segunda etapa da política educacional segundo Zanotti — criticando a escola tradicional por serem responsáveis pelos desastres sociais. A pedagogia utilizada pela Escola Nova deveria ser embasada na Psicologia do Desenvolvimento infantil e na participação ativa dos alunos. Tais pedagogos acreditavam na possibilidade da escola propiciar uma sociedade em que os lugares sociais seriam ocupados de acordo com o mérito pessoal.

“À psicologia científica coube buscar explicação e a mensuração das diferenças individuais. É neste sentido que a análise desta ciência, enquanto expressão cultural da nova ordem que emerge do mundo feudal, torna-se fundamental à compreensão da natureza da pesquisa e do discurso educacionais sobre a reprovação escolar que vigoram nos países capitalistas desde o final do século passado [XIX]. No entanto, seu surgimento se dá no mesmo lugar e na mesma época em que foram formuladas as primeiras teorias racistas respaldas no cientificismo do século XIX, fato que não pode ser ignorado quando nos propomos a desvendar a natureza de seu discurso”.

TEORIAS DO FRACASSO ESCOLAR

1 – Teorias racistas

Ao final do século XVIII, após o triunfo burguês na revolução francesa, começam a ser formuladas as teorias do determinismo racial. O carro-chefe do ideário liberal da época era a questão da igualdade. Contudo, a construção de uma sociedade igualitária, na realidade, tratava-se mais de justificar as desigualdades existentes. Inerente ao modo de produção capitalista, as então desigualdades sociais, que agrediam a concepção de igualdade de oportunidades, traduzem-se em desigualdades raciais, pessoais ou culturais.

Este panorama é relevante para a compreensão de como surgem, no Brasil, as considerações a respeito das diferenças nos rendimentos escolares. Visto que, segundo Maria Helena Souza Patto, estas se dão: “(…) num momento em que o país vivia mergulhado num colonialismo cultural que fazia de nossa cultura, segundo expressão usada por Cunha (1981), uma ‘cultura reflexa’, sobretudo sob a influência da filosofia e da ciência francesas.” [A produção do fracasso escolar, p.30]

Entre 1850 e a década de 1930, se deu o ápice de divulgação das idéias racistas. Do meio científico emanavam teses que buscavam atestar as diferenças das raças com base na herança de caracteres adquiridos. Cientistas afirmavam — baseados em explicações fisiológicas carregadas de preconceitos — a superioridade da raça branca, supondo à estes um maior nível de inteligência. Portanto, considerava-se um equívoco querer colocar negros e brancos em condições de igualdade de educação, tendo em vista o suposto intelecto superior destes últimos.

O racismo, que por vezes foi utilizado como justificativa para conquista de outros povos pelas sociedades industriais capitalistas, teve o mesmo significado nas lutas de classes. Nas mãos das minorias de elite, funcionavam como armas na tentativa de justificar as diferenças entre classes, obviamente pela superioridade da raça ariana, principalmente nos países cuja linha divisória das classes sociais coincidia com a linha divisória das raças.

Durante muito tempo alguns cientistas mantiveram a postura de estar dando embasamento científico para idéias racistas já disseminadas no bojo das sociedades. E, mesmo aqueles que não possuíam este objetivo acabaram-no fazendo, evidentemente de maneira indireta, a exemplo da teoria evolucionista de Darwin. Que acabou sendo alvo de uma leitura racista que deu origem ao darwinismo social. Que supunha, inspirado na teoria darwinista da seleção natural, a existência também de uma seleção dos mais aptos à nível do universo social.

As ciências que se oficializam a partir desta época, tais como a sociologia a antropologia e a psicologia, em sua maneira de conceber a vida social — ao passo que emergiam das camadas dominantes, a quem era vantajoso a manutenção das sociedades de classes — acabaram atuando como legitimadoras das desigualdades sociais. O que pode ser evidenciado pela influência do etnocentrismo europeu nas ciências que surgem no final do século XIX e primeiras décadas do século XX.

2 – “Contribuições” da Psicologia Diferencial

Apesar de o marco do surgimento da psicologia científica ter sido a fundação do laboratório experimental de Wundt, é o nome de Sir Francis Galton que aparece nos manuais de psicologia diferencial. Seu objetivo principal era medir a capacidade intelectual e comprovar sua determinação hereditária, o que serviu muito bem aos propósitos desta ciência que se propunha investigar quantitativa e objetivamente as diferenças existentes entre indivíduos e grupos.

Adepto da teoria de Darwin, Galton transpôs os princípios evolucionistas da variação, seleção e adaptação para o estudo das capacidades humanas. Propunha-se a demonstrar que as aptidões naturais humanas são herdadas, da mesma forma que os aspectos físico-orgânicos. Com o intuito de estimar o nível intelectual dos indivíduos, se propôs a mensurar os processos sensoriais e motores, e acabou se tornando o precursor dos testes psicológicos.

Uma das crenças que permeavam o século XIX era a de que a classe média estaria livremente aberta a todos. Portanto, aqueles que não conseguiam alcançar uma ascensão social eram tidos como incapazes, reflexo de sua falta de inteligência, de força moral ou de energia, justificadas por uma herança racial. Pois, no âmbito da ideologia de uma suposta igualdade de oportunidades (característica das sociedades de classes), fazia-se necessário uma comprovação científica. Para tanto, era de crucial importância a preocupação com a identificação: das diferenças individuais, dos normais e anormais e dos aptos e inaptos.

Galton foi também o fundador da Eugenia, ciência que se propunha gerenciar a evolução da espécie humana, aperfeiçoando-a através do cruzamento de indivíduos supostamente ideais, selecionados para este fim. Contudo, Galton manteve-se cauteloso quanto a prescrição de medidas eugênicas, pois reconhecia o estado ainda precário dos conhecimentos relativos à hereditariedade.

2.1 – As aptidões dos escolares

Nos setenta anos seguintes à primeira publicação de Galton, a principal preocupação da psicologia foi para com a superdotação e a subdotação intelectual. Pois, dentro da essência da ideologia liberal, o mérito pessoal seria o único critério legítimo de seleção educacional e social. Sendo neste sentido, que a psicologia veio contribuir para a sedimentação do ideal de igualdade de oportunidades, na medida em que os resultados dos testes psicológicos favoreciam os mais ricos e, assim, reforçavam a impressão de que a posição social condizia justamente com a capacidade individual.

O conceito de anormalidade dos hospitais chegou então à escola. No que se refere ao aprendizado, aqueles que não conseguiam acompanhar o desenvolvimento dos demais passaram a ser considerados como anormais, e a justificativa de seu fracasso passou a ser atribuída a alguma anormalidade orgânica. Começaram então, a ser definidos como portadores de deficiências intelectuais, que os impediriam de se adaptar ao meio social em que viviam.

Nesta época, muitos psicólogos dedicaram-se exaustivamente à tentativa de medir com objetividade e precisão as características que fossem realmente das aptidões dos indivíduos e que não sofressem influência do ambiente. Entretanto, movidos pela crença de que as posições mais altas da pirâmide social deveriam ser ocupadas não pelos mais ricos, mas sim pelos mais aptos — através da mensuração das verdadeiras disposições naturais e da expansão e aprimoramento do sistema escolar —, acabaram com isso defendendo os interesses do capital, pois fortaleciam a crença na possibilidade justa de oportunidades iguais, mesmo dentro de uma ordem social estruturalmente injusta.

No início da década de 1920, Edouard Claparèd, professor da Universidade de Genebra, propôs a criação da escola sob medida, com classes especiais para os ditos “retardados” e escolas especiais para aqueles tidos como bem dotados; e propôs também a orientação profissional. Tudo isto em apologia ao conceito taylorista de “homem certo no lugar certo”, que, para ele, era o caminho para o restabelecimento da justiça social. Ao fim da primeira guerra mundial, esta proposta de identificar os super e subdotados na população infantil, afim de lhes oferecer a educação adequada, fez com que os testes psicológicos espalhassem-se pelos países capitalistas centrais. Enquanto que nos países dependentes, a influência da conjuntura norte americana e européia fez com que seus educadores lutassem pela introdução da psicometria e da pedagogia nova nestes países.

Em seguida:

“(…) a incorporação de alguns conceitos psicanalíticos veio mudar não só a visão dominante de doença mental como as concepções correntes sobre as causas das dificuldades de aprendizagem. A consideração da influência ambiental sobre o desenvolvimento da personalidade nos primeiros anos de vida e a importância atribuída à dimensão afetivo-emocional na determinação do comportamento e seus desvios provocou uma mudança terminológica no discurso da psicologia educacional: de anormal, a criança que apresentava problemas de ajustamento ou de aprendizagem passou a ser designada como criança problema.” [A produção do fracasso escolar, p.44-45]

A partir da década de vinte surgem as clínicas ortofrênicas, ou clínicas de higiene mental infantil. Com o propósito de estudar e corrigir os “desajustamentos infantis” tinham o objetivo de diagnosticar precocemente os distúrbios de aprendizagem. Embora tenham surgido com uma proposta de trabalho de orientação com pais e professores, estas clínicas acabaram se transformando em “fábricas de rótulos”. Cujo destinatário, mais uma vez foram as crianças provenientes das classes trabalhadoras, que tradicionalmente integram o contigente de fracassados escolares.

A tempo, a explicação das desigualdades sociais baseada na questão racial diminui em detrimento da questão cultural. Os menores rendimentos escolares obtidos pelos grupos e classes sociais mais pobres, passam a ser explicados com base nos conhecimentos obtidos da antropologia cultural. Que consideram como rudes, atrasados e primitivos os grupos que não participam da cultura dominante. Há aí então, aparentemente, uma metamorfose no conceito de raças inferiores para o de culturas inferiores. Todavia, tendo em vista o histórico social destes grupos, podemos dizer que estes conceitos acabam dando no mesmo.

Neste momento, os ideólogos liberais vêm para restabelecer a crença na justiça da sociedade norte-americana. Dando ênfase na questão das oportunidades, partem num sentido contrário ao dos humanistas que enfatizavam a crença na possibilidade de igualdade numa sociedade de classes.

Loyd Warner, professor de antropologia e sociologia na Universidade de Chicago, se configurou como o principal autor desta época. Em seu livro de 1944, faz questão de deixar claro que, as possibilidades de ascensão, mesmo numa sociedade democrática, são na realidade desiguais. E, que é preciso garantir que, independentemente de raça, credo, nível sócio-econômico ou sexo, os mais bem dotados ocupem os postos mais altos da hierarquia social; e aos que ficassem nas camadas sociais mais baixas devería-se garantir o direito à satisfação de suas necessidades. Isto tudo seria possível, segundo ele, através do diagnóstico das capacidades e o desenvolvimento de um ensino que atenda à diversidade de aptidões. Pois, para Warner, a escola seria a chave para o restabelecimento da justiça social.

3 – Teoria da carência cultural

Pode-se dizer que esta teoria surge como uma espécie de resposta política aos movimentos reivindicatórios das minorias raciais norte-americanas, que começaram a questionar as desigualdades produzidas pela exploração econômica e pela dominação cultural. Ela então irá basear-se em pesquisas que demonstravam uma grande correlação entre desempenho escolar e classe social para explicar as desigualdades existentes entre os integrantes das classes sociais no que diz respeito ao sucesso escolar e profissional.

É fácil identificar preconceitos e estereótipos que fundamentam esta teoria, dentre eles a crença de que os adultos das classes pobres seriam mais agressivos, relapsos, desinteressados pelos filhos, inconstantes, viciados e imorais do que os das classes dominantes. Ao mesmo tempo em que pesquisas tentavam afirmar que as crianças das classes baixas seriam, em comparação com as da classe média, desprovidas de uma atmosfera familiar afetuosa e positiva e de uma falta de oportunidade de interagir verbalmente com os adultos.

Tudo isso demonstra o quanto esta teoria é marcada por preconceitos de uma visão etnocêntrica que demarca uma posição de inferioridade dos integrantes das classes mais pobres da sociedade. Ao passo que instauram no oprimido a deficiência e prometem-lhe uma igualdade de oportunidades inviável através de programas de educação compensatória. Já que estes partem do princípio de inferioridade daqueles a quem se destinam, tidos como menos aptos à aprendizagem escolar.

Contudo, a escola era vista como redentora, o meio pelo qual seria possível reverter o déficit cultural e psicológico que supunham nas crianças das classes “menos favorecidas”. Acreditavam que as causas do fracasso escolar pudessem ser resolvidas através de programas educacionais especificamente destinados a esta população à margem da sociedade, cujo lugar que ocupavam seria fruto de suas próprias deficiências.

Como sempre, mais uma vez fazia-se necessário uma nova tentativa de fornecer uma explicação racional para as desigualdades sociais, políticas e culturais entre as classes, distanciando-se o máximo possível de se atribuir a justificativa à própria divisão da sociedade em classes. Que fica cada vez mais evidente quanto mais se aproximam as divisões sociais das divisões dos grupos étnicos.

4 – Relação medicina e fracasso escolar

Segundo Maria Aparecida Affonso Moysés, docente do departamento de pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, a crença de que questões de saúde seriam responsáveis, mesmo que em parte, pelo fracasso escolar, não passa de um mito que tem-se mantido e sido reforçado desde o século passado.

Para ela, não existem relações consistentes entre causas médicas e fracasso escolar. Supõe o fato de as mesmas crianças portadoras de deficiências de saúde apresentarem um mau desempenho escolar, como conseqüências de um mesmo fator, segundo ela: reflexo da política governamental para com o setor social. Pois baseia-se no fato de o estado de saúde não afetar a capacidade de aprendizagem do indivíduo. Porém não ignora que existam doenças que interferem nas atividades habituais das pessoas, bem como nas intelectuais, mas acredita que mesmo antes de se estar afetando o processo de aprendizagem, afetaría-se a própria freqüência do aluno.

Teria-se então, na realidade, uma construção artificial de causas médicas para o fracasso escolar. Uma falsa relação entre doença e não-aprendizagem, que já chega a receber denominações tais como distúrbios ou disfunções, que reflete uma tentativa de justificar o pensamento na criança que não alcança o nível desejável de aprendizado, que embora seja portadora de alguma debilidade de saúde, como uma “criança doente” — no sentido de uma incapacidade. Ou ainda, como a tentativa de encontrar em cada criança uma justificativa médica para o seu mau rendimento escolar.

III. A ESCOLA E A LUTA PELA HEGEMONIA

Como se sabe, o filósofo italiano Antonio Gramsci enriqueceu com a elaboração de novos conceitos a teoria marxista, dando ênfase às questões do Estado e a perspectiva transformadora. O grande mérito de Gramsci foi ter “ampliado” a noção de Estado, que usualmente era reconhecido como sendo apenas o aparelho burocrático-repressivo da classe dirigente. A esta idéia soma-se o conceito de sociedade civil — o âmbito no qual se efetiva a luta pela hegemonia. Assim, o Estado passa a ser entendido em um duplo aspecto: a sociedade política, o espaço destinado à dominação feita pelas classes superiores com constrangimento das demais; e a sociedade civil, local onde se trava a luta de idéias, que podem ser críticas ou reprodutoras da ordem estabelecida.

O controle da sociedade política é conseguido somente por meio da revolução, isto é, com a radical tomada de poder do Estado em sentido estrito. Algo diferente acontece na sociedade civil: ao invés de uma ruptura imediata, o embate entre as classes aqui pode ser considerado uma “guerra de posições”, pontuada pela tentativa de constituição de hegemonia em cada nova instituição da sociedade civil. Dessa maneira, as igrejas, as escolas, os partidos políticos, a mídia são palcos da luta ideológica entre as classes sociais.

Mas em que consiste exatamente a luta pela hegemonia? Pode-se dizer que uma idéia é hegemônica quando ela obtém o convencimento de grande parte do público. Em outras palavras a hegemonia diz respeito ao consenso “espontâneo” dado a um projeto ideológico de direção. Como não poderia deixar de ser, a escola, enquanto instituição pertencente à sociedade civil, é alvo dos interesses classistas. Dentro de cada escola, certamente há um choque de posturas ideológicas representadas pelos intelectuais lá inseridos. A relação estabelecida entre o intelectual e as contradições da sociedade dirá qual o modelo pretendido para escola: um aparelho reprodutor da ideologia dominante ou um aparelho crítico da ideologia dominante.

Se cabe aos intelectuais a tarefa do convencimento pelas idéias, este fato faz da escola um elemento vital quando se pensa a luta pela hegemonia: é justamente a escola a instituição formadora dos intelectuais, os “funcionários da hegemonia”. Gramsci dizia que “a escola é um instrumento para elaborar os intelectuais de diversos níveis” (1995, p. 9), ou seja, cada grupo social produz seus intelectuais e será representado por eles na sociedade civil. Ora, em uma escola onde se tem uma hegemonia crítica constituída, o trabalho de se criar novos intelectuais com papel transformador é facilitada. Da mesma forma, também será facilitada a perpetuação da hegemonia.

Portanto, uma escola progressista seria aquela que promovesse a conscientização de seus alunos no que diz respeito aos antagonismos sociais. O ensino escolar assim entendido constitui-se como um passo na direção da transformação social, que culminaria com a tomada de poder da sociedade política. No outro extremo, uma escola conservadora reproduziria as idéias da classe dominante lutando pela manutenção do estado de coisas estabelecido.

IV. A EDUCAÇÃO COMO UM APARELHO IDEOLÓGICO DO ESTADO

Um dos grandes sociólogos que vem exercendo grande influência, principalmente nos últimos anos, sobre a produção acadêmica de educadores aqui no Brasil é francês Louis Althusser, que em sua obra Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado reforça a presença do materialismo histórico de Marx e da Ideologia e suas articulações dentro do sistema.

Os modos com os quais os homens se relacionam com a natureza e entre si mesmos, as técnicas empregadas na relação com a natureza e a maneira com a qual organizam a propriedade e toda a divisão social do trabalho, são os elementos que direcionam a análise do trabalho de Marx ao tratar dos modos de produção.

Assim o materialismo parte do mundo material para se compreender o mundo mental e cultural, não considerando o Homem como uma entidade abstrata, mas inserido dentro de um tempo e de uma história. Deste modo percebe que as relações estabelecidas entre os homens no processo produtivo se dão meramente pela exploração, onde a “força de trabalho” é muito superior ao “valor de troca”, o salário, que é estipulado para atender as necessidades básicas do trabalhador. Essa diferença entre o uso da força e seu valor de troca é chamada dentro da teoria marxista de mais valia, o elemento necessário à acumulação de capital.

As contradições existentes nos modos de produção antecedem o próprio capitalismo, que põe a História como o confronto de dois pólos opostos nas relações de contradição da luta de classes que é o próprio motor da história. Deste modo o homem produz objetos, idéias e teorias que justificam essas relações. Assim a exploração econômica corresponde também à exploração cultural, onde os pensamentos da classe dominante são os pensamentos que detém todo o poder.

Marx põe que o papel da revolução, de superação de tais relações deve se dar por oposição explícita às condições que vigoram, fundamentais para por um fim a toda uma alienação, através de greves, reivindicações, conflitos sociais, vistos não como desorganização do sistema, mas como uma forma de contradição e tentativa de equilíbrio. Possibilidades de manifestação, acirramento e superação das condições impostas pelo sistema as quais não garantem a democracia.

O sistema vigente é assim uma concepção ideológica e não científica do real, onde a sua disseminação se dá pelos mais diversos meios e aparelhos que organizam e perpetuam o processo de ideologização e consolidação de tais idéias; um desses meios cabe à escola.

A escola enquanto aparelho ideológico tem essa função de domesticar, de docilizar um corpo, como diria Foucault, que explorado não se percebe enquanto tal e graças a ação dominadora da ideologia nessa instituição, acaba por perpetuar as relações de produção a favor da classe dominante sobre a dominada, introduzindo aqueles que nela se inserem e que nela passam a integrar.

Desta forma Althusser partindo de conceitos marxistas em relação aos meios, força de trabalho e relações de produção, mostra a necessidade da reprodução das condições materiais existentes para se manter a ideologia. Uma reprodução que na escola se dá em relação às idéias, à dominação cultural, na representação de mundo, que não permitem o verdadeiro conhecimento acerca das relações de exploração que leva o trabalhador a ser um constante submisso à ordem estabelecida.

Assim o todo social é composto pela “estrutura econômica” e pela “superestrutura”, esta que é dividida em dois níveis, o jurídico político, composto pelo direito e Estado e a ideologia, seja ela religiosa, moral, política, econômica e etc. Althusser propõe um aprofundamento teórico no conceito marxista de Estado introduzindo a noção de aparelhos ideológicos.

Os Aparelhos Ideológicos do Estado asseguram a reprodução das relações de produção e são divididos em:

- Aparelho Repressivo do Estado: composto pelo governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais e as prisões que funcionam pela repressão e coerção física.

- Aparelho Ideológico do Estado: as instituições sociais que possuem um denominador comum, a própria ideologia unificada que é a ideologia dominante que se faz pela igreja, família, escola, comunicações sociais e instituições culturais.

Althusser nos mostra que parece haver um “tipo de divisão de trabalho” na reprodução das relações entre o Aparelho Repressivo do Estado e o Aparelho Ideológico do Estado, no qual o primeiro assegura pela repressão, as condições políticas para o exercício do segundo.

Fazendo um panorama histórico, na Idade Média o aparelho ideológico dominante era exercido pela igreja, que acumulava a função dos vários Aparelhos Ideológicos de Estado atuais, e que estes hoje são constituídos pelo Aparelho Ideológico Escolar, assim o par igreja-família é substituído pelo escola-família. Hoje percebesse claramente a partir dessas análises que as formações sociais capitalistas estão recheadas de um grande número de Aparelhos Ideológicos do Estado.

A escola tem um grande papel dentro dos Aparelhos Ideológicos do Estado justamente por atuar diretamente e diariamente sobre os indivíduos numa idade onde mais se deixa influenciar pelas idéias formadoras externas, e assim ensina técnicas e conhecimentos da ideologia dominante, cumprindo a função de qualificar mão de obra dentro das medidas necessárias ao sistema.

Cabe assim à escola ensinar sobre a comunicação, expressão, história, ciências, matemática, a moral, o comportamento, o civismo e etc, preparar a partir dos valores e atitudes, os agentes que respeitem a divisão social e técnica do trabalho, ordens estabelecidas pela ideologia dominante a manter e estrutura de classes.

Todos os mecanismos que reproduzem este estado de coisas são na verdade dissimulados pela própria ideologia que põe a escola como uma instituição neutra e desprovida de quaisquer que sejam os seus interesses, a não ser simplesmente o de educar.

V. DISCIPLINA NA DOCILIZAÇÃO DE CORPOS

Para Foucault a sociedade moderna é, por excelência, uma sociedade disciplinar. Em oposição às sociedades antigas, essencialmente punitivas, surge a idade de controle, ortopedia social. Em detrimento das práticas punitivas, há a valorização da prevenção: o exercício de poder está calcado na vigilância e correção. Como uma das características primordiais de nossa sociedade, tem-se o panoptismo: o olhar contínuo sobre os indivíduos bem como, atuação de controle e vigilância no intuito de formação e transformação deste. Esse olhar tem uma dupla função: o poder e o saber – enquanto vigia constitui, a respeito dos que vigia, um saber. “Ele [o saber] se ordena em torno da norma, em termos do que é normal ou não, correto ou não, no que se deve ou não fazer”. (1996, pág. 88)

Dessa forma, aparecem, com a finalidade de fixar os indivíduos nos moldes da sociedade ao invés de excluí-los, as instituições de seqüestro. Como característica, tais instituições, têm não somente a responsabilidade sobre o tempo dos indivíduos, como também o controle sobre seus corpos. “Vemos que se trata, no fundo, não somente de apropriação, de extração da quantidade máxima de tempo, mas, também, de controlar, de formar, de valorizar, segundo um determinado sistema, o corpo do indivíduo”.(1996, pág. 119)

O corpo passa a ser objeto primeiro, o alvo principal da prática disciplinar. O poder se efetiva sobre o corpo em um duplo aspecto: produz utilidade e docilidade – “a disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). [...] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (2000, pág .119)

A instituição escolar é um agente de papel preponderante na uniformização dos indivíduos. A escola se faz uma instituição de seqüestro na medida em que sua prática não se limita a ensinar a ler, mas implica na elaboração de corpos dóceis. Sob certo aspecto, a escola continua o trajeto iniciado pela família socializando a criança (entendendo a tarefa de socializar como sendo aquela que impõe regras ao indivíduo, aparando suas arestas, estipulando determinada conduta social a ser seguida). Sob a forma Saber-poder a escola normatiza o futuro cidadão; o saber normativo lapida, pole o aluno, transformando-o em adulto útil e disciplinado.

VI. LAUDO MÉDICO E HISTÓRICO ESCOLAR

Como nascimento da ciência moderna, a religião deixa de ser a legitimadora dos critérios de normalidade e anormalidade, e se inicia assim um processo de biologização da sociedade estabelecendo um caráter cientifico a questões meramente ideológicas.

Até inicio do século XIX o que vigorava era que a “loucura” e a “debilidade mental” eram características exclusivamente de adultos e no máximo adolescentes. A loucura não era considerada uma anormalidade, era até considerada uma particularidade da infância.

No final do século XIX é que se da o nascimento da criança anormal, surgida com o intuito de uma medicina preventiva que buscava a pedagogização da população e privilegiava na infância suas novas produções teóricas, ainda calcadas nas noções de instintos e nas vicissitudes de desvios. Neste processo de psiquiatrização infantil surgiram as mais diversas nomenclaturas e classificações de casos da “anormalidade” tendo como figura de destaque os distúrbios de aprendizagem.

Na medida que cresciam as redes escolares, cresciam também á caçada aos anormais, não incluindo aí os “idiotas”, surdos-mudos, deficientes físicos que ficavam abandonados, á margem do social em asilos.

A grande preocupação era dada á aqueles que passavam despercebidos e que podiam ainda prejudicar os mais capazes. Devido à falta de estabelecimentos para o tratamento dessas crianças “doentes”, médicos e pedagogos insistiram na sua criação e na produção de saberes que como medidas profiláticas evitariam um perigo futuro para toda a sociedade com técnicas que buscavam medir, selecionar classificar controlar e principalmente, (dentro do possível) corrigir os anormais. Características bem comuns para o que Foucault chamou de sociedade disciplinar.

Com um amplo suporte político, áreas como a biologia, psicologia e estatística, produziram “questões pseudo-cientificas” que justificariam o controle pela seleção e orientação escolar das massas, frente ás condições impostas pela sociedade industrial, maximizar a produtividade.

A biologia veio com as questões de herança genética assim como os fatores que favoreciam ou desfavoreciam a aprendizagem; da psicologia surgiram questões apoiadas nas observações e experiências como o reforço da noção de variabilidade dos indivíduos e suas diversas capacidades, alem de se apoiar na mensuração das faculdades por testes de inteligência, aptidão e personalidade. Já como instrumento de descrição e explicação das diferenças em torno de uma abstração média veio a estatística.

Criam-se assim saberes onde a permanência e o rendimento escolar, de alunos das classes menos favorecida, para exemplificar, são traduzidos em dados de evasão e repetência meramente pela indiferença por parte dos alunos, devido a seus comportamentos anti-sociais, por fatores hereditários, meio e até mesmo a doenças neurológicas como e o caso da dislexia. Essa resistência não era e não é ainda vista pela maioria dos educadores sob a ótica das dificuldades socioeconômicas ou da diferença das práticas culturais.

Assim, emprestando um caráter cientifico a questões ideológicas, em relação á aprendizagem fica mais fácil culpabilizar a vitima, o individuo, pelo fracasso e assim isentar as responsabilidades do sistema sócio-político e a instituição escola nele inserida.

Faz parte, também, da atividade educadora, junto com outras áreas “transdisciplinares”, observar, perguntar, apurar, descrever, contabilizar, agrupar, classificar, em suma, controlando e hierarquizando a partir de um aparente “potencial” que justificaria o poder do Estado regulador, ao mesmo tempo em que culpabilizam o indivíduo e sua família.

Assim foram e se vão formando espaços para crianças “normais” e crianças “débeis”, “inteligentes” ou “retardadas”, crianças “bem sucedidas” ou fracassadas.

Rotulações do Especialismo

Segundo Schneider o desvio, ao invés de ser uma característica própria do indivíduo, ser nele encontrado, é o veredicto enunciado por um grupo social em relação a tal indivíduo. Assim, o aluno que freqüenta uma escola ou classe especial é rotulado de desviante. Possuir esta marca em uma sociedade de iguais significa a limitação de possibilidades de crescimento para este indivíduo que, por sua vez, não lhe restará outra alternativa senão a de adesão às esta ordem pré-fixada.

Hoje, há duas formas de educação especializada: as Apae’s — (associações de pais e amigos dos excepcionais) que atendem crianças portadoras de significativa deficiência mental e que não freqüentam escola comuns — e as classes especiais que recebem, não necessariamente, crianças com deficiência mental.

As classes especiais funcionam exclusivamente em escolas públicas e atendem crianças que fracassaram no ensino regula. As deficiências destas crianças têm sinal aparente somente diante das exigências escolares.

Além da avaliação pedagógica, o aluno na primeira séria enfrenta uma avaliação indireta por parte do professor. As sua expectativas em relação ao aluno dirão sobre o futuro escolar deste aluno, se ele será bem ou mal sucedido. Tal avaliação influenciará neste processo, pois o trabalho do professor estará de acordo com sua avaliação. A legitimação desta suposta doença se dará de acordo com a apresentação da bagagem cultural, desenvolvimento intelectual e motor do aluno.

As classes especiais atendem, em sua maioria aluno que não são deficientes mentais. Estes freqüentam esta classes somente por terem apresentado um comportamento diferente do esperado no processo de alfabetização.

Maria Angela Monteiro Corrêa afirma que o papel do psicólogo nesta avaliação não deve se limitar aos dados obtidos nos teste, mas sim na contextualização destes em outros instrumentos, tais como, jogos, desenhos, entrevista...

A resolução SE número 73/78, em seus artigos 6º, 7º, 9º e 10º , com seus parágrafos únicos prevê que diante do indicador de deficiência, a educação especializada deve trabalhar para a absorção total de indivíduo pelo sistema de ensino regular. A realidade mostra que essa absorção não ocorre de maneira natural.

Para reverter este quadro é necessário reconhecer a realidade das crianças, sua história, geografia, classe social “para construir pontes e vínculos com outras situações mais distantes, distintas e abstratas”.

VII. PSICOLOGIA CIENTÍFICA?

Ao se buscar uma abordagem crítica e científica da psicologia, nos deparamos com uma zona ideológica que a fundamenta, que questiona seu status de ciência diante sua heterogeneidade, ou a sua unidade mais implícita. Deleuze vem mostrar que uma ideologia do conhecimento, a partir de questões politico-historicas, acumulado pela psicologia vem a revelar que esta possui sim uma unidade, não cientifica, mais meramente ideológica. Assim o campo psi torna-se um suporte, mais um dentre os diversos outros campos, com linguagem e discursos próprios que acabam por “representar o real” e que possui como seu objetivo uma relação invasora de ilusão de desconhecimento, e eficaz de reconhecimento.

Desse modo podemos pensar que “ideologia é justificação” e que toda ciência se funda em um conjunto de idéias que acabam por ser ideológicas, na qual o saber, o conhecimento ou a revelação daquilo não sabido até então pelo discurso que é a principal característica do cientificismo. Foucault já diria que o domínio do discurso também é uma forma de poder e que a neutralidade científica não se pode alcançar dado que “fazer” é fazer política e tudo está implicado em interesses históricos, e que toda ciência é motivada pelo seu tempo. A isso obviamente incluem tanto a psicologia como a sociologia positivista como elementos de distorção e mistificação, instrumentos de adaptação para a dominação e controle.

Ao longo de sua historia vemos que a psicologia surge como um instrumento e efeito de necessidades sociais para seleção, orientação, adaptação e racionalização, passando por seus diversos campos. Desde a fundação do pensamento cartesiano com o apelo a introspeção, ao acesso a consciência e conhecimento imediato da alma como que passando pelo conhecimento fenomenológico da psiquiatria; temos assim uma ideologia da mudança que oculta as contradições, minimizando as lutas de classes, definindo a hostilidade e o enfrentamento como crises ou disfunções desencadeadas por indivíduos portadores de dificuldades psicológicas que os levam a não adaptação e a justificação dos mais diversos elementos denunciatórios.

Aquilo tido como cura é apenas o processo adaptacional a normas que mantém o status e priva valores tais de saúde e societatórios baseados em valores tidos como cuturais. Deleuze é quem vai concluir que a psicologia moderna é um fenômeno social-democrata.

A psicologia escolar se confunde com a própria historia da psicologia dita cientifica, as demandas advindas do liberalismo, positivismo e hoje da tão falada “globalização”, buscam tipos “certos”de mão de obra, aptidões, personalidades e subjetividades que são condições de eficiência e adaptação da ordem social através de seleções e orientações.

Temos ao longo dessa historia como exemplos Galtom em 1884 interessado na mensuração de diferenças individuais, o surgimento da psicometria; pouco mais tarde Binet com seu famoso QI, realizando o sonho industrial de quantificações numéricas e objetivas para a classificação de indivíduos. Assim os testes vem abarcar fins práticos de classificar, selecionar, prever e adaptar os indivíduos nos mais diversos estabelecimentos, explicando ou revelando o insucesso escolar, profissional ou social, forjando assim o mito da igualdade de oportunidades. Testes que segundo Deleuze, enquanto critérios discriminativos baseiam se em critérios ideológicos.

Surgem assim nas escolas os mais diversos tipos de intervenções, passando por terapias, avaliações psicológicas por meio de testes, além de programas preventivos junto a professores, pais e administradores. As orientações clinicas vindas de diagnósticos e recuperações educacionais passando por diagnósticos de personalidade e tratamentos psicológicos guiados por concepções adaptacionistas de saúde mental, sobretudo promovendo a higiene mental infantil não se restringiram a poucos casos nem tampouco a casos isolados.

A tecnologia do comportamento na escola faz do psicólogo um consultor, especialista em educação, ergonomia, modificador do comportamento e pesquisador que não fica restrito a escola, mas é claro, aquele que estende a comunidade os efeitos de sua ação. Assume o status de ditador dos parâmetros de normalidade, posição hierárquica superior aos demais, elemento que detém o saber sob a objetos a ser intervindos, modelador do professor, fazendo deste, um engenheiro do comportamento nas classes de aula.

A psicologia escolar firma-se trazendo os critérios de eficiência que vigoram na industria para o campo escolar educacional revelando a ideologia adaptacionaista e a indiferença de um projeto psicológico junto as imposições ideológicas de dominação e poder que leva Deleuze a pensar a psicologia como um “mito cientifico”.

Creditar a uma psicologia que solucionaria os males de ensino, os distúrbios de aprendizagem, o ajustamento social e escolar é fazer uma psicologizacão levada ao extremo, ocultando fatos políticos e sociais e as séries de questões que aí se interligam, outorgando assim poder instituído e cientificidade, sendo que estes andam emparelhados.

Vemos assim que o profissional psi, seja de qual área for, clinica, escolar, jurídica, escolar, cabe o rumo de desafios alternativos e coerentes de intervenção, não se limitando a uma “pseudologia” de conteúdos ideológicos para simplesmente manter uma falsa e tida ordem nos seus mais diversos (não) sentidos.

VIII. REALIDADES E IDEALIDADES

Geralmente as questões levantadas acerca do fracasso escolar mencionam aspectos sociais, econômicos, culturais, biológicos e psicológicos e não trazem a tona diretamente toda a problemática inerente ao espaço da sala de aula, na qual a relação se da de forma mais direta e objetiva. Desse modo as interações estabelecidas nesse espaço singular pode afirmar ou negar expectativas em relação ao fracasso ou sucesso escolar.

No processo de construção e articulação do conhecimento o “saber” e o “não saber” estão intimamente relacionados e esse tido sucesso/fracasso escolar e cabe a própria ação docente, ao próprio trabalho pedagógico transformar e fortalecer concepções dominantes na escola, levando em consideração a realidade social do aluno, o contexto e os tipos de saberes aos quais ele se insere. Assim não levando em conta as diversidade de condições materiais e culturais, e todo seu papel na formação da subjetividade vai-se a procura de uma homogeneidade existente, na qual aquilo que se mostra e destoa é excluído e segmentado em alguma classe.

A questão do saber, assim universalizado e tido como neutro e as visões a margem do social são negadas enquanto que a hegemonia do saber se dá pelas classes dominantes levando a uma especificação e direcionamento do conhecimento que é produzido e contextualizado historicamente, é “direito de todos e deve ser apropriado por todos”. Desse modo a escola não cumpre em permitir a reapropriacao coletiva do conhecimento, põe o “erro” como “não saber”, o que fica emparelhado ao fracasso, não sendo este assim parte do processo de conhecimento, articulador de novos saberes.

A construção do conhecimento não é tida como aprendizagem, e cabe assim ao aluno repetir o aprendido e não errar a lei. Quando o aluno afirma “não sei”, acaba fortalecendo o desconhecido, um ponto que não se pode mudar, que responsabiliza, culpabiliza a si próprio, que põe esse “não sei” como incompetência, dado que todo processo de aprendizagem e ensino se apresenta numa relação dialética entre professores e alunos, sendo quais forem os resultados obtidos, os frutos dessa interação.

Quanto aos processos escolares é impossível um olhar que dá como referencia a falta que revela as dificuldades e impossibilidades dos alunos e outro olhar que leve em consideração aquilo já conseguido e avançado pelas potencialidades, questões que levam ao fracasso ou ao sucesso como perspectivas de fenômenos observados.

A superação do fracasso escolar exige a incorporação de diversos elementos, principalmente contextualizações socio-historicas-economicas que levam a ruptura com o modelo dominante e a resolução de conflitos e contradições que se fazem por relevantes na construção de alternativas para a pratica educacional. Um exemplo disso é a prioridade que se pode dar a dimensão coletiva para a construção e apropriação desse conhecimento, professores e alunos interagindo.

Ao se ingressar na escola o aluno apresenta possibilidades de sucesso e de fracasso, sendo que cada caso se faz por si só devido a toda uma série de elementos que não são simples, mas que interferem nas condições que levam a um resultado ou a outro.

IX. TEORIA DA CARÊNCIA CULTURAL

No início das décadas de sessenta e setenta, o mito da igualdade de oportunidades, que norteia a ideologia liberal da sociedade norte-americana, foi abalado pelos movimentos reivindicatórios das minorias “marginalizadas”. As contradições do sistema vigente na época foram rotuladas de disfunções do organismo social e exigiam uma ação imediata do Estado, a fim de restabelecer a ordem e o equilíbrio social.

É neste momento que começa a se estruturar essa teoria da carência cultural, que visava resolver o problema de forma científica, por uma ciência do social e do humano, mas que acabou encobrindo os aspectos socio-políticos da questão. Visto que, deste então, tudo que se produziu neste campo seguiu as suposições: (1o) que as minorias raciais estariam à margem da sociedade por não conseguirem permanecer de forma estável no mercado de trabalho; (2o) fato este, que seria conseqüência dos baixos níveis de escolaridade e sucesso escolar dos membros deste grupo; (3o) para que fosse possível à estes competir no mercado de trabalho de forma igualitária, alcançando uma ascensão social, seria preciso criar condições para que se escolarizassem; (4o) mas, inicialmente, devería-se identificar as causas do fracasso escolar das crianças deste grupo – questão-chave da teoria da carência cultural.

Quanto ao conceito de marginalização, relacionado às origens sociais da pobreza, a questão resume-se a não-incorporação de grupos étnicos nativos ou provenientes de zonas rurais ao contexto da sociedade moderna, civilizada e urbana. O que gera um contigente populacional à margem, ou não-participante, do sistema social. A exemplo do que ocorre na economia capitalista, onde uma parcela considerável da força de trabalho permanece excluída do processo produtivo, o que garante a existência de uma mão-de-obra excedente, um “exército industrial de reserva”, fundamental às engrenagens deste modelo de produção, à medida que contribui para a manutenção dos baixos salários. Pois são fatores como alto nível tecnológico e exploração de mão-de-obra já incorporada, que compõem este quadro excludente, já que “as propostas de possibilitar a todos oportunidades iguais de ascensão social, através do acesso a melhores empregos, viabilizado pela aquisição de um maior nível de escolaridade, implica um profundo desconhecimento da dinâmica do sistema social.” (Patto, 1987, p.124)

Neste contexto que se insere a Psicologia, com seus métodos e técnicas de avaliação de aptidões, de habilidades e de traços de personalidade, que possibilitariam compor um perfil desta população e, a partir daí, poderia-se tomar medidas educacionais preventivas e curativas. Contudo, a maneira como foram conduzidas as pesquisas neste campo, acabaram determinando que os indivíduos destas “camadas desfavorecidas” seriam portadores de deficiências perceptivas, motoras, afetivas, emocionais e de linguagem que explicariam seu fracasso escolar e social, com base nos baixos resultados obtidos em testes de inteligência.

Em outras palavras, a Psicologia Educacional norte-americana produziu a Teoria da Carência Cultural para explicar as desigualdades sociais da escolarização. Partindo do pressuposto de que o fracasso escolar estaria relacionado ao ambiente familiar e social de convívio da criança, ou seja, a explicação para os possíveis problemas na aprendizagem seria decorrente do meio culturalmente pobre e deficiente em que ela vive, e, obviamente, o local em que ocorre seu desenvolvimento. Assim, realmente não se poderia esperar muito da criança na escola, visto o comprometimento das características psicológicas como os déficits intelectuais, as falhas na percepção e a dificuldade de estabelecer relações afetivas.

Um estudo da época, realizado nos Estados Unidos, com os mais renomados cientistas e quase toda a literatura produzida nas décadas de cinqüenta e sessenta na área da privação cultural, concluiu que as deficiências psicológicas constatadas seriam atribuídas a uma forma de carência ou privação psicológica (semelhante à privação alimentar). Esta privação seria explicada por fatores como: a) carência de recursos financeiros, que impossibilitariam os indivíduos de consumirem bens e serviços; b) carência de estímulos benéficos, como a não aprendizagem de conceitos e do vocabulário necessário à sobrevivência na sociedade, bem como a falta de acesso à diversidade cultural; c) carência, não de estímulos, mas de estimulação que permitissem aprender relações de causa e efeito; d) carência de contingências no ambiente, no sentido do não reforçamento (em ambientes carenciados) de comportamentos adequados; e) carência de uma adaptação, como resultado de uma interação entre necessidades evolutivas e uma falta de estimulação, com o comprometimento do desenvolvimento cognitivo e da aprendizagem.

O que, na realidade, interessa a essa teoria é atribuir exclusivamente à criança, a sua família e a seu meio a pobreza que causa o fracasso, preservando a escola e a sociedade de responsabilidades, visto a crença de que todos têm as mesmas oportunidades oferecidas pelo modelo econômico vigente. A precariedade das famílias pobres, bem como todas as injustiças a que estão submetidas, não devem ser atribuídas ao sistema, à medida que, em sua ideologia permeada pelo pensamento liberal, “a educação é um direito de todos”, e busca-se ao máximo fornecer as mesmas condições de existência, “impedindo” as contradições sociais e a diferença de oportunidades a cada segmento social.

Esse pensamento incitou pesquisas acadêmicas brasileiras nos cursos de psicologia e na produção científica do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundação Carlos Chagas, entre outras instituições, no sentido de “caracterizar o desenvolvimento psicológico das crianças culturalmente marginalizadas para elaborar programas e currículos escolares mais adequados ao seu perfil” (Patto, 1993, p.110) como uma tentativa de contribuir para a melhoria da qualidade de ensino das escolas públicas de 1º grau, que atendiam cada vez mais crianças pobres. Ou seja, despertou-se um “desejo político de contribuir para a escolarização das classes populares”(idem, ibidem, idem).

Há, também, por trás dessa idéia uma concepção interacionista de desenvolvimento, que considera que o desenvolvimento das capacidades e habilidades de um indivíduo tem o mesmo grau de influência da maturação física e da estimulação ambiental, e, pressupõe a necessidade de condições ideais para a aprendizagem da leitura e da escrita. Fatores extra-escolares como características dos próprios alunos e de seu ambiente familiar, a necessidade de trabalhar desde pequenos, desinteresse dos pais pelas tarefas escolares dos filhos e ausência dos mesmos nas reuniões convocadas pela escola, pouca comunicação e leitura dentro do lar, entre outros, são considerados relevantes no baixo desempenho escolar das crianças. Além disso, muitas professoras não refletem sobre a realidade sócio-psicológica dos alunos e, portanto, não procuram se “adequar” a eles. A falta de preparo pedagógico, um sistema escolar geralmente pobre, com material didático precário, sem recursos técnicos e possibilidades de aperfeiçoamento encontram-se com o despreparo dos alunos na árdua tarefa de alfabetizar e fazê-los apreender o conteúdo programático da 1º série. “O aluno – proveniente, em sua maioria, de ambiente econômica e culturalmente desfavorecidos, que não têm possibilidade de lhe proporcionar a estimulação e o treinamento necessários a um bom desenvolvimento global – chega à idade escolar sem condições de cumprir o que a escola exige dele.” (Poppovic apud Patto, 1993, p. 112)

Por outro lado, um outro modelo, defendido por psicólogos sociais, antropólogos e sociólogos, nega a existência das carências geradoras de deficiências pessoais, e afirmam que o que existiria seria um pluralismo cultural aliado à desvalorização dos padrões culturais de grupos étnicos segregados, processo que chamam de segregação involuntária. Para estes autores as escolas, os professores e mesmo as instituições policiais e judiciais ignorariam a existência de uma diferença da cultura da classe média para a destes grupos carenciados. Com isso, estes estariam privados de usufruir do ideário norte-americano de oportunidade para todos e mobilidade social ascendente. Assim, os programas de educação compensatória seriam determinantes para remediar essa disparidade cultural, pois poderiam suprir os elementos ausentes nas crianças pobres em idade pré-escolar.

Dentre estas concepções, o papel do psicólogo tem sido o de diagnosticar as supostas deficiências psicológicas do marginalizado para que, a partir daí, fosse possível promover a integração destes, por meios psicopedagógicos, à cultura de classe média. Considerado, segundo os adeptos da teoria da marginalização cultural, o único caminho para sua redenção. Podemos dizer que a forma como a psicologia da carência social lida com os conceitos de classe dominante, pobreza, marginalização social e cultural, classe social e sistema social, demonstra o quanto o seu discurso desconsidera as relações de produção e as dimensões da ideologia e do poder, atestando o seu papel de encobrimento da realidade social.

Pois, a psicologia escolar, em uma postura mais tradicional, acaba atuando de forma a confirmar, por meio dos testes e instrumentos de avaliação psicológica, a incapacidade dos que acabam excluídos da escola. E, em uma postura mais recente, lança mão de técnicas de manipulação da aprendizagem, da motivação e do comportamento para aumentar a “eficiência” do ensino, mas mantém a posição de não questionar o que é, como é, e as conseqüências do que é ensinado.

É importante destacarmos que as instituições que estamos tratando aqui – a escola e a psicologia – tem agido, seja pelos programas educacionais ou pelos serviços psicológicos, no sentido de “anular” o discurso do sujeito oprimido atribuindo-lhe um outro que não é seu. Fato evidente pelos pontos que se destacam na implantação de uma política educacional: conteúdos curriculares, filtragem das informações ensinadas, imposição de um código lingüístico e de um estilo de pensamento, procedimentos de seleção e de orientação psico-educacional e vocacional e a relação professor-aluno.

A forma como a escola cerceia a criança proveniente das camadas populares, sob a imposição de uma cultura, muitas vezes acarreta a evasão escolar, caso contrário, resta-lhe apenas se calar em classe ou assimilar os padrões que lhe são impostos. E o que resulta disto é um sentimento de fracasso, vergonha ou incapacidade, no primeiro caso; ou uma perda de identidade, no segundo, quando o indivíduo passa a viver uma vida de verdades que não são suas ou falar uma linguagem que também não é.

Muitas vezes o professor é o próprio instrumento deste poder opressor da instituição de ensino, através de sua prática: “mantendo a disciplina repressivamente, valorizando positivamente a classe e os alunos que não dão trabalho e que acatam ordens; dando mais importância ao fator intelectual, desvinculando a ação da vivência, do significado do que foi aprendido e enfatizando, portanto, a memorização; separando a linguagem escrita da expressão pessoal; limitando a expressão à verbalização; supervalorizando o livro e a palavra impressa como fonte única da verdade e do saber; estimulando a competição e o individualismo; desvalorizando o trabalho manual produtivo, na medida que aceita, sem crítica, textos que o desvalorizam; universalizando, enfim, a cultura dominante (em termos da avaliação constante do que é civilizado e o que é primitivo, o que é culto e o que é inculto, o que é certo e o que é errado em matéria de hábitos, valores e atitudes).” (Patto, 1987, p.141)

Parece existir uma forte tendência geral no interior destas instituições, de descrença no que diz respeito às classes mais fracas, das crianças que não estão conseguindo acompanhar. Daí, alguns autores chegarem a supor que se as crianças estão indo mal na escola é porque isso é o que se espera delas, baseados no fato de que esta expectativa influenciaria a auto-imagem e o comportamento das mesmas. Com base nisto, podemos supor que “Concluir que os professores são os responsáveis pela situação do ensino não faz justiça à complexidade do problema. A imposição, a falta de comunicação, o predomínio da burocracia sobre as relações humanas diretas e vivas são características, nada casuais, do sistema escolar como um todo; são estas características que garantem o controle (…)” (Patto, 1987, p.143)


X. BIBLIOGRAFIA

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